Quatro versos apenas bastaram para que, no génio da sua poesia, Manuel Alegre (filho de Francisco Duarte que, por finais dos anos 20, pusera o recorde de Portugal do salto com vara em 3,30 metros) revelasse o espírito (e não só…) que atirou Carlos Lopes à imortalidade… (1).
Mais do que ser primeiro
Herói é quem
Sabe dar-se inteiro
E dentro de si mesmo ir mais além
Nascendo no Hospital de Viseu, o batizaram-no como Carlos Alberto de Sousa Lopes. Em Vildemoinhos cresceu, numa casa de pedra ao lado de outra que ficaria famosa por lá se realizarem (algures por 1937) as filmagens da «Maria Papoila» – o filme de Leitão de Barros onde Mirita Casimiro (que, tendo até toureado a cavalo, ao divorciar-se de Vasco Santana, se casaria com João Jacinto que, como atleta do Sporting, se tornara campeão nacional de 400 e 800 metros em 1943 e, nessa época, ainda foi campeão de 4×400 metros) dizia adeus à linda serra de neve a brilhar, cantando:
Não me importo de ir à toa
que o meu sonho é ver Lisboa
mais o mar que eu nunca vi.
Algures por 1943, na revista «Saúde e Lar», escrevera-se: «O melhor desporto para homens e rapazes não é o futebol ou a corrida, é a horta, por cultivar um pedaço de terreno é um prazer inefável.»
Fora, todavia, pelo futebol que, dois dias antes de Carlos Lopes vir ao mundo (para o conquistar como não se imaginaria…), Portugal se agitara em espanto com a vitória do Sporting sobre o Benfica por 6-1 – e, dois dias depois pelos jornais correu igualmente nota despachada pelo «sr. Diretor-Geral dos Desportos», informando o que acabara de resolver: «Todos os menores que praticam futebol, quer estejam ou não na Mocidade Portuguesa, carecem de autorização do Ministro da Educação Nacional para o poderem praticar.»
Por essa altura, andava já Arthur Duarte a transformar peça que Félix Bermudes (que deixara, entretanto, a presidência do Benfica) escrevera para teatro: «O Leão da Estrela» e, pelo filme passaria (em imagens reais) o fulgor dos «Cinco Violinos» a jogarem contra o FC Porto.
Vivendo-se ainda sob o efeito a arrastar-se das sequelas (ou pior…) da II Guerra Mundial (mesmo por cá onde ela não chegara…) num relatório de polícia escrevera-se: «Em Viseu, as ruas, de dia para dia, veem-se pejadas de pobres e em especial de crianças. A fome alastra e é bem evidente, provocando distúrbios diários na ordem pública.»
(E, claro, não era só em Viseu que a ainda não resolvida «questão dos abastecimentos e dos racionamentos» provocava «frequentemente motins populares, com gritos de fome ao menor pretexto, nas bichas que, dia a dia, parecem mais longas em vários e muitos concelhos de Portugal…»)
O que Carlos Lopes teve de fazer para que não se passasse «mais tosse»
Campestre de alma e coração (de onde nunca tirou Santa Comba Dão), António Oliveira Salazar, o presidente do Conselho, já o exclamara: «Um povo que tenha a coragem de ser pobre é um povo invencível» – e não, não era essa a coragem que Carlos Lopes já tinha a refinar-se, dia após dia, cada vez mais, à medida que crescia, sem que Portugal mudasse ou fugisse do seu ao seu salazarento cinzentismo (ou pior…), na tentação do pobrete mas alegrete:
– Quando eu nasci já o meu pai trabalhava na Viseu Industrial, empresa de serração de madeira e pedra, carpintaria e serralharia. Era então ajudante de maquinista. Ganhando pouco, também tinha de trabalhar em casa como sapateiro, os primeiros sapatos que tive foram feitos pelo meu pai…
Até aos 20 anos, António Lopes fora chanateiro e, não deixando mais de arranjar chanatos (e sapatos) nos seus biscates, após casar-se virou golpeador: «Cortava a madeira das árvores, tornando-a lisinha, era duro e mal pago: 18 escudos ao dia.»
