«Acudam, acudam, ai meu Deus!»… A pobre filha vai ver de sua mãe e descobre-a morta. O choro e desespero levam o povo a acorrer e apoiar a desgraçada não deixando o Guarda de querer ver o homicídio…
Era a Capitolina, uma idosa com 74 anos, confirmando o Guarda que não respirava e não lhe sentia o pulso. As recomendações eram precisas: «Toda a gente fora daqui e por favor não toquem em nada. Vá fora!» A curiosidade popular de quererem ver a Capitolina era grande. O ser humano tem em si uma tendência de ver a desgraça alheia.
Enquanto o povo começava o seu julgamento popular, com vaticínios de este ou daquele, alguns amigos e familiares consolavam a filha encharcada de pranto e desconsolo, sentindo impotência de nada poder fazer.
O Guarda sabia o que tinha de fazer. Praticamente sem meios comunicou para a Unidade de Investigação Criminal na capital do distrito, a quase três horas de distância. Ele sabia que devia não tocar em nada, mas a invasão popular encheu aquele quarto humilde de dedadas «estragando», provavelmente, o trabalho da equipar forense.
Médicos também andavam longe. Apenas uma vez por semana lá aparecia um para auscultar e passar receitas. E daí o Guarda pedir que viesse um patologista, porque até pode ter ocorrido morte natural.
A neta veio falar com o Guarda: «Que fazemos Sr Guarda? Quero ir para junto da minha avó!» O Guarda pacientemente explicou que enquanto não viessem os técnicos forenses e o médico não se podia entrar. O espanto da rapariga acendia-lhe a raiva. «Técnicos de quê? Só quero estar ao pé da minha avó!»
A paciência do Guarda já lhe faltava. Com o colega de folga, apenas o único de serviço no posto, procurava não cometer erros enquanto não chegassem os reforços da capital. De vez em quando lá ouvia um grito: «Foi o meu cunhado, um malandro que só rouba para comprar droga!» Mas outros vaticínios não faltavam notando o Guarda as velhas rivalidades das famílias.
Finalmente chega a equipa forense com detectives da Unidade Criminal. Vieram rápido com as sirenes acompanhadas de lanternas azuis e vermelhas que assustavam os automobilistas. Faz anos que naquelas estradas não viam algo assim.
O Inspector, chefe da delegação, foi logo ter com o Guarda: «Onde está o suposto cadáver?»
O Guarda acompanhou ao local. O adjunto foi falar com a família da vítima levando o bloco e caneta. O outro adjunto foi tirar fotos ao local do crime acompanhando o Inspector e o Guarda.
A falta de respiração e a coloração branca sem dúvida que confirmava a morte. O Inspector com luvas tentou ver sinais de violência ou sangue por disparo de arma de fogo. Entretanto a equipa forense tentava obter impressões digitais mas pediu para ficarem sós por que a presença poderia danificar alguma prova importante.
«O Patologista não tarda chegar», disse o Inspector ao Guarda, que dificilmente não conseguia esconder a sua inquietação, não só por ser o seu primeiro crime numa carreira de quase trinta anos como agente como o stress bloqueava se teria feito todos os procedimentos previstos na lei.
Sentindo essa inquietude, o Inspector leva o Guarda até ao muro de onde se vê o rio passar. Encostaram-se e o Inspector, bem mais novo, reparou na roupa estendida pela encosta sobranceira à aldeia vendo os estendais cheios de roupa branca. Questionou o Guarda e ele explicou que era um costume local. O luto era com roupa negra, mas a roupa de dormir e os lençóis tinham de ser brancos. E essa roupa era lavada todos os dias logo de manhã e com o sol secava para a noite. A encosta era virada a sul e raramente não secava. De facto, muita gente naquele local vivia em luto.
O Patologista finalmente chegou e dirigiu-se após indicação do Inspector.
O adjunto aborda o chefe com o que consegui recolher de dados relevantes, após questionar familiares e outros populares. O problema é a compilação, porque há uma tendência de acusar fulano ou sicrano, mas houve alguma unanimidade num depoimento: na madrugada ouviram uma viatura que estacionou no largo, junto à casa da vítima, e depois arrancou a alta velocidade. A chapa de matrícula foi mesmo impossível e a marca havia muitas contradições. A cor seria cinzenta e a viatura topo de gama.
O Inspector liga logo para a PJ e questiona o colega se andam à procura de algum grupo criminoso que tenha uma viatura com estas características e actuasse na madrugada. Antes da resposta pediu um tempo para consultar a Base de Dados, embora nessa zona não se recordasse nada parecido.
Entretanto chega o Patologista. A vítima sofreu de uma paragem cardiorrespiratória, mas tinha de ser confirmada em autopsia. Porém não deixava de ser estranho estar deitada no chão e não na cama. Normalmente quando sente sintomas preocupantes há sempre uma tendência de um doente procurar o leito.
A equipa forense não detectou nada de especial porque haviam imensas impressões digitais espalhadas, principalmente na sala. No entanto numa das gavetas do móvel conseguiram detectar uma amostra conclusiva, mas terão de regressar à medicina legal para averiguar de quem são. Parecem da vítima, mas naquela gaveta em concreto afirmaram que estas evidências são recentes.
