As primeiras fragas da «nova vida de casado» foram na Arrábida… com a família Ribau. Tinha combinado com eles e outros da Espeleologia participar numa actividade que incluía o treino inicial de novos espeleólogos. Outros iam começar a vida fabulosa que eu tinha começado três anos e meio antes!


Arrábida – 30 de Março de 1974
Acampámos na mata da serra da Arrábida sobre o fojo dos morcegos, onde descemos no dia seguinte. O céu estrelado que se via por entre as clareiras transportava-nos em silêncio para um universo sem tempo. E de novo vieram os cânticos, a convivência… mas também o amor.
Quando o grupo voltou a Lisboa – na velha VW do Ribau – nós dois seguimos a pé para o Portinho, onde acampámos em plena praia. Tínhamos acabado o primeiro semestre do 2.º ano da nossa Licenciatura em Biologia. Quis o destino que só voltasse a ver o meu ex-professor Ribau depois anos depois e a filha Ana Maria, que viveu com o grupo em que eu estava tantas «aventuras espeleológicas»… 37 anos mais tarde!
Nestes três dias acampados na Arrábida, apenas pensávamos em nós mesmos. Passeávamos pela areia, íamos até à pequena mercearia comprar leite e pão, vestíamos a nossa «farda submarina», explorávamos a costa rochosa, íamos até à Pedra da Anicha. De regresso, mochila às costas e alegria na alma, fomos a pé do Portinho ao Outão, para apanhar o autocarro… e uma valente carga de água.

Vale de Espinho – 16 de Abril de 1974
Em Abril de 1974 – poucos dias antes da Revolução – voltámos a Vale de Espinho no novo «estatuto de recém-casados»…! Era o início de um desbravar da «minha» Malcata, das águas do Côa, dos convívios e patuscadas à beira-rio. Eram as terras e as gentes que eu estava a começar a adoptar.
A 25 de Abril de 1974, assistimos com o resto do País e do mundo à queda do Estado Novo. Seguem-se os anos revolucionários, revolucionários a todos os níveis, incluindo na Faculdade de Ciências e na nossa Licenciatura em Biologia, como em todas as outras.
Mas o ano de 1974 também teve outro rótulo. Casados desde Dezembro, ambos precisávamos tanto «de amor e de sossego»… mas também «preciso dum emprego»…!
Em Agosto de 1974 arranjaram-me um emprego no Arquivo de Identificação de Lisboa. Contudo encontrávamos sempre tempo para os acampamentos na Arrábida, para as idas a Vale de Espinho… tempo para viver e conviver.
Entretanto, o espectro da guerra colonial dissipava-se com a revolução. Com sucessivos adiamentos de incorporação, devido à frequência da licenciatura, quando três anos depois a terminei passei directamente à reserva territorial. O serviço militar não fez parte, portanto, das minhas vivências.

Os anos conturbados de 1974 a 76 marcaram também uma certa viragem nas minhas e agora «nossas aventuras». Já não mergulhava desde Abril de 73, a não ser pequenas «explorações em apneia». Mas a viragem também operada na estrutura do Curso de Biologia, trouxe-me uma cadeira de Oceanografia Biológica… e trouxe-me a possibilidade de voltar a mergulhar, desta vez «pela mão» do saudoso professor Luís Saldanha. Em Maio de 1975, acampei e mergulhei com ele e com os colegas daquela cadeira.

