Vladimir Putin quis evitar o «último adeus» do povo russo a Alexei Navalny, que morreu na prisão em 16 de fevereiro. Contudo, apesar da presença policial, milhares de pessoas anónimas saíram às ruas para se despedirem dele e para fazerem críticas ao regime de Putin e à guerra na Ucrânia. «Putin é um assassino», gritaram os poucos russos autorizados a entrar no cemitério de Borisov. Mas antes disso, já mihares de pessoas tinham cantado nas ruas de Moscovo: «Não tiveste medo, nós não temos medo.» (Parte 1 de 2.)

Alguns dias antes do funeral de Alexei Navalny realizado a 1 de março, uma fonte do FSB (Serviços Secretos da Rússia), relatou ao jornal «Moscow Times» qual foi o briefing das reuniões das autoridades russas sobre os preparativos desta cerimónia fúnebre: «A tarefa consistiu em impedir uma situação semelhante à que tinha ocorrido durante o funeral de Andrei Dmitrievich Sakharov, em dezembro de 1989.»
Efetivamente, o funeral de Andrei Sakharov – físico nuclear de grande renome e dissidente do regime soviético que se tornou uma figura política pela defesa dos direitos humanos na URSS pela qual foi galardoado em 1975 com o Prémio Nobel da Paz – foi um evento que marcou os últimos anos do regime soviético. Dezenas de milhares de pessoas saíram à rua no dia do funeral e ficaram, horas a fio, em filas para prestar uma última homenagem a este dissidente perseguido, durante anos, pelo regime soviético.
Vale a pena recordar que Andrei Sakharov tinha sido deportado pelo Kremlin em janeiro de 1980, para a região de Gorki onde permaneceu sob vigilância da polícia soviética, e de onde apenas regressou seis anos mais tarde, graças aos ventos da glasnost que, nessa altura começavam a soprar na URSS e, sobretudo, graças à intervenção pessoal do então secretário-geral do PCUS, Mikhail Gorbachev.
Na verdade, um aspeto fundamental distinguiu o «último adeus» a Andrei Sakharov daquilo que o Kremlin antecipou desta feita para o funeral de Alexei Navalny. Enquanto Mikhail Gorbachev e outros membros do Politburo do partido comunista soviético foram ao funeral de Sakharov, ninguém esperava que Vladimir Putin, que sempre se recusou a mencionar sequer o nome de Alexei Navalny em público, aparecesse na cerimónia fúnebre deste seu principal opositor falecido numa prisão do Ártico a 16 de fevereiro, em circunstâncias obscuras ainda não apuradas.
De facto, o Kremlin sabia que o funeral de Alexei Navalny – envenenado com «Novichok» em 2020, preso em 2021 depois de regressar à Rússia e que estava a cumprir uma longa pena por alegado «extremismo» tinha potencial para galvanizar os russos que se opõem ao seu regime, à semelhança do que tinha sucedido em 1989 durante o citado «último adeus» do povo russo a Andrei Sakharov.
«O funeral de Navalny pode produzir um oceano incontrolável de pessoas a denunciarem Putin pela sua corrupção, autoritarismo e guerra cruel na Ucrânia», notava a historiadora russa e professora da Universidade de Kansas Ani Kokobobo num artigo publicado na revista Time na véspera do funeral. «Um rio destes pode ser difícil de controlar e refletiria um real “Estado da Nação” que iria contrariar dramaticamente os espetáculos patrióticos da propaganda do regime.»