O carro funerário chega e transporta a vítima para a Medicina Legal, seguindo o Patologista.
O Inspector solicita ao Comando da Guarda reforços no local e um psicólogo para apoio da família.
Entretanto recebe uma chamada da PJ. No distrito a Sul ocorreram vários crimes com uma viatura Audi A3, cor cinzenta metalizada com a matrícula 2345WG78. Os suspeitos actuam em plena madrugada e só num caso a vítima foi asfixiada. As restantes sofreram de paragem cardiorrespiratória. O objectivo é o roubo das poupanças e coagem a vítima até que o corpo humano actue de morte natural. As vítimas moram sozinhas, idosas e vulneráveis, em sua maioria do sexo feminino. Disseram também que os suspeitos devem ter o esconderijo em Espanha e circulam pelas estradas rurais. A «Guardia Civil» também anda no seu encalce porque em zonas remotas o «modus operadis» é semelhante.
Depois da saída da equipa forense o Inspector colocou as luvas e perguntou à filha da vítima onde a falecida guardava os pertences. Mesmo muito combalida e sentindo uma profunda angústia de injustiça, lá acabou por dizer que era numa gaveta do móvel da sala, não se lembrando de qual seria.
O Inspector e o seu adjunto cuidadosamente analisaram as quatro gavetas e não detectaram pertences.
Entretanto recebe uma chamada do Patologista. Confirma-se a paragem cardiorespiratóra mas há sinais de contracção muscular provavelmente por um stress precoce.
O Presidente da Junta também lá se encontrava apoiando socialmente a tragédia.
O Inspector falou com ele, mas numa aldeia com tantos idosos infelizmente a taxa de mortalidade é preocupante. Mas deu-lhe o contacto do médico que vai à periodicamente à aldeia.
«Boa tarde senhor doutor, sou Inspector da PJ e estou na aldeia da roupa branca. Ao que parece uma senhora terá sido vítima de uma paragem cardio-respiratória. Tem ideia de algum caso semelhante?»
Fez-se um breve silêncio. Mas o médico apenas se lembrou de um caso de um idoso com 94 anos durante as Festas da Aldeia. Porém o colega que assinou o óbito não deu grande relevância dada a idade e a pedido da família nem foi autopsiado porque não queriam deixar de estar próximo do corpo. Era Agosto. Os serviços funcionavam com muitos constrangimentos. Porém o Comando da Guarda tem dados da ocorrência. Normalmente as doenças mais graves são AVC e pneumonias, mas ainda conseguem ser transportados em vida para o hospital da capital, morrendo grande parte, no caminho dada a idade avançada.
O Inspector chama o Guarda e questiona do conhecimento da morte deste idoso. A resposta foi coincidente com a do médico. Pede então para falar com a família mais próxima. Apenas uma irmã mais nova subsiste. Os filhos embora tenham lá casa vivem em Lisboa e apenas regressam nas épocas festivas.
A conversa com a Senhora foi deveras interessante. Ainda durante o velório ocorreu grande discussão por causa do dinheiro e valores. E os herdeiros acusaram-se mutuamente do desaparecimento. Ela por ser irmã nem se quis meter. Problemas já não eram para a sua idade. Mas ouviu os lamentos dos sobrinhos sem tecer qualquer opinião.
Por serem as Festas da Aldeia os carros estrangeiros e topo de gama não faltam. E a algazarra vai noite dentro.
Chegam os reforços da Guarda e o Inspector dá instruções para que ninguém entre no local do crime. E que de noite façam patrulhamento nas aldeias mais próximas dando-lhes os dados da viatura.
A Unidade de Investigação Criminal regressa à capital, não deixando o Inspector de sentir um vazio de desconsolo.
Ao chegar à capital vai ter com o Comandante do destacamento da Guarda e pede-lhe o máximo apoio para tentar apanhar os criminosos. Se o patrulhamento identificar a viatura chame imediatamente reforços e contactem urgentemente a Unidade de Investigação Criminal.
Assim ficou combinado e nem foi preciso esperar muito. Numa aldeia mais a Sul, dois dias depois o carro foi identificado embora com outra matricula, mas do mesmo país.
Uma ambulância também foi e conseguiram fazer um cerco à casa onde se ouviam gritos num tom de português atravessado.
O Comandante deu ordem para entrar na casa arrombando a porta e apanhando de surpresa os criminosos. Estavam a vasculhar as gavetas com luvas, mas desarmados.
A vítima já se encontrava no chão com convulsões entrando atrás dos guardas assim que foi dado sinal de segurança.
Transportado de emergência para o hospital, os criminosos ficaram sob custódia da Guarda e entregues à Unidade de Investigação Criminal.
No principio da manhã seguinte a «Guardia Civil» foi informada parabenizado o sucesso e solicitando os dados de identificação para envio de um Mandado.
Kuito, 27 de Outubro de 2024
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«No trilho das minhas memórias», por António José Alçada
(Cronista/Opinador no Capeia Arraiana desde Junho de 2017)
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