«Verão quente» de 1975
O «Verão quente» de 1975 parecia estar a operar uma certa «revolução» também em mim. O apelo do mar estava a diminuir na mesma proporção em que aumentava o apelo do campo, das florestas, da serra. Afinal… não tinha eu começado as minhas «aventuras» em terra…? Não voltei a mergulhar com garrafa, desde Maio de 1975. E a «revolução» foi tão grande que, nas cadeiras opcionais do curso, à citada Oceanografia Biológica seguiu-se… a Dinâmica dos Ecossistemas Terrestres.
Dois espectaculares fins-de-semana passados na Tapada de Mafra, em Junho e Julho de 1975, em trabalhos práticos para a cadeira de Ecologia Geral, terão contribuído também para esta viragem.
Obrigado Dr. Carlos Magalhães! Passámos esses fins-de-semana com ele, a família e os colegas da cadeira, instalados na Pousada Real, percorrendo quase toda a Tapada, a pé e de jeep. Ele e a família ainda hoje são, felizmente, grandes amigos! Que maravilhosas recordações do convívio entre todos, dos trabalhos de campo, das contagens de roedores, da procura dos dejectos de cervídeos… e da noite em que julgámos ouvir o ronco de um javali… confundindo-o com o ressonar de um colega que adormeceu!
Poucos dias depois iria começar a apaixonar-me pela segunda das minhas actuais «terras natais».

Parque Nacional da Peneda-Gerês – 25 de Julho de 1975
Pela mão do saudoso Professor Carlos Almaça, que nos leccionava a cadeira de Zoogeografia, parti a 24 de Julho de 1975, com a minha mulher e outros colegas daquela cadeira… para cinco dias à descoberta do Parque Nacional da Peneda-Gerês. A postura firme, respeitosa e séria do Professor Almaça, que já conhecíamos das aulas era afinal também uma extraordinária postura de jovialidade, de camaradagem, de perfeito à-vontade.
Recordo como se fosse hoje as primeiras sensações naquele paraíso. O Professor Almaça e os mais «endinheirados» ficaram no Hotel, na vila do Gerês. Nós ficámos no velhinho Parque de Campismo da Mata de Albergaria, junto à fronteira. Que cenário! Que sensação de comunhão! Nesse tempo não havia incêndios! Mas, em nome de uma pseudo-conservação o parque de campismo de Albergaria foi fechado pouco tempo depois.
O Clube Académico do Porto ainda ali construiu uma casa abrigo mas os «abutres» voltaram a surgir e fecharam a casa. Hoje está no mais completo abandono…

Aqueles cinco dias foram para mim de deslumbramento. Percorremos o Parque Nacional da Peneda-Gerês, do Planalto de Castro Laboreiro ao Planalto da Mourela. É certo que pouco percorremos os trilhos da serra – andámos basicamente nos caminhos em que a carrinha do Parque podia circular – mas todos os momentos eram para mim de emoção, de contemplação, de êxtase.
A serra do Soajo, a anta do Mezio, no outro extremo Tourém, a barragem de Salas, Pitões das Júnias (a que mais tarde eu chamaria «a aldeia mágica»), a aldeia perdida de Vilarinho da Furna, desaparecida havia apenas pouco mais de três anos, o vale do Alto Homem, as panorâmicas da Junceda e da Pedra Bela, a cascata do Arado… nomes que me passariam a ser familiares, locais que passariam a ser um pouco «meus», águas, matas e fragas que me passariam a chamar ao longo de toda a vida.
Criado havia menos de cinco anos, o nosso único Parque Nacional cativou-me para sempre. Outras terras, outras gentes que passaram a ser «minhas», especialmente a Serra «mágica» do Gerês. Aquelas fragas apontadas aos céus, entre Pitões e o vale do alto Homem – os Cornos das Alturas, os Carris, o mítico Altar de Cabrões – tinham-me ficado gravadas como imagens vivas, lá longe, no cume da serra a que o Professor Almaça me levara.
Saí de lá dizendo… «tenho de um dia me embrenhar naquelas serras, galgar aquelas fragas, beber aquelas águas, entregar-me àquela catarse purificadora».
As fragas do destino ditariam que, se eu tinha descoberto o Gerês como aluno… voltaria lá como professor durante as duas décadas seguintes!
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«Por fragas e pragas…», crónica e fotos (copyright) de José Carlos Callixto
(Cronista/Opinador no Capeia Arraiana)
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