A Paulo d´Eça Leal coube o toque no belga que pôs, enfim, a medalha de bronze nas mãos dos portugueses (com empate a 8 e 21-20 em toque) depois de derrotas com a França por 9-7 (com uma vitória de Mário Noronha, duas de Henrique da Silveira, duas de Frederico Paredes e duas de Paulo d´Eça Leal) e com a Itália por 9-6 (com uma vitória de João Sassetti, uma vitória de Paulo d´Eça Lea, duas vitórias de Henrique da Silveira e duas vitórias de Frederico Paredes)… (Parte 9).

Entre os medalhados de bronze na esgrima estava Jorge Paiva cuja notícia da morte
(quando ele era diretor de futebol do Benfica tendo como presidente um anarco-sindicalista) se embrulhou em mistério…
(Continuação)
Andando-se por 1926 só por uma nesga é que uma mulher não ganhou a todos os homens a Travessia do Douro:
– Os barqueiros e outros marítimos que acompanhavam a prova queriam a todo o transe que ganhasse eu, chegou a tal ponto o entusiasmo entre eles – que puxaram de facas uns para os outros, para aqueles que não estavam a meu favor, por eu ser de Lisboa, do Sporting…
A nadadora que soltara das águas tais frenesins era Estela de Carvalho. Em 1923 o Ginásio Clube Português, que tinha à sua cabeça José Pontes, o médico que continuava presidente do COP (e continuaria mais alguns largos anos…) organizara «sarau em honra do Parlamento e reconhecimento pela lei protetora dos clubes de educação física». Teixeira Gomes, o presidente da República, «presidiu à sessão» e deslumbrou-se com o «exercício de esgrima por duas das mais distintas alunas do mestre de armas António Martins, as sras. dona Estela de Carvalho e dona Fernanda Silva».
A «sra. dona» Estela tinha 16 anos. Também fazia remo e jogava ténis – e logo se atirou «à aventura» de nadar uma milha no Tejo:
– Num torneio só para sócios do Ginásio, sai-me tão bem que pedi que me inscrevessem na Travessia do Tejo. E eles que não me queriam deixar nadar, disseram-me que não, que não era coisa para meninas…
Largou o Ginásio, não largou veleidades…
A 28 de maio de 1926, Manuel Gomes da Costa arrancara de Braga à frente de coluna militar bradando:
– Vamos acabar com a bagunça em Lisboa!
e o que acabou foi a democracia (e mais…) – e não tardou que Estela de Carvalho, ainda antes dos 22 anos, tivesse o sonho olímpico perdido pelas turvas águas que alagavam a Nação com os seus pudores (ou pior: com os seus moralismos…)
– Vou começando a ter receio de que me critiquem por, com esta idade, nadar ainda, até. Também, agora criticam-me por tudo, por nadar, por não ter mais tecido no maillot, por mais isto e mais aquilo, que não me admira que tal suceda, me deixe disto depressa para me casar…
Em Amesterdão com os selos que tinham sido ideia do ministro das Finanças que o padre dissera que fosse para Lisboa…
Mendes Cabeçadas desafiara António Oliveira Salazar para Ministro das Finanças da Ditadura Militar, ao cabo de quatro dias em Lisboa, aborreceu-se com o ambiente, voltou para Coimbra, para as suas aulas na Universidade (e para os seus artigos no «Novidades», o jornal da Igreja). Menos de dois anos volvidos, Vicente de Freitas voltou a desafiá-lo e a primeira resposta que colheu de Salazar foi que «continuava desinteressado».
Por Coimbra andara o padre Matheo a pregar devoção ao Sagrado Coração de Jesus. Adoecendo, solicitara, a Salazar que o deixasse convalescer em sua casa, que lá, tinha, para o tratar, Maria, a governanta. Quando lhe revelou que insistiam de Lisboa para que fosse ministro, Matheo retorquiu-lhe:
– Vai, meu filho. A tua ambição empurra-te para lá. Mas tem cautela, põe sempre a ambição aos pés de Deus!
