Não contava os dias para a reforma, tendo já passado por todos os Serviços de Investigação Criminal deste país, quando inesperadamente fui chamado ao gabinete do Superintendente. Qual terá sido a chatice desta vez?
Neste serviço não há muito protocolo. As informações que circulam mesmo sendo atrás das costas são de assuntos sérios para a segurança do Estado.
Com o elevador avariado, sabe Deus há quanto tempo, lá subo os quatro andares do edifício mais bem escondido de Lisboa.
– Dá-me licença Excelência?
Desta vez rugiu um sorriso. E, ao contrário das outras vezes, até pediu-me para sentar à frente da pilha de papéis que o entrincheiravam contra os indesejáveis.
«Tenho aqui um envelope do Gabinete do Sr. Ministro para uma missão especial. Depois de vários encontros que tivemos achávamos que o Doutor tinha o perfil para esta tarefa.»
Despachando-me como um simples requerimento, lá saí a contar os passos que faltavam até à minha secretária.
Em tanto tempo de serviço já nem sei a que ministério pertenço nem tão pouco o nome do ilustre senhor.
Eram dua folhas, sendo a primeira a tradicional míssiva do Chefe de Gabinete que transcreve o despacho de Sua Exa. Portanto o importante era mesmo a segunda folha.
Interessante. Era do Gabinete da Presidência da Comissão Europeia. Era preciso resgatar no Egipto uma peça que continha um «chip», peça essa do interesse da Agência Espacial Europeia.
Senti-me um carteiro internacional. Ir buscar algo e depois entregar tal como o serviço postal.
Mas voltando a ler, reparo que no último parágrafo teria de me apresentar na Agência de Segurança Europeia e referir um código que convinha memorizar. O tal ofício não podia sair dos serviços portugueses.
Tenho lá cabeça para memorizar códigos. Mesmo o «pin» já é um problema. Escrevo então num cartão mas invertido na ordem sequencial.
Lá recebo então o bilhete de avião, vou a casa fazer a maleta e sigo para o aeroporto. É verdade e o computador? Ligo então ao meu chefe, um jovem educado e que me tem apoiado bastante.
«Desculpe o incomodo chefe o que não devo levar para a ASE?»
«Nem computador, passaporte e nada electrónico. Se tiver um telefone analógico seria o ideal.»
De facto guardo tudo, e em muitas operações levo o «teclas».
Tudo tranquilo até chegar ao controlo de segurança da ASE. A entrada é através da introdução do dito código. Estranho! Dá erro.
Como não podia ligar a ninguém vou insistindo até que aparece um jovem alto tipo «Boss», óculos escuros e em francês pergunta o que ando ali a fazer. Mostrei o CC e o papelito com o código tendo ele logo entendendido que estava ao contrário. Pediu-me a caneta e o 9 seria 6. «Allez s’il vous plaît.»
Lá entrei e um altifalante me ia orientado até que diz «attends ici s´ill vou plaît». De facto estou junto a uma porta. Um ou dois minutos a porta abre-se automaticamente e vejo um gabinete tipo «era espacial» mas pelo menos tinha cadeiras. As dores nas artroses estavam a ficar impossíveis.
Um jovem veio-me atender e levou-me à tão desejada cadeirinha. Era português mas nada mais podia dizer. Falamos um pouco do tempo e do futebol até que chega o chefe, descendente de portugueses porque se identificou como luso-francês. Uma regra básica ali não haviam nomes próprios: só os códigos. No meu caso estava ao contrário levando um bom tempo para me identificar.
Indo ao que interessa era preciso ir ao Egipto buscar um «chip» do interesse da Agência Espacial Europeia. O «chip» terá sido roubado aos israelitas e como já conhecia alguns países árabes e nunca tinha estado em Israel, ou no Estados Unido, a Mossad teria dificuldade em me identificar.
Obviamente que já tinha a minha nova identificação e me deram tudo o que é necessário para a missão. Até o visto de turismo!
Seria então um tal de José Mendes, português reformado, mas que ainda estudou no Reino Unido uns anos, sendo a minha profissão Professor de Filosofia.
Mas quando chegar ao Cairo?
«Estará lá um guia turístico. Vai numa excursão com portugueses só que embarca e desembarca em Istambul. Foi criada conta no Facebook com fotos dos meus passeios e datas coincidentes com a estadia em Istambul. Também tem um perfil no LinkedIn mas não no Instagram. Porque normalmente esta rede é mais usada por jovens.»
Tinha uma mala e deixei todos os meus pertences num serviço próprio para o efeito que incluía vestiário para mudar de roupa. Até os óculos eram outros e coincidiam com a foto dos documentos.
Um carro levou-me para o «Charles de Gaulle» e embarquei directamente no avião sem qualquer controlo de saída.
Depois do voo de três horas e meia, cheguei a Instambul e o único controlo era verificar se o bilhete do voo coincídia com o nome do passaporte.
