A experiência do regime republicano que vigora em Portugal desde 5 de Outubro de 1910 tem demonstrado que, para governar bem o País, não bastou alterar o regime político aplicável à Chefia do Estado. Efetivamente, do que os portugueses precisavam em 1910 e continuam hoje a precisar, como de pão para a boca, é que os Governos de Portugal governem bem. (Parte 1 de 2.)
A alteração do regime da Chefia do Estado operada, na sequência do regicídio, pelo Golpe de Estado republicano de 5 de Outubro de 1910 em pouco ou nada contribuiu, por si só, para resolver os principais problemas políticos, económicos e sociais da sociedade portuguesa. Pelas razões que seguidamente passam a expor-se…
Os Presidentes da República não governam
Tal como sucedera durante o regime de monarquia parlamentar e pluripartidária que vigorou em Portugal desde os anos 20 do século XIX até 5 de Outubro de 1910 no qual o Rei não governava, o regime republicano não veio alterar, de forma palvável, os poderes anteriormente atribuidos ao Chefe do Estado, uma vez que os 20 presidentes da República que até hoje se sucederam no cargo nunca governaram o País.
Na realidade, quem governou em Portugal, desde os anos 20 do século XIX até hoje, foram sempre os Governos.
Efetivamente, os Presidentes da República não possuem, em Portugal, poderes executivos, nem poderes legislativos, mas apenas poderes residuais. Por outras palavras, os presidentes não governam, cabendo-lhes, no essencial, o papel – mais teórico do que real – de garantir a unidade nacional, bem como exercer o papel institucional de velar pelo normal funcionamento das instituições do Estado.
Aliás, a prova eloquente do bem fundado de quanto precede decorre das palavras proferidas pelo ex-primeiro ministro António Costa durante a comemoração do 5 de Outubro de 2022, quando em reação do discurso proferido nessa data pelo Presidente da República, afirmou sem quaisquer rodeios perante os jornalistas que o entrevistavam que «o Presidente tem o poder da palavra, mas quem toma as decisões é o Governo». Comentários… para quê?
Os Presidentes garantem a unidade nacional?
Começando pelo primeiro ponto atrás referido, cabe perguntar: será que os 22 presidentes eleitos em regime republicano têm garantido a unidade nacional?
A este respeito, diz-nos a experiência histórica dos 114 anos da República, que este papel se encontra à partida prejudicado pela óbvia circunstância de os Presidentes da República serem reféns dos partidos ou dos movimentos políticos de que procedem e que lhes financiam as campanhas eleitorais. Por consequência, os Presidentes não têm nem a independência política nem o peso institucional indispensáveis para se imporem aos interesses partidários que os elegeram e os suportam, sempre que os superiores interesses do País assim o reclamam.
Foi assim na Primeira República (1910-1926), assim continuou a ser durante a Segunda República do Estado Novo (1926-1974), e assim tem sido igualmente durante a Terceira República, i.e. no regime democrático em vigor desde 25 de Abril de 1974.
Daí que seja uma falácia pretender ou, pior ainda, afirmar que o Presidente da República é o «presidente de todos os portugueses».
E isto é tanto mais verdade quanto é certo que, no regime democrático vigente neste país há meio século, se verifica que, adicionando o número de portugueses não inscritos nos cadernos eleitorais àqueles que se abstêm de votar nas eleições presidenciais (em regra, mais de 50% dos eleitores inscritos), ou que votam nulo, ou em branco, ou noutros candidatos à Presidência, apenas uma minoria da população portuguesa (em média, cerca de 1/3 dos eleitores inscritos) acaba por votar no Presidente da República que venceu as eleições.
A ausência de escrutínio do funcionamento das instituições do Estado
Acresce que os Presidentes da República que desempenharam o cargo depois de 25 de Abril de 1974 têm desbaratado, lamentavelmente, o seu primeiro mandato presidencial adotando uma atitude de «low profile», fechando os olhos, os ouvidos e a boca à busca de soluções reais para os principais problemas estruturais do País, designadamente: abandono do Interior do País, fraco desenvolvimento económico e social, deficiente funcionamento do Serviço Nacional de Saúde, do Ensino Público, dos Tribunais, das Forças de Segurança, más políticas públicas em matéria de habitação e de imigração, ou de políticas adequadas para os Jovens, para os Idosos, ou para os portugueses mais Pobres e os Sem Abrigo e abstendo-se de fazer um verdadeiro escrutínio da ação dos Governos e do funcionamento das instituições do Estado, à espera que lhes seja estendida a almejada «passadeira vermelha» de um segundo mandato…
A este respeito, dizia um prezado amigo meu, com particular sentido de humor, que «a Presidência da República é a melhor forma de concluir uma carreira num cargo simpático que não exige quaisquer responsabilidades de governo e que, acima de tudo, serve à perfeição a vaidade de qualquer político de se considerar o “supremo magistrado da nação”, a vaidade suprema de passar revista às tropas em parada e de assumir poses de Estado quando toca o hino…».
