Não sei bem de onde ele vinha mas surgia sempre envolto em mistério e desaparecia tão estranhamente quanto havia aparecido.

A imagem era a de um boémio de meia idade.

Apresentava-se de jaqueta escura, suja e curta sobre uma camiseta cinzenta e pouco lavada. As calças pardacentas roçavam, ao fundo, os velhos sapatos castanhos, despudoradamente bicudos. Cobria-lhe a cabeça uma boina castelhana, redonda como uma circunferência, preta e encimada ao centro por um espeto de alguns centímetros.

Nunca lhe conheci indumentária diferente quer fosse verão ou inverno, quer o frio cortasse ou o calor flamejasse.

O bigode era farto e preto desenhado em forma de «N» e escarrapachado sobre um lábio carnudo que se avantajava no rosto largamente encarnado.

Os cigarros dependuravam-se-lhe da boca, uns a seguir aos outros, sem parar. As chupadas eram longas e, quando expelidas, resultavam em bolas de fumo. Diluídas no ar, faziam o ambiente fumarento e irrespirável.

Falava o tempo todo, nem que fosse com ele próprio. A conversa não tinha tema nem sentido e terminava sempre por… «e mai nada».

Era a personagem mais excêntrica que habitava o meu dia a dia. Todos o ouviam mas nem sempre o entendiam. A mim, pessoalmente, divertia-me.

– Posso trocar de mulher mas nunca de clube! Viva o Benfica, porra! E quem lhe morder que o coce. Eu cá sou vermelho por dentro e por fora e mai nada!

Há uns tempos começou a notar-se-lhe a ausência e a eventualidade do seu sumiço foi-se convertendo em preocupação.

– Tens visto o Mai Nada?

– Há que tempos que o não vejo!

Confirmou-se, enfim, o que já se suspeitava. O «Mai Nada» tinha falecido subitamente e a tristeza sucedeu ao choque de quem o conhecia.

Porém, aos meus olhos, ele continua semeando discursos, descendo e subindo a rua, vestido de uma bruma tão escura quanto o negrume da boina que usava. Só que a sua nova imagem deixou de me divertir para me redizer que esta criatura não deveria ter desaparecido assim, tão de repente!

:: ::
«Terras do Jarmelo», crónica de Fernando Capelo
(Cronista no Capeia Arraiana desde Maio de 2011)
:: ::