O livro «As Causas do Atraso Português» escrito pelo economista Nuno Palma e editado pela «Dom Quixote», em novembro de 2023, analisa a evolução económica de Portugal ao longo dos últimos séculos, procurando perceber «as origens históricas do atraso do país» e desconstruir, de algum modo, os mitos do passado que continuam a existir sobre este tema existencial do nosso país. (Parte 3 de 3.)
(Continuação.)
PARTE III – O ESTADO NOVO
No seu livro «As Causas do Atraso Português», Nuno Palma afirma que sobre o regime do Estado Novo e as consequências que teve para Portugal, existe uma literatura abundante que se divide em dois grupos: o que foi escrito durante esse regime pelos seus apoiantes e o que foi escrito depois do 25 de Abril pelos seus opositores. Toda essa literatura, tanto a dos apoiantes como a dos opositores, é de qualidade duvidosa. O que foi escrito na época do Estado Novo já está esquecido, enquanto que quase tudo o que sobre ele tem sido escrito nas últimas décadas esquecido será.
A Primeira República caiu com o pronunciamento militar de 28 de Maio de 1926. Depois da má experiência política de 15 anos e meio do regime republicano imposto pelo golpe militar de 5 de outubro de 1910, já «havia pouca gente disposta a defender este regime dominado pelos caciques do Partido Republicano Português (PRP)». Consequentemente, lembra Nuno Palma, o golpe de Estado de 28 de Maio de 1926 «deu origem a uma Ditadura Militar – conhecida como Ditadura Nacional a partir de 1928 – e, finalmente, a partir da nova Constituição Política que entrou em vigor em abril de 1933, deu origem ao Estado Novo propriamente dito. Os apoiantes da Ditadura começaram por ser um grupo diverso que incluia republicanos, católicos, sidonistas e integralistas. Pouco os unia além do desejo de manter o PRP afastado do poder».
O regime do Estado Novo
Nuno Palma começa por enfatizar que «o Estado Novo foi uma ditadura em que os níveis de repressão e censura aumentaram relativamente aos regimes anteriores, até por ser um regime mais estável e organizado».
Efetivamente, «apesar de a Primeira República ter ficado muito longe de ser uma democracia no sentido moderno, existiu neste regime alternância partidária, alguma liberdade de expressão e até, em certos momentos, alguma legitimidade democrática. Esse regime era, apesar da centralidade do Partido Republicano Português, mais democrático do que a Ditadura Militar e o Estado Novo viriam a ser. Na Primeira República existiam pressões sobre a imprensa e, por vezes, até destruições dos seus equipamentos praticadas pelos apoiantes do PRP, mas, apesar de tudo, a censura não foi exercida de forma tão sistemática como viria a ser no regime do Estado Novo».
De facto, para além da censura, o Estado Novo amordaçou as liberdades, através das prisões políticas, do delito de opinião e das eleições-fantoche… «traços característicos dos sistemas ditatoriais».
A repressão ditatorial do Estado Novo
Ainda assim, afirma Nuno Palma, «importa compreender que, no contexto do seu tempo, a repressão do Estado Novo foi muito ligeira, em comparação com os Estados totalitários da Alemanha Nazi, da União Soviética, da Itália Fascista, ou mesmo da Argentina, já nos anos 1970 e inícios dos 1980. Basta lembrar, por exemplo, que o Estado Novo não restaurou a pena de morte, que em Portugal tinha sido abolida» durante a Monarquia Constitucional «para crimes políticos em 1852 e para crimes civis em 1867».
«Apesar disso», lembra o autor, «durante o regime do Estado Novo existiram algumas execuções extrajudiciais, sendo amplamente conhecido o caso de Humberto Delgado e da sua secretária Arajaryr Campos, assassinados pela PIDE perto de Badajoz em 1965. Além disso, as condições sanitárias na prisão do Tarrafal, em Cabo Verde, corresponderam à pena de morte para alguns dos que tiveram a infelicidade de para lá serem enviados, ainda que tenham sido relativamente poucos».
