A manhã suave e fresca de pré-outono chamava por mim. Não resisti. Saí e tomei café num bar próximo da minha porta. Recolhi no bolso a bolachinha embalada que me havia escoltado a bica e subi, cidade acima, até à ensolarada urbe antiga. Buscava vistas altas e areadas, sítios vetustos. Almejava sons, cores e odores. Enfim, desejava reiterar sensações.
Passeata adiante, por pouco não tropeçava num cão corpulento que dormia na curta largueza de uma ruela antiga.
– Posso passar à vontade que ele está surdo de sono – disse eu para comigo.
Pura ilusão! Inesperadamente acordou como se saísse de um sobressalto. E, sem mais nem porquê, decidiu interpelar-me. Dirigiu-se a mim rosnando ameaçador.
A surpresa petrificou-me. Mal recuperado apenas consegui balbuciar:
– Então pá? Não estava à espera desse teu mau feitio. Pelos vistos não queres estranhos cá pelo bairro.
Na tentativa atarantada de esboçar a minha defesa apalpei a bolacha e saquei-a do bolso. Separei-a do plástico que a encascava e, num nervosismo mal disfarçado, atirei-a na direção do animal. Nem sequer olhou para ela e respondeu-me com o olhar:
– Não me submeto a subornos. Estou aqui para cumprir a minha missão. Ou achas que um cão de guarda se vende?
Atento e de olhar imenso o cão observava todos os meus movimentos. Tive ganas de fugir mas percebi que essa atitude só complicaria. Optei, então, por manter a calma que, na verdade, era apenas aparente e prossegui a conversa:
– Percebo-te bem. Por nada te arredas do teu dever.
Eu falava baixo e ele, observando-me, era como se me respondesse. Pelo sim pelo não, mantinha a sua análise. Por fim baixou os olhos em sinal de conclusão e, para surpresa minha, mudou de atitude. Foi trocando a irritação pela meiguice até que se me encostou ao joelho como quem lançasse um pedido:
– Coça-me aqui o pelo. Já vi que podemos ser amigos.
Por mim, tão cedo, não me livrei de medos. Mas ele já não tinha dúvidas. Talvez o seu instinto lhe permitisse confirmar a minha inocuidade. De modo que, para me demonstrar boa vontade, levantou-se nas patas traseiras, colocou as da frente nas minhas pernas e esperou pela carícia.
Agora mais calmo, enquanto o amimava afagando-lhe a cabeça, continuei:
– Então pá? Também não é preciso tanto! Tu não vês que me sujas as calças?
Só lhe faltava falar. Percebia tudo, este canino que passei a tratar por Guardião.
Feitas as pazes, rebuscou a bolacha no chão, comeu-a e voltou a deitar-se tranquilamente.
A partir de então, sempre que possível, passo por este velho bairro na esperança de encontrar o meu novo amigo de quatro patas. E lá está ele, sempre, fiel e firme no seu posto. Cada novo encontro é mais uma festa e o Guardião ganhou uma nova prerrogativa. Todas as visitas lhe conferem o direito à bolachinha do meu café.
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«Terras do Jarmelo», crónica de Fernando Capelo
(Cronista no Capeia Arraiana desde Maio de 2011)
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