E dizia mais: «A Presidência é um cargo que dá direito a constantes passeios pelo País e a recorrentes e dispendiosas viagens pelo Estrangeiro, onde, à custa do erário público, os Presidentes se entretêm, as mais das vezes, a laurear a pevide, acolitados por uma chusma de jornalistas e de figurantes do sistema…aproveitando, por outro lado, as datas históricas e outras menos históricas para fazer prova de vida política com discursos repletos de opiniões redondas e de verdades do Senhor de la Palice…»
Não tendo a pretensão nem o espaço para comentar adequadamente os mandatos dos Presidentes que precederam Marcelo Rebelo de Sousa no cargo, irei limitar-me a analisar a forma como o atual Presidente da República tem desempenhado as suas funções.
A presidência de Marcelo Rebelo de Sousa
Começarei por dizer que a presidência de Marcelo tem sido mais um caso paradigmático da realidade anteriormente enunciada.
Dada a hiperatividade que tanto o caracteriza, Marcelo Rebelo de Sousa tem-se desmultiplicado em eventos constantes de toda a ordem, um pouco por toda a parte, no país e no estrangeiro.
Viagens ao estrangeiro
No que respeita, por exemplo, a viagens oficiais ao estrangeiro, até ao momento Marcelo Rebelo de Sousa realizou mais de uma centena de viagens presidenciais a 54 países dos cinco continentes do planeta desde a sua tomada de posse a 9 de março de 2016. Veja-se, por ordem alfabética o número de visitas:
1 visita: Afeganistão, África do Sul, Canadá, Catar, China, Chipre, Colômbia, Costa do Marfim, Croácia, Cuba, Eslovénia, Guatemala, Hungria, India, Israel, Letónia, Lituânia, Luxemburgo, Marrocos, México, Moldávia, Paises Baixos, Panamá, Polónia, República Centro-Africana, República Dominicana, Roménia, Senegal, Timor-Leste, Tunísia e Ucrânia;
2 visitas: Bulgária, Guiné-Bissau, Irlanda, Malta e Rússia;
3 visitas: Alemanha, Andorra, Grécia, Moçambique, Suiça e Vaticano;
4 visitas: Bélgica e São Tomé e Principe;
6 visitas: Angola e Reino Unido;
7 visitas: Cabo Verde e Itália;
8 visitas: Brasil;
10 visitas: Estados Unidos;
16 visitas: França;
17 visitas: Espanha.
Pergunta-se. O que ganhou afinal o País com estas viagens do Presidente pelos quatro cantos do mundo? Seria interessante comprovar até que ponto os milhões do erário público gastos com as mesmas se traduziu ou não num real valor acrescentado para o País.
Mas há outra característica que tem pautado o comportamento político do atual Presidente ao longo dos seus dois mandatos…
Incontinência verbal
Com efeito, raro é o dia em que Marcelo Rebelo de Sousa não surge perante os media a falar sobre a chamada espuma dos dias, i.e. sobre as questões do dia-a-dia do país e do estrangeiro, seja a comentar assuntos de toda a natureza sobre «faits divers», seja ainda sobre efemérides de toda a ordem, sobre eventos desportivos do país no futebol e noutras modalidades, ou, enfim, a fazer previsões políticas, económicas e financeiras, para este ano e para os próximos, acabando o Presidente por incorrer no erro inevitável de acabar por dizer hoje uma coisa, e amanhã o seu contrário. De facto, lá diz a sabedoria popular, «quem muito fala, muito erra»…
Em suma, o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa não consegue vencer a incontrolada vertigem que tem pelos microfones e pelas câmaras de TV. Fala demais. E este comportamento do Presidente que já tinha sido recorrente no seu primeiro mandato, tem-se agravado infelizmente até hoje no decurso do segundo mandato.
Na verdade, a estratégia política de Marcelo Rebelo de Sousa continua a passar por uma preocupação obsessiva de recuperar a popularidade de que gozou nos primeiros anos do seu primeiro mandato e que tem vindo a desbaratar gradualmente, em razão da sua presença diária (que já cansa… e a que já poucos portugueses prestam atenção…) junto dos media e da já citada multiplicação ininterrupta da sua participação em eventos de toda a ordem, tanto no país como no estrangeiro.
A meu ver, o Presidente tem cometido ao longo dos seus dois mandatos, o enorme erro político de confundir o chamado «poder da palavra» com a «incontinência verbal».
Inércia face ao deficiente funcionamento das Instituições e dos Serviços do Estado
Por outro lado, com a falta de assertividade, de frontalidade e de clareza nas posições públicas que diariamente vai tomando sobre os problemas da governação, o Presidente parece resignado sobre o estado das coisas no País e insiste em desvalorizar o que corre mal nas instâncias do Governo e dos Serviços do Estado e em desculpabilizar os seus responsáveis.