Convém recordar, no entanto, que o «envio de presos políticos para o degredo das colónias já era anterior ao Estado Novo, tendo sido também praticado pela Primeira República. A Primeira República também tinha sido responsável por sacrificar na Primeira Guerra Mundial milhares de portugueses em nome da defesa das colónias em África».
Apesar do que precede, Nuno Palma conclui que, «independentemente das comparações e do contexto da época, a polícia política, os tribunais plenários e a censura» obviamente «não são aceitáveis».
Por outro lado, acrescenta o autor, «é importante refletirmos sobre os fatores que explicam a sobrevivência de um regime que durou quase meio século e sobre a forma como estes estiveram certamente relacionados com os motivos que explicam o seu baixo nível de repressão».
«Parece improvável que a explicação esteja nos brandos costumes dos seus líderes. Em vez disso, é mais credível considerarmos a falta de necessidade que a ditadura teve de exercer mais violência para sobreviver. Um exemplo disso é o facto de o Estado Novo variar os níveis de repressão ao longo do tempo em função de quando é que a repressão era mais necessária para assegurar a sobrevivência do regime. Veja-se o aumento das detenções entre 1943 e 1949, tendo voltado a diminuir a partir daí, à medida que o regime entrou num período de maior calma. Outro exemplo é o facto de a censura ter sido menos apertada no Ultramar, durante a Guerra Colonial, do que era na Metrópole.»
«Tudo isto sugere» diz Nuno Palma «que o regime em geral não foi mais repressivo porque não precisou; quando precisava, tornava-se mais repressivo. Mas frequentemente não precisava».
«Vejamos porquê… Grande parte da população – conservadora, rural e analfabeta – não esperava grande coisa dos governantes de Lisboa. A política passava-lhes ao lado, a não ser em questões fraturantes. Salazar podia assim ser seletivo ao exerver a repressão, preservando a paz – e o seu regime – sem causar grandes escândalos.» A este respeito, «é possivel argumentar que a Lei da Separação da Igreja e do Estado, de Afonso Costa, acabaria por revelar-se afinal» (após o golpe militar de 1926) «uma benção para a Igreja».
Recorde-se que «esta Lei da Separação da Igreja e do Estado foi apresentada em Lisboa no Palácio Maçónico, em Março de 1911. Foi nesta reunião que Afonso Costa, então ministro da Justiça e dos Cultos da Primeira República declarou que iria destruir a religião católica em Portugal em três gerações» recorda Nuno Palma. «Afonso Costa procurou de imediato implementar um dos mais importantes princípios da ideologia republicana – a laicização do Estado – de molde a reduzir a influência da Igreja Católica na sociedade portuguesa.»
«As mudanças foram grandes. A religião católica deixou de ser a religião oficial do Estado, não reconhecendo a República culto algum (…). Os bens da Igreja foram nacionalizados e o culto passou a ser fiscalizado pelo Estado (…). A vida paroquial passou a ser organizada em redor de comissões laicas que excluíam os padres» (…). A vocação secular da Primeira República manifestou-se ainda por outras formas, como a proibição da exibição de crucifixos nas salas de aula das escolas, a proibição das procissões fora do perímetros das igrejas, e até a proibição do uso das vestes talares (religiosas) fora dos templos.»
«Para além da referida Lei da Separação da Igreja e do Estado e da Lei do Divórcio, Afonso Costa promoveu a publicação de numerosos decretos anticlericais relativos à eliminação do ensino da doutrina cristã nas escolas, bem como de diplomas relativos à expulsão dos jesuítas e das ordens religiosas» do país, facto que lhe mereceu a alcunha de «mata-frades» por parte de muitos opositores políticos do seu tempo.
Ora, argumenta Nuno Palma, todo este conjunto de medidas promovidas pelo referido ministro republicano contra a Igreja Católica, «ajudou a criar um inimigo comum, levando a que o movimento católico emergisse da Primeira República mais coeso do que tinha sido durante o período final da Monarquia Constitucional».