Milhares de pessoas saíram à rua
Era isso que Vladimir Putin temia e foi exatamente isso que aconteceu. Milhares de pessoas saíram à rua em Moscovo no dia 1 de março para prestar uma última homenagem a Alexei Navalny. Para além da invocação da coragem deste advogado, ativista dos direitos humanos e opositor ao regime de Putin, repetindo o slogan: «Não tiveste medo, nós não temos medo.»
As palavras de ordem que os manifestantes gritaram trouxeram a nu a oposição dessa multidão ao ditador do Kremlin e à guerra na Ucrânia: «Putin é um assassino», «A Rússia será livre» e «Tragam os soldados para casa» foram alguns dos slogans que se ouviram, ao longo do dia, nas ruas da capital da Rússia.
No entanto, até à hora do início do funeral ninguém tinha ainda a certeza se o mesmo teria ou não lugar. Os últimos dias tinham sido marcados pela viagem da mãe de Navalny, Lyudmila Navalnaïa, ao Círculo Polar Ártico, à procura do corpo do filho em várias morgues. A certa altura, confessou Lyudmila, foi mesmo chantageada pelas autoridades que lhe disseram: «Só lhe entregariam o filho, caso aceitasse fazer um funeral privado.»
Por momentos, muitos ainda pensaram que o medo do Kremlin de um funeral semelhante ao de Andrei Sakharov era tanto que o regime de Putin optaria por fazer o mesmo que o ex-regime soviético fizera a Anatoly Marchenko, escritor, dissidente do regime e militante dos direitos humanos, galardoado em 1988 a título póstumo com o Prémio Sakharov atribuido pelo Parlamento Europeu. Marchenko foi preso e exilado pelo regime soviético, por sucessivos e longos períodos (entre 1958 e 1980) em vários campos de trabalho forçado do Gulag da URSS, tendo falecido em 1986, aos 48 anos, na sequência de uma greve de fome de três meses numa prisão de Tchistopol (República Soviética do Tartaristão). Efetivamente, Anatoly Marchenko acabou por ser enterrado perto desta prisão onde estava a cumprir pena, bem longe da capital e da família.
Acabou por não acontecer o mesmo no caso de Alexei Navalny mas não foi fácil consegui-lo. Segundo a família, a maioria das agências funerárias de Moscovo não quiseram fazer-lhe o funeral, por terem sido alvo de ameaças. O padre da igreja da igreja ortodoxa sita no bairro de Maryino de Moscovo, onde Navalny viveu durante anos, só terá aceitado celebrar as exéquias porque este político tinha frequentado durante anos aquela paróquia, tendo até batizado aí o seu filho mais novo, segundo testemunhou uma jovem que participou na cerimónia fúnebre dentro da igreja e que falou com o jornal online independente «Meduza» sediado em Riga, Letónia e editado em inglês e russo.

As exéquias
Enquanto dentro da igreja se iam juntando os familiares de Navalny e algumas dezenas de pessoas, para participarem nas exéquias, lá fora na rua a multidão ia crescendo. Quando a cerimónia religiosa teve enfim início, a fila para tentar entrar na igreja já atingia mais de um quilómetro e meio de comprimento, segundo a edição russa da «BBC».
Menos de meia hora depois, a cerimónia estava concluída. A este propósito, o académico especializado em religião, Sergei Chapnin, denunciou no Facebook que o padre da igreja teria recebido ordens diretas do Patriarcado Ortodoxo de Moscovo para encurtar ao máximo a cerimónia. Convém notar, a propósito, falar do Patriarca Ortodoxo de Moscovo Cirilo I. Batizado em 1946 com o nome de Vladimir Mikhailovich Gundyaev, Cirilo I foi, como aqui escrevi, recrutado como agente do KGB – a antiga polícia secreta soviética – e é um dos mais importantes aliados de Vladimir Putin cujo «reinado» considera um «milagre de Deus» tendo, de forma reiterada, expressado publicamente o seu ardente apoio à presente intervenção militar da Rússia na Ucrânia.
Javier G. Cuesta, jornalista do diário «El País» foi uma dos poucas pessoas que conseguiram entrar na igreja e relatou que apenas «a mãe e outros poucos familiares» tiveram autorização para tocar no caixão. «Enquanto a mãe se despedia do filho, vários funcionários