Nem duas horas esperei e lá embarquei para o Cairo onde apanhei o primeiro susto. A bagagem, apenas uma mala, sumiu. Não perdi tempo e a companhia pediu para esperar pelo próximo voo, porque terá havido um lapso em Istambul. Como estava num hotel o serviço do aeroporto me levaria evitando os outros turistas esperarem ainda mais.
O hotel era razoável e dava para ver os bicos de uma ou duas pirâmides. A comida era frango ou frango, porque hambúrguer nestes sítios não é aconselhável. E estava sem a levedura para as diarreias, provocadas principalmente pela Echirichia coli, embora com tanta viagem fora da Europa já deveria ter anticorpos para etas bactérias.
Na manhã seguinte sou acordado e lá visto novamente a roupa, tendo no entanto lavado a roupa interior que com aquele clima até escaldava.
O guia trouxe a mala correecta. Depois disse que numa venda de produtos turíticos uma jovem anã, de nome Fátima, após algumas compras me oferecia uma «chave da vida», algo muito parecido a uma cruz.
Apenas no segundo dia o guia mencionou que gostava de ajudar uma jovem deficiente e levava sempre os turistas como forma de ajuda. Na verdade a jovem era uma simpatia e até comprei algumas coisas para ofertar à família e amigos. E, tal como se esperava quis oferecer-me a «tal oferta» como também o fez a outros bons clientes.
Mal cheguei ao hotel coloquei-a na mala que tinha um compatimento com seis números onde o fecho corrido ficava preso.
A viagem lá possegue normalmente, o artefacto era de madeira, não se salientando nos controlos de segurança, até que um dia que subia para um barco, em Luxor, sou atingido ao subir a rampa de acesso, mas felizmente no número superior. O atirador falhou por centímetros o coração. Instalou-se o pânico porque ainda por cima caí para o Rio Nilo, mas o guia soube manter a ordem pedindo a ajuda de dois voluntários que me resgataram.
A ambulância chega entretanto e sou conduzido ao Luxor Medical Center, onde fui pontamente assistido e diagnosticado. Levei uma transfusão de sangue só que o ortopedista disse que a bala afectou a ligação umeral e teria de ser operado.
Assinei o consentimento e tive de aguardar um dia pela chegada do cirurgião que veio de avião do Cairo.
A operação correu muito bem tendo tido logo alta passadas doze horas para verificação dos sintomas do pós-operatório.
Usando o cartão de crédito paguei todas as despesas, e fiquei sem saber o que fazer.
Entretanto recebo uma chamada do Chefe. Soube do incidente mas depois me daria os detalhes e que seria evacuado de Luxor por avião. «E de resto tudo bem?»
Caí em mim e esqueci-me da mala. Nem pensar em falar no asunto. Despedi-me cordialmente do Chefe e liguei prontamente ao guia. A mala está em Hurghada guardada na recepção do «resort». Amanhã voltariam para o Cairo. Tinha de vir de taxi rápido. Ele arranjaria e na verdade pouco tempo depois apareceu no hospitaler um motorista com uma van de luxo tendo em conta o estado do meu braço ainda combalido e porque uma parte da viagem era feita em picada.
A viagem eram cerca de sete horas o que com o regresso totalizava catorze.
Ainda não tinha recebido os bilhetes e pedi urgência ao motorista com uma compensação em euros.
Numa grande parte do trajecto não há rede. Deixando-me em paz. O que interessa é o «chip».
O homem lá fez o que pode. E em menos de cinco horas chegamos a Hurghada.
«Qual é o resort?», questiona-me em inglês.
Por causa da bateria ligo o telefone aparecendo-me inúmeras mensagens de voz do Chefe e mails, mas agora o foco era o resort. Ligo ao guia e até me fornece as coordenadas que coloco no meu relógio. Ainda faltavam pelo menos uns dez quilómetros.
Passo a orientar o guia, que se engana de quando em vez, gastando quase uma hora no resto da viagem.
O Guia já me esperava mas o motorista pede algum dinheiro para comer. Dei-lhe quinze euros e fui a correr buscar a mala.
Espero mais uma eternidade e recebo a mala correndo para o carro para verificar.
Não abria! Também só com um braço não era fácil.
Vi melhor, não era aquela. Voltei a correr e o Guia a ajudar. Sabia o número do apartamento e seguramente deveria haver uma identificação.
Entretando o motorista chega pronto para arrancar fazendo má cara ao vendo toda aquela confusão.
«Onde está a mala do Senhor?» Gritava o guia em árabe. Toda a gente procura até que um empregado a descobre no apartamento. Vou em passo acelerado mas dores do pós-operatório ainda se faziam sentir. Mas quando vi finalmente a mala reparei que entretanto teria sido aberta. A zona da divisória teria sofrido uma tentativa de ser arrombada, mas sem sucesso. Senti um alívio, ouvindo logo o telefone. Era o Chefe!