«Desta forma», sustenta o autor, «Salazar – que nestas questões era um político pragmático- conseguiu brandir a reabertura da questão religiosa como uma arma» ao mesmo tempo que fez questão de «manter a Igreja sob controlo».
Por outro lado, entende Nuno Palma, que «numa perspetiva comparada, a ideologia do Estado Novo permaneceu branda, em comparação com o “nacional catolicismo” imposto por Francisco Franco em Espanha. E isto está certamente relacionado com o modo como o poder foi obtido e consolidado nestes dois países, com diferentes relações de força a carcterizarem cada um dos processos: em Portugal, as forças anticlericais não foram fisicamente eliminadas, ao contrário do que aconteceu em Espanha devido à sua Guerra Civil (1936-1939)».
Os níveis de intervenção estatal do Estado Novo
«O Estado Novo não era estranho à intervenção estatal, mas o corporativismo lançado nos anos 1930», diz Nuno Palma, «foi sempre relativo. A sua implementação enfrentou desde o primeiro momento resistências, ficando desde o início claro que estas existiam dentro do regime. Alguns dirigentes, como o ministro das Obras Públicas Duarte Pacheco, por exemplo, não se reviam no corporativismo. Salazar representava o “centro” do regime e a implementação lenta e muito parcial do corporativismo levou os seus defensores, à direita de Salazar, a mostrarem forte descontentamento».
«Existe, de facto quem sustente que o corporativismo nunca foi, na prática, concretizado. A Câmara Corporativa tinha funções meramente consultivas, e nada de concreto era efetivado sem a intervenção pessoal de Salazar que, em última análise, decidia tudo o que fosse importante.»
«Mas a desconfiança do regime relativamente à concorrência manifestava-se no Regime do Condicionamento Industrial. Era necessário um processo burocrático, e em larga medida arbitrário, para abrir ou reestruturar fábricas; só as empresas pequenas ficavam isentas. Era, na prática, uma forma de também limitar o investimento estrangeiro no país.»
«Além disso, existiam outras formas de intervenção estatal, como o tabelamento de preços para alguns setores, como trigo e a indústria da cortiça. Era através dos Grémios – quase 500 em 1945 – obrigatórios e que associavam os patrões, que a produção e distribuição seriam regulamentadas, sendo estabelecidos os preços, quotas de distribuição, crédito, assim como os subsídios. Os Grémios e as Casas do Povo eram vistos comos os mecanismos através dos quais as pessoas podiam defender os seus interesses e, como tal, os lockouts dos patrões e as greves eram proibidos.Existia, portanto, uma forte intervençao no mercado.»
Durante as primeiras décadas de Salazar no poder, existiu a preocupação e garantir preços para produtos que o governo considerava essenciais: o trigo, o azeite,o leite, a carne, e o vinho. Já os frutos e vegetais não neneficiavam de de garantias estatais, sendo comprados a preços de mercado.
A intervenção estatal do Estado Novo só viria a atenuar-se com a abertura da economia portuguesa ao exterior que se deu com a entrada de Portugal na EFTA (European Free Trade Association) em 1960, e no GATT (General Agreement on Tariffs and Trade) em 1962. Esta decisão de internacionalizar a economia foi uma decisão política resultante em parte da experiência vivida com a execução do Plano Marshall. Todavia, nas décadas anteriores à abertura, manteve-se a existência dos preços de natureza protecionista da agricultura portuguesa que ja existiam no século XIX (…) e que continuou até aos anos 60 do século XX.
O regime não teve as características essenciais do fascismo
«Uma vez instalada, a ditadura estava para durar» considera Nuno Palma. O regime não se via como um expediente para resolver problemas e depois restaurar a democracia. Como dizia Salazar na sessão inaugural do primeiro congresso da União Nacional, em 1934: «As ditaduras não me parecem um parêntesis de um regime, mas elas próprias um regime, senão perfeitamente constituido, um regime em formação.» A Constituição de 1933 era ambígua a vários níveis, mantendo eleições e uma Assembleia Nacional, ainda que na prática não passassem de uma fantochada. Representava um conjunto de equilíbrios entre republicanos, monárquicos, integralistas, católicos, funcionários públicos e militares.