Por um par de sapatos normais em lojas pagavam-se 190 escudos, quem não fosse rico achava que aqueles que se vendiam em pelica a 50 escudos estavam cada vez mais caros. Por isso, ainda era usual ver-se, dos campos às cidades, gente descalça – e ainda mais que mulheres de tamancos muito mal atamancadas.
Se nos bordéis de província homens «podiam servir-se de prostitutas cada vez mais jovens, rapariguinhas ainda por espigar, a 10 escudos», 113 escudos custavam, então, nos Armazéns do Chiado, fatos de banho «chiques e modernos» (que desgostavam a Mocidade Portuguesa Feminina e outros «castos da Nação»…) – e a António Lopes apanhar-se-lhe-ia também a revelação (dias após Carlos Lopes de tornar vice-campeão olímpico de 10 000 metros, já depois de se tornar campeão do Mundo de corta-mato): «Foram tempos difíceis, os nossos. É verdade que vivíamos mal… e até passámos muita tosse. Trabalhava-se muito, ganhava-se pouco. Mas havia quem estivesse pior e, para que nós não estivéssemos pior, lá teve de ir o Carlos para a labuta no fim da quarta classe…»
– Até aos 13 anos era um pisco a comer. Comia muito pouco. Não, não era por falta de comida, isso, nunca nos faltou. Só não gostava. Então tudo o que levasse cebola, era um problema. Mas a partir dos 13, quando comecei a trabalhar, parecia um leão, tudo o que vinha marchava… Ainda por cima a minha mãe era boa cozinheira. E lembro-me que ao domingo a minha avó paterna fazia sempre coelho com arroz e eu arranjava sempre forma de lá ir comer aquilo…
Esses eram, ainda, os tempos em que incomuns não eram notícias como aquela que contava que, no Porto, a polícia prendera viúva que apanhara a remexer caixotes do lixo em busca desesperada de sustento para os filhos. Ou que varina topada a palmilhar (às vezes com quase 30 quilos de peixe na canastra, à cabeça) ruelas sem a chinela no pé fosse por isso condenada a multa de 17 escudos e a mais 50 escudos de imposto de justiça – tendo dias, muitos dias, em que nem metade desse valor ganhava.
Raro não era igualmente que por Lisboa andassem outros polícias (os «polícias dos Costumes»…) em busca de quem atentasse contra a «moral e os bons costumes» nos logradouros públicos e jardins e «em especial nas zonas florestais» (sobretudo em Monsanto, por onde Carlos Lopes haveria de começar a descobrir os caminhos que o levariam à eternidade…) – e toda embrulhada em pudor era a (inspirada) linguagem com que se determinava o «crime» e as coimas: «Mão na mão, multa de 2 escudos e 50 centavos. Mão naquilo, de 15 escudos. Aquilo na mão, de 30 escudos. Aquilo naquilo, de 50 escudos. Aquilo atrás daquilo, de 100 escudos. Com a língua naquilo, multa de 150 escudos, preso e fotografado».
Jeito do pai para o jogo da malha levou-o ao chumbo
Para a escola de Vildemoinhos entrou Carlos Lopes aos oito anos. Na parede cimeira da sala de aulas, tinham-se, reverentes, os retratos de Presidente do Conselho e do Presidente da República. Ao lado do quadro negro de ardósia não deixava de estar mapa de Portugal e das suas Colónias. Cantava-se o hino e rezava-se e, tal como no país, a autoridade que pertencia, toda ela, ao professor, não se questionava, não se discutia.
