Naquele Outubro, quase, quase a chegar ao fim, a tia sentia-se inquieta. Estava a aproximar-se o dia de Todos os Santos e não tinha recebido o dinheiro das castanhas vendidas nem o tio tinha trazido o dinheiro dos serviços feitos na Quinta da D. Laurinda. Não que ficasse por pagar, mas agora é que lhe fazia falta.
Na sexta-feira, à tardinha, lá vinha o meu tio de chegada e, pelo sorriso, deveria ter recebido a «paga». Que alívio sentiu a minha tia. É que já tinha feito a encomenda para segunda-feira, mas estava apoquentada com o dinheiro.
As «boleiras» de Vale de Espinho, desde quinta-feira que aceitavam encomendas e já tinham feito a entrega das primeiras reservas.
Verdade, verdadinha, desde quinta-feira, logo pela manhã, excepto no domingo, se viam aquelas senhoras esbeltas, que mais pareciam bailarinas, braços levantados a segurar os tabuleiros de madeira que equilibraram à cabeça sobre a molídia.
Tinham calcorreado quinze quilómetros a pé. Minha tia condoía-se e achava que as pessoas da aldeia é que deveriam ir ao encontro delas, para que as «cachopas» pudessem descansar um poquenino.
E, assim, quando, na segunda-feira, as viu vir perto da igreja, no Largo do Enxido, foi chamar as parceiras e foram todas lá mercar os «pães de Deus» que eram uns bolinhos rectangulares com ervas doces que enchiam o olhar e perfumavam a mesa da sala, até ao dia seguinte.
Naquele ano, o Dia de Todos os Santos, calhou a uma terça-feira.
A minha tia tinha muitas afilhadas e pôs, num taleiguinho branco que fizera de propósito, um bolinho para cada uma delas.
Mal o dia amanheceu, os sinos tocaram a festa. Nós, as pequenitas que tínhamos um vestido, ou um avental para estrear, não esperávamos pelo sol aquecer. Saíamos para nos «pavonearmos» pela aldeia. Era dia de pôr laços no cabelo e os melhores sapatos com meias brancas rendilhadas. E que lindas que todas nós nos sentíamos!
As madrinhas também se levantavam cedo a presentear as afilhadas não fossem elas sentir-se esquecidas ou saírem de casa antes de receberem o bolo!
E era uma festa tão linda! Havia tanta alegria!
No dia seguinte já assim não era. Por todo o lado se viam pessoas vestidas de negro e a chorar ou com os olhos tristes de terem chorado. Era um dia de festa para chorar, pensava eu! E, em vez de bolinhos, havia flores, muitas flores, com que se desenhavam cruzes e coroas sobre os montinhos de terra que eram as campas.
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«Gentes e lugares do meu antanho», crónica de Georgina Ferro
(Cronista no Capeia Arraiana desde Novembro de 2020)
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