Arrancou para Lisboa, impondo condições: cortes nas despesas públicas, poder de veto nos orçamentos do ministérios, que o governo não tomasse «qualquer medida que violasse os direitos concedidos por leis anteriores aos católicos» (e, claro, que se amansassem «vícios e libertinagens»…) – e uma das suas primeiras decisões foi que os fundos de que o COP precisava para financiar a presença nos Jogos de Amesterdão resultassem da emissão de 4,6 milhões de selos. Neles apareceram pela primeira vez os anéis olímpicos em obras de filatelia – criados por Júlio Alves a partir de desenho de Roque Gameiro que na Exposição de Paris de 1900 (de cujo programa faziam parte em via indireta os Jogos Olímpicos) ganhara a medalha de ouro. Com isso se arrecadaram 90 contos.
Em bolandas andara o Comité Organizador dos Jogos Olímpicos de Amesterdão, presidido pelo Barão de Schimmelpenninck – assim ficando quando o parlamento holandês rejeitou projeto de lei do governo destinado a garantir-lhe o subsídio de um milhão de florins para financiamento de despesas sobretudo com instalações. Em pânico, o barão lançou pedido de ajuda ao povo – e, através de subscrição nacional, em menos de uma semana, juntou-se mais do que 1,2 milhões de florins…
A viagem da Missão Olímpica arrancou do Rossio no «Sud Express» com destino a Paris – de onde, igualmente em comboio, se seguiu Amesterdão. Como se esperavam mais de 40 horas em comboios, decidiu-se que a atriz Laura Costa fosse integrada na comitiva como sua «mascote» – capaz de animá-la com «canções portuguesas e melodias bairristas».
Graças ao dinheiro que se colhera através dos selos cada olímpico teve direito a um inesperado «pocket money» no valor de 100 escudos. Por um bife a cavalo num restaurante da Baixa de Lisboa pagava-se sete escudos. A vida valia pouco nessa década do espumante e do jazz-band, do fox-trot e do Charleston – e no dia em que Portugal chegou à final da esgrima (para de lá sair com a medalha de bronze) houve quem por não ter 1000 escudos para pagar uma divida tenha lançado emboscada ao credor, matou-o, esquartejou-lhe o corpo, arrumou-o numa mala, atirou-o ao Tejo.
Na prova de «Espada por Equipas», Portugal começara por vencer a Holanda por 8-7. João Sassetti, oriundo um ramo da família criado por viajante florentino que no século XVI se radicara por cá, saiu desse embate com os holandeses, saiu João com três vitórias, tal como Paulo d´Eça Leal (as outras duas couberam a Mário de Noronha).
Do duelo (que não era desportivo…) que deixou Jorge de Paiva ferido ao mistério da morte quando andava pelo Benfica
Apesar do 8-8 frente à Suécia (com duas vitórias de Mário de Noronha, de Henrique da Silveira, de Paulo d´Eça Leal e de Jorge Paiva), Portugal seguiu em frente em frente no desempate por toques: 21-19. Paiva era o único dos grandes esgrimistas nacionais que não tinha muitos bens próprios, não trabalhava para o Estado, nem era militar – e, ainda assim, não tardou a explodir em encanto e sensação na modalidade. A I Guerra Mundial impedira-lhe a estreia olímpica mais cedo, em Antuérpia ficou à beira do pódio e em Paris também. Dele se dizia que, possuindo uma técnica insuperável, era de «nervos fracos» – e, certo, porém, é que ainda assim, não tendo também grande compleição atlética, se impunha, «pela ousadia em luta» sobretudo nas competições internacionais, tendo ganho combates às «três lendas da esgrima»: os italianos Nedo e Aldo Nadi e o francês Lucien Gaudin – e tendo, no seu cartel, vitória em Vittel, então considerado o principal torneio mundial, e segundo lugar nos Jogos Pershing, simulacro de Jogos Olímpicos que se organizaram em 1919, entre os Aliados da I Guerra Mundial.