Na revista «Saúde e Lar» escrevera-se: «Nas escolas, os castigos corporais não é velharia que deva ser posta de parte como a Inquisição ou a bota de elástico, tal revela-se perfeitamente oportuno quando aplicado com justiça a determinados alunos e situações…»
A regra era, tal como no país, ensinar a trabalhar e a obedecer – num clima de ordem e silêncio, respeitinho e medo. Violá-lo dava, inevitavelmente, em reprimenda ou punição. Para os castigos físicos havia (sem disfarces ou contemplações) a palmatória, o ponteiro, a régua, a vara, a cana, o puxão de orelhas ou de cabelos, a cabeça jogada à parede. Para os castigos psicológicos havia (sem disfarces e contemplações) o insulto e a humilhação, o uso das orelhas de burro e o suplício dos braços abertos a fazer o Cristo em frente à turma a gozá-lo. Tudo isso poderia surgir de barulhos ou perturbações, de enganos nas contas ou nos afluentes de um rio em Angola ou em Timor, de erros em demasia nos ditados ou de borrões fortuitos nos cadernos – do que o mestre-escola quisesse ou lhe apetecesse.
Meses depois de Carlos Lopes chegar à primeira classe, o atletismo português viveu o maior momento da sua história até então: a vitória de Manuel Faria na São Silvestre de São Paulo.
(Trabalhando como empregado de escritório, a 1000 escudos por mês, ainda assim Luís Aguiar, o seu treinador, tinha de ir buscá-lo de motoreta ao trabalho para que Faria chegasse a horas ao treino, sem se perder na demora e nas maçadas dos elétricos ou dos autocarros).
Na escola, o Carlos logo encontrou o que também era padrão nesse salazarento Portugal de lés a lés: o «muro da vergonha» que «protegia» as raparigas do «horroroso perigo» que se soltava dos rapazes – e ao professor Diogo se apanharia a revelação (igualmente dias após Carlos Lopes se tornar vice-campeão olímpico de 10 000 metros, já depois de se tornar campeão do Mundo de corta-mato): «Já foi há alguns anos e a verdade é que não me lembro lá muito bem se ele era bom ou mau estudante. Se eu soubesse o que vinha a ser… Lembro-me apenas que um dos seus irmãos era melhor estudante. E que já nessa altura eram os alunos que limpavam a sala e que depois de cada limpeza desaparecia sempre a régua.»
Não, não era nada (mesmo nada) mau aluno, o Carlos. Preferia os números às letras, muito bom era na caligrafia e, por isso, se usavam os seus trabalhos como exemplos de primor. E se, na primeira classe, levou com um «chumbo», foi por um insólito capricho (ou ressentimento talvez) que o levou:
– A culpa foi do grande jeito do meu pai para o jogo da malha! Sim, um dia, estando eles ao despique, o professor Diogo colocou a malha mesmo em cima do feijão e avisou o meu pai: se ele lhe retirasse aquela vitória, chumbava-me – e o certo é que eu tive mesmo de repetir a primeira classe…
«Não, não foram pêssegos que fanei – foram uvas…»
A confidência soltá-la-ia António Lopes (com Portugal já a viver a euforia do filho campeão olímpico): «Em rapazito, o Carlos era a mesma coisa que é agora. Só uma vez é que me deu um problema. Foi a uns pêssegos aqui do quintal do vizinho e, claro, o dono fez-mos pagar bem pagos. Mas foi o único problema!»:
– Não, não foram pêssegos que fanei a um vizinho, foram uvas. Não, também não foi por fome, apesar das dificuldades que nós tinhamos, de passar fome não me lembro… Isso das uvas foi mais coisa do meu espírito, do vício que eu tinha de me meter com as pessoas. Só que não dava nas vistas. Ou melhor, só dessa vez é que dei nas vistas. Não era malandreco, de chatear muito… mas não era santo nenhum, sabia fazê-las.
Humilde e acanhada era a casa onde a família vivia a família Lopes:
– Tinha em redor um palmito de terra para cultivar…
disso se encarregava Emília (a mãe do Carlos):
– Era ela que plantava o que nos punha na mesa: as batatas, as couves, as cebolas… Criava galinhas, às vezes o porco para a matança. Muito boa em contas, a minha mãe era a… chefe de casa e mais do que isso… cozinheira fabulosa, como nunca vi!
(Continua)
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«Às voltas da História», crónica de António Simões
(Cronista no Capeia Arraiana)
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