Não sei porquê, mas no Kuito muitos julgam que sou um antigo agente secreto. De facto, ando a pé e sou muito observador. Quando fumo uma cachimbada raramente não fico a observar detalhadamente todos os pormenores que me rodeiam. E há gente que já reparou nessa minha faceta e pergunta-me abertamente se sou um «bond» português. (Parte 1 de 2.)

Como muitos sabem que digo orgulhosamente que sou descendente do Rei David, passei a agente da «Mossad». Português ou Sionista o facto é que muita gente me identifica como um antigo homem da segurança.
E também o facto de com 64 anos subir reservatórios elevados, descer a caixas profundas, depois de levar uma prótese no braço esquerdo, as opiniões são generalizadas: «O kota é agente. E já viste o que ele sabe sobre Angola, só pode mesmo!»
De facto, nem eu sei como sei tanto sobre Angola!
Um certo dia sou abordado por um empregado de mesa… «O Senhor precisa de tabaco?»
Se fosse de cachimbo ou cigarrilha… «sem makas», ou seja, «sem problemas».
Ficou combinado que passaria no mesmo local no dia seguinte às quatro horas da tarde e, far-se-ia o negócio. Uma caixa de 25 cigarrilhas «Cohiba» por cerca de 13 euros vale a pena.
Lá estou eu à hora combinada. E nada!
Sem saber como, recebo uma chamada do dito cujo «connect», como aqui se diz. De facto, os números de telefone estão ainda nas «Páginas Amarelas». É dos dados pessoais mais fáceis de se obter. Há quem já tenha três números devido a esta falta de privacidade.
«Desculpe o atraso. Mas a senhora que me fornece o tabaco atrasou-se. Mais meia hora por favor.»
Lá esperei uma hora. Não é por acaso que o tempo estica em Angola e, em dois táxis-mota, aparece a personagem e uma loira, com uns quarenta anos, encorpada e baixinha. Cada um trazia um pacote embrulhado em folha de jornal.
A «Senhora» era de nacionalidade cubana e daria aulas numa escola no Centro Urbano da cidade. Tal como os nossos vizinhos, os cubanos têm muita dificuldade de falar português sem o sotaque «portinhol», uma mescla de palavras dos dois idiomas.
O rapaz disse, entretanto, que afinal o preço era 15 euros e as cigarrilhas teriam esgotado. Coisa estranha porque no Kuito nunca vi ninguém a fumar cigarrilha, no período diurno, é certo.
Pedi então para ver o pacote. Eram charutos, supostamente cubanos, sem selo e em monte dentro da folha do jornal.
Uma professora embrulhar charutos de marca branca em jornal? Não há folhas A4, envelopes A4 na escola? E os preços são irrisórios.
Contei as unidades daquele produto porque na verdade não sabia o que era, embora o aroma de tabaco era forte e agradável. Naquele embrulho estavam 15 supostos charutos.
Não vendem à unidade? De facto, não. E cada pacote de jornal custaria 20 euros, com 15 charutos de puro tabaco cubano, supostamente.
Pedi para abrir o outro pacote. A Senhora não deixou. «Então não se faz negócio.»
No segundo pacto estavam (apenas) 10 charutos mas… o aroma não era o mesmo.
Seguramente o tabaco veio embalado e em caixas. A fronteira de Angola controla bem o que entra no país e, por experiência própria com o tabaco de cachimbo que trago, se estiver identificado e embalado não costumam levantar problemas. Aliás eles sabendo a proveniência do voo têm os dados completos dos produtos que entram no país.
E acredito que eu já seja sobejamente conhecido porque tabaco de cachimbo só mesmo em Luanda e marcas de luxo.
A estratégia da «Senhora» era óbvia. Ludibriar-me com o vício de fumar!
Curiosamente os judeus nos negócios esfriam a cabeça. E não gostam de perder as raras oportunidades que surgem.
Não gosto de charuto por razões políticas. Foi durante as décadas de 40 a 70 o símbolo dos «Torys», os conservadores ingleses, implementado pelo Sir Wiston Churchil. E curiosamente o cachimbo, para contrapor, foi o símbolo dos «Labour», os trabalhistas. No entanto há quem diga, que às escondidas, também fumavam charutos.
Perguntei então se me arranjava o «mini-charuto». É um charuto mas com o comprimento menor. «Sem problemas só que o preço seria mais puxado.»
Combinei então venderem uma caixa, não um monte de charutos embrulhado em jornal, e fiz questão que trouxessem o selo com a marca que envolve o produto.
O dinheiro nunca seria problema, mas sim a solução. Ou seja, não se estabeleceu o preço.
Desculpei-me que por vezes recebia sul-africanos em casa e com um balão de whiskey gostaria de lhes oferecer o charuto numa caixa.
De facto, o tempo tem passado e nada.
Como em Angola o tempo estica, tudo pode acontecer.
Não me surpreende que me apareça um dia o que pedi. Mas com o tempo a passar, o risco da falsificação aumenta!
Por isso um dia fui à dita escola perguntar pela Senhora Professora. Ninguém a conhecia!
Como os olhos também apreciam a aparência do produto, espera-se pelo próximo capítulo.
A ver vamos!
Kuito, 20 de Abril de 2024
(Continua)
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«No trilho das minhas memórias», crónica por António José Alçada
(Cronista/Opinador no Capeia Arraiana desde Junho de 2017)
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