«Mas se o regime resultava de um conjunto de compromissos, na prática, a autonomia do executivo era quase total. O regime – ou a situação – como era conhecida à época – nunca fomentou movimentos de massa em seu apoio, que poderiam levar à sua radicalização. Pelo contrário manteve a sua base de apoio que era tradicional e conservadora» (…).
«Salazar era», afirma o autor, «um conservador social e o regime que que construiu e dirigiu era uma ditadura nacionalista e conservadora. Mas o ditador, apesar de ter a sua origem em meios políticos católicos, resistiu a todas as tentativas de tornar a Igreja Católica uma religião do Estado, como aconteceu em Espanha. Nunca quis estabelecer um partido focado em mobilizar a população, como aconteceu nos regimes totalitários. Pelo contrário, o objetivo de Salazar era despolitizar a sociedade».
Em 1938, o escritor francês Henri Massis visitou o ditador em São Bento, depois de outras visitas a Mussolini em Itália, e a Franco em Espanha. O contraste, segundo ele, era óbvio: em Portugal existia uma «ditadura da inteligência», sendo a preocupação de Salazar «fazer baixar a febre política» no país, sem se acreditar na ideia do «Estado omnipotente». Salazar seria mesmo decisivo para bloquear o acesso da direita radical ao poder.
A União Nacional era essencialmente um «antipartido», destinado a agregar as forças civis que apoiavam o regime e que nunca procurou uma clientela popular. Num discurso público, Salazar referiu-se mesmo à classe operária nos seguintes termos: «Não precisamos de a incensar, para que nos sirva de apoio, nem de lhe incendiar as iras para depois a mandarmos fuzilar pelos excesso.»
«Independentemente de alguma estética comum com o fascismo adotada nos anos 1930, o regime nunca teve», na opinião de Nuno Palma, «as caracteristicas essenciais dessa ideologia – tendo sido suprimidos, ao invés, movimentos políticos como o Integralismo Lusitano e o Nacional-Sindicalismo de Rolão Preto». Por sua vez. o corporativismo acabou por ser na prática, segundo Nuno Palma, pouco mais que um tigre de papel.
«Com o Estado Novo», acrescenta o autor, «apareceu em Portugal uma paz social à qual o país já não estava habituado depois do período agitado da Primeira República e das décadas finais da Monarquia».
«Também por isso existiu pouca oposição organizada ao regime até aos anos 40, e depois das eleições presidenciais de 1958, às quais concorreu Humberto Delgado, que de resto, vinha de dentro do regime». Posteriormente, «o progressivo esquecimento de novas gerações relativamente à natureza da Primeira República levou ao gradual emergir de uma oposição cada vez mais generalizada. A oposição intensificou-se a partir da Guerra Colonial, que em 1961 começou primeiro em Angola e, depois se estendeu a outros palcos em África. Até aí, a oposição republicana, antes conhecida como o “reviralho”, tinha sido marginal, pelo menos entre a população em geral, enquando o Partido Comunista Português, financiado pela União Soviética, também não conseguia encontrar sólido apoio entre a população».
Em suma, concorde-se ou não com as opiniões de Nuno Palma, a leitura deste livro pode de algum modo ajudar-nos a olhar para o nosso passado histórico e para a velha questão das causas do atraso português com olhos novos, contrariando um certo acriticismo académico, ideológico e cultural que, antes e depois do 25 de Abril, condicionou de forma indelével o debate crítico sobre a percepção que cada um de nós possa ter sobre os últimos séculos da nossa História e sobre alguns dos mitos ou juizos simplificados a eles associados.
Mas porque muito mais há a dizer sobre o regime do Estado Novo, em próxima crónica voltaremos oportunamente à análise feita sobre este tema pelo autor do livro «As Causas do Atraso Português».
Partes 1 e 2… [aqui]
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«Portugal e o Futuro», opinião de Aurélio Crespo
(Cronista/Opinador no Capeia Arraiana desde Julho de 2020)
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