Em 1923, Paiva foi ferido por Mascarenhas de Menezes num duelo à espada (não, não foi duelo no sentido desportivo, foi duelo no sentido mais medieval, da limpeza da honra de arma na mão, com sangue se fosse preciso…) motivado por escaramuça entre ambos – e, poucos meses depois, voltou a sair dos Jogos Olímpicos, com a medalha perdida outra vez por unha negra.
O adeus de Jorge Paiva à esgrima de competição foi pouco antes de falecer, a 11 de maio de 1937, quando, para além de continuar em cargos diretivos na FPE, era diretor do Benfica, no futebol (na direção presidida por Manuel Conceição Afonso, o anarco-sindicalista que trabalhava na Imprensa Nacional e era pedra no sapato do regime).
Apesar de na breve notícia que o «Diário de Lisboa» deu da morte de Paiva se indicar como causa uma «pneumonia dupla» – ela enroupou-se de mistério, o que se foi insinuando, em murmúrios e burburinhos, nesses tempos de Censura cada vez mais espicaçada, foi que se «devera ao facto de ter presenciado brutal agressão de polícia a uma criança num campo de futebol e tê-lo denunciado…»
A metáfora da lotaria com Henrique Silveira a «deixar-se espetar» na espada do italiano
Mais uma vitória conseguiu Jorge Paiva no encontro seguinte, em que Portugal bateu os Estados Unidos por 8-7, cabendo três a João Sassetti e duas a Frederico Paredes e a Henrique da Silveira, o engenheiro agrónomo que assim estava mais perto de vingar o destino que José Pontes vincara ao chegar dos Jogos, quatro anos antes:
– Por que é que a nossa equipa de esgrima não alcançou em Paris o primeiro ou o segundo lugar? Pela mesma razão por que se joga na lotaria e nos sai uma aproximação em vez do primeiro prémio…
Henrique da Silveira, que foi o maior de todos os nossos em todo o torneio, na final, com um impulso bem português e no desejo de acabar depressa, atacou o seu adversário italiano, a quem não tocou, mas… deixou-se espetar na espada dele. Note, não foi o italiano que o tocou, foi mesmo Silveira que, com o seu impulso de atacante, foi procurar, sem querer, a ponta da espada rival. Nessa altura estávamos em igualdade de vitórias e com dois pontos a nosso favor. Se Silveira gastasse os minutos regulamentares simplesmente a defender-se, o que era legítimo, a vitória seria nossa. Tal impressão fez essa derrota a Silveira que este, brilhante em todo o torneio, como já se dissera, se enervou tanto, por se julgar criminoso para com o bom nome da esgrima portuguesa que o seu estado de excitação já não lhe deixou mais mostrar as suas maravilhosas faculdades, na luta contra a França, porque senão…
A perder por 10-2, o capitão da Noruega pediu ao árbitro para acabar com o encontro para que os portugueses se não cansassem (e antes tinha sido apurado a pedir que mandassem outro…)
O segundo combate da segunda fase em Amesterdão foi contra a Noruega e vendo-se a perder por 10-2, o seu capitão dirigiu-se ao árbitro, exclamando-lhe:
– Por favor, suspenda o encontro, uma vez que a minha equipa está irremediavelmente batida e os portugueses ainda têm pela frente um penoso e longo caminho, não faz sentido que se cansem em vão…
As 10 vitórias couberam duas a João Sassetti e a Henrique da Silveira e três a Frederico Paredes e Paulo d´Eça Leal – que nascera no seio de família relacionada com os mais importantes meios literários e artísticos. Dele se rumorejava que era, cima de tudo, «impenitente cultor de uma certa boémia» e que «muito viajado, para além do perfume da sua esgrima terá deixado pelos países por onde andou belas e efémeras ligações e, segundo se dizia, gastos algo vultuosos».
Quando se abriram as provas de seleção para Amesterdão, era pelo estrangeiro que Paulo d´Eça Leal andava, aventureiro – pelo que não participou nelas. Contudo, Sebastião Herédia (o filho do Visconde da Ribeira Brava que, desligando-se da monarquia, financiara a compra das armas que os carbonários usaram no Regicídio para disparem contra D. Carlos e D. Luís Filipe) que se havia qualificado pôs o seu lugar à disposição do COP por «entender que Eça Leal seria mais útil à representação de espada», indo ele ao florete.
Mais três vitórias conseguiu Paulo d´Eça Leal nas meias-finais, na derrota por 10-6 ante Itália (as demais couberam duas a Henrique da Silveira e uma a Frederico Paredes). E a luta pela medalha de bronze saiu dos 8-7 à Holanda com uma vitória de Paiva, duas de Paredes e de Eça Leal – e três de Mário de Noronha, filho de jornalista e escritor célebre, o Eduardo de Noronha. Em 1912 estivera pela primeira vez selecionado para os Jogos Olímpicos, não se deslocou a Estocolmo porque o COP não conseguiu juntar verbas que permitissem, através de um sarau, suportar as despesas com todos os pré-selecionados – e a lamúria que se soltou foi:
– …má sorte a greve dos elétricos ter impedido que pudesse ir mais gente ao Coliseu!

A mágoa de Mário de Noronha ao ver o que tinha acontecido à seleção de futebol (e a polémica de um soco com Cândido de Oliveira pelo meio)
Mário de Noronha também fez parte da equipa que saíra de Paris-1924 em quarto lugar (e individualmente só caiu nas meias-finais com a medalha na ponta da unha…) – e, à chegada de Amesterdão, em Santa Apolónia espalhou a mágoa que sentiu ao olhar em seu redor, vendo o que via:
– Em contraste com a apoteótica receção à equipa de futebol, a estação tinha a fisionomia normal; na gare, apenas se encontravam a família dos atiradores, os mestres e alguns amigos.
A seleção de futebol, comandada por Cândido de Oliveira, fora afastada da medalha de bronze pelo Egito – e apesar disso foi em frenesim que a receberam, num emotivo cenário de «vitória moral».
Antes da partida para Amesterdão, Noronha andara na berlinda por, no Chiado, ter dado dois socos, a Reinaldo Monteiro, esgrimista do Casa Pia AC, que o criticara numa coluna em «Os Sports» – e Cândido de Oliveira, então diretor do jornal, pusera-o a ridículo, em crónica polvilhada de ironia que saltava logo do seu título: «O Heroísmo dum Campeão.»
Noronha haveria de chegar a vereador da Câmara de Lisboa, a deputado da União Nacional, a procurador à Câmara Corporativa – e, já fervoroso salazarista, a comandante de lança da Brigada Naval da Legião Portuguesa, braço direito de Henrique Tenreiro.
A Paulo d´Eça Leal coube o toque no belga que pôs, enfim, a medalha de bronze nas mãos dos portugueses (com empate a 8 e 21-20 em toque) depois de derrotas com a França por 9-7 (com uma vitória de Mário Noronha, duas de Henrique da Silveira, duas de Frederico Paredes e duas de Paulo d´Eça Leal) e com a Itália por 9-6 (com uma vitória de João Sassetti, uma vitória de Paulo d´Eça Lea, duas vitórias de Henrique da Silveira e duas vitórias de Frederico Paredes).
Pouco depois de, em 1908, Paredes ter vencido o primeiro campeonato nacional de esgrima, drama profundo entrou-lhe vida dentro: estava a treinar, na esplanada da Cervejaria Jansen, com Alexandre, o irmão – e, lançando-lhe ataque furtivo, a lâmina da espada matou-o. Abalado, Frederico desviou-se das salas durante largos anos – até que, em 1919, se voltou a falar de si. Apareceu graduado em tenente, selecionado para os Jogos Inter-Aliados e António Martins (o médico que lá ganhou a prova de tiro) contou-o no Sport de Lisboa:
– Frederico Paredes ficou em sexto, apesar das grandes injustiças cometidas pelo júri. Como tinha batido o campeão do mundo nas meias-finais, tiveram medo dele e mimosearam-no com seis barrages cujo desempate lhe foi desfavorável. Sem isso, teria ganho a prova…
(Continua)
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«Às voltas da História», crónica de António Simões
(Cronista no Capeia Arraiana)
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