Estava danado. Nem o reconhecia. Deixei-o falar à vontade. Tinha perdido o voo e o próximo seria hoje mas apenas pelas oito horas.
«Ok Chefe. Depois explico. Complicações com o pós-operatório. Já está tudo bem!»
Regresso a Luxor ainda mais rápido com gritos em cada salto porque o efeito analgésco começava a passar.
Faltavam quatro horas para fazer o «check-in» e a van voava.
Chego mesmo em cima da hora de fechar o balcão, mas consegui com a ajuda do motorista. Dei-lhe uma boa maquia e ele quase me beijava os pés sabendo que já tinha a polícia a passar-lhe multas porque a carrinha ficou mal estacionada.
Liguei entretanto ao Chefe, já na porta de embarque. Estava cheio de dores mas fingia que tudo estava bem. Quiseram fazer um TAC para ter a certeza de que os parafusos estavam bem. De resto tudo ok. Falaríamos em Paris, visto que a encomenda seria para a ASE.
Na verdade não confirmei se a «Chave da Vida» estaria na mala. Mas como não conseguiram abrir o compartimento, acreditei que sim.
De resto a viagem correu bem até Paris, apenas apitando no controlo de segurança mas mostrando o TAC com a prótese no braço. Alguns ainda usavam um detector portátil e confiavam, embora no Cairo me levassem à sala de controlo por RX.
Chegado finalmente a Paris, com o braço ao peito, reparando que já estava na pista uma viatura à minha espera. Ao descer das escadas um agente que estava junto do «pessoal de terra» da companhia aérea fez-me sinal e ajudou-me a entrar no carro.
Fomos a alta velocidade para a ASE, sentindo frígido silêncio, interrompido apenas para me informar de que a mala estava na bagageira da viatura.
Mal chego, estava uma maca à minha espera e nem me deram tempo. Ajudaram-me a sair e alguém me colocou uma gaze de clorofórmio no nariz e nada mais me lembro.
Acordo numa quarto de um hospital, cheio de dores no braço e estremunhado. Um enfermeiro falou comigo em francês apenas dizendo que estava tudo bem, e que dariam um «pain killer» para ajudar minimizar a dor.
Reparei que estava a soro e de facto não sentia fome. E notei que o ombro estava cheio de ligaduras e estava completamente imobilizado.
Talvez uma hora depois chega o Chefe, com dois agentes, saindo de imediato o pessoal hospitalar.
«Bom trabalho senhor Inspector. Os meus parabéns. Um trabalho 100 por cento conseguido.»
Respondi amavelmente a agradecer mas na verdade até me pareceram umas férias. Tudo correu como planeado!
O Chefe riu-se. Não terá sido bem assim. Relevou a minha resistência ao tiro, às peripécias à procura da mala num estado de completamente combalido e ter ainda conseguido regressar bem e com o «chip». Porém o atentado não estava no programa. Segundo a Segurança Egípcia terá havido uma fuga de informação e a Jihad islâmica terá entendido o contrário. Ou seja que o «chip» seria para entregar à Mossad, uma vez que os jihadistas o identificaram como judeu.
«Ok. E depois?», continuava a Leste do Paraíso.
«Os Egípcios fizeram um belo trabalho. Aproveitando a confusão da sua evacação para o Hospital acorreram à mala identificaram a Chave da Vida e foram rapidamente para o hospital, para que chip fosse introduzido na prótese. A Chave da Vida que tem na sua mala não é mais do que um souvenir desta missão.»
Por isso a outra operação ao ombro. E que figura ridícula de ter andado a correr sei lá por onde por causa do «bibelot».
«Na verdade nunca suspeitámos que a Jihad soubesse que o Inspector fosse o correio. Mas eles pensavam que o chip estivesse dentro do seu corpo. Daí quererem-no matar e após o médico, no local, assinar o óbito, já tinham conseguido uma equipa de “post-mortem” num dos principais hospitais públicos do Cairo para vasculhar onde estaria o chip».
«Convém realçar que a Jihad tem muitos apoiantes no Egípto. Só que no meio de tanta confusão logo após o incidente, chegou primeiro a ambulância do Luxor Medical Center. A outra terá ficado retida no tráfego caótico do Cairo.»
«E a nova operação, correu bem?»
Mudaram a prótese para uma feita em titânio que raramente apitará nos aeroportos.
«Ok. Muito obrigado pela vossa amabilidade. Sabem se a prótese vai causar algumas dores no futuro? Enfim um “empecilho” que ficará para a vida…»
«Não! Nem pense nisso, agora que está prontinho para regressar. E já agora um conselho… em qualquer imprevisto ligue. Até teria tempo para aproveitar as belas praias do mar vermelho.»
Kuito, 13 de Novembro de 2024
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«No trilho das minhas memórias», por António José Alçada
(Cronista/Opinador no Capeia Arraiana desde Junho de 2017)
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