Tendo em conta que a memória das pessoas é curta, limito-me a relembrar alguns dos casos mais notórios ocorridos nos tempos mais recentes.
Refiro-me naturalmente às constantes trapalhadas, às incompatibilidades, aos inúmeros casos e casinhos, aos favorecimentos de amigos ou familiares de alguns governantes e às sucessivas demissões de membros do último Executivo de António Costa, enfim, à desorganização e à notória descoordenação desse Governo; às rivalidades e às lutas fratricidas entre governantes alegados putativos candidatos à futura liderança do PS que foram transportadas para o interior desse Executivo. Foi, aliás, na sequência destes factos, que, fortemente pressionado pela opinião pública, o Governo se viu forçado a elaborar e a anunciar ao País o «famoso questionário» sobre a conduta exigível aos membros do Governo de que, entretanto, à boa maneira portuguesa, nunca mais se ouviu falar.
Reporto-me, por outro lado, à inábil e irresponsável gestão política da TAP levada a efeito pela dupla tutela do Ministério das Infraestruturas e do Ministério das Finanças que pôs em causa o futuro desta empresa nacionalizada e que constituiu um dos exemplos mais paradigmáticos do desgaste da imagem negativa do último Governo de António Costa e dos vícios que se ganham no exercício do poder absoluto quando este se sente à vontade.
Refiro-me ainda à opacidade, à ocultação e às inverdades de que deram provas alguns membros do dito Governo, em particular o ex-Ministro das Infraestruturas Pedro Nuno Santos e o respetivo Secretário de Estado, quando tentaram esconder, até ao limite, a questão da indemnização concedida à Administradora da TAP- Alexandra Reis na sequência do seu despedimento, bem como ao episódio caricato em que o referido ex-ministro Pedro Nuno Santos resolveu decidir sozinho a escolha do futuro Aeroporto de Lisboa, à revelia do primeiro-ministro, rebeldia que teve como consequência lógica a apresentação da sua imediata demissão do Governo anunciada pelo próprio ao País e acompanhada de um pressuroso pedido público de desculpas através dos canais de televisão.
Reportamo-nos ainda à enorme trapalhada digna de um filme policial da Netflix em que se envolveram o Ministro que o substituiu (João Galamba), um adjunto do seu gabinete agredido por alguns colegas nas instalações Ministério das Infraestruturas e mesmo o SIS-Serviço de Informações da República (vulgo «Secretas») – chamado à pressa a recuperar pela força um computador com alegadas informações consideradas sensíveis para a própria Segurança do Estado.
Ora, perante este episódio caricato e da grande celeuma política e mediática que o mesmo provocou em todo o País, e pelo conjunto dos factos políticos atrás assinalados que ilustram bem o anormal funcionamento do Governo e dos principais Serviços do Estado, que fez o Presidente da República? Toda a gente conhece a resposta a esta pergunta. Deu o calado por resposta.
A verdade é que, infelizmente, Marcelo Rebelo de Sousa não gosta de fazer ondas, e porfiou ao longo dos seus mandatos em querer continuar a «passar entre os pingos da chuva sem se molhar», colocando-se sempre no «lado de onde sopra o vento» e não hesitando mesmo em colar-se aos Governos de António Costa quando o considerou pessoalmente vantajoso, em vez de procurar assumir com coragem política e de forma assertiva e independente o escrutínio do bom funcionamento do Governo e dos Serviços públicos do Estado e de assumir o papel que lhe deveria caber de porta voz e de defensor dos legítimos direitos e expectativas dos portugueses, ou seja, pela busca de soluções reais para os principais problemas estruturais da sociedade portuguesa, designadamente: Abandono do Interior do País, fraco desenvolvimento económico e social, deficiente funcionamento do Serviço Nacional de Saúde, do Ensino Público, dos Tribunais, das Forças de Segurança, más políticas públicas em matéria de habitação e de imigração ou de políticas adequadas para os Jovens, para os Idosos, ou para os portugueses mais Pobres e os Sem Abrigo.
Em suma, Marcelo Rebelo de Sousa que, por alguns analistas, já é designado de «comentador-mor da República», tem continuado todos os dias a desbaratar aquilo que em política se costuma designar por «magistratura de influência do Presidente», isto é, continua simplesmente a analisar, a dissecar, a examinar, a interpretar, a descodificar, a explicar, a comentar a espuma dos dias perante os jornalistas atentos, veneradores e obrigados pelo verdadeiro alfobre dos comentários presidenciais que os ajudam a preencher diariamente os jornais e os telejornais deste país. E continuará, por conseguinte, a alimentar também as correspondentes «análises» feitas pelo enxame de comentadores e de analistas políticos da nossa praça às «preleções diárias do Professor Marcelo» com que os mesmos vão procurando incansavelmente entreter a opinião pública.
E cabe perguntar: É para isto que serve um Presidente?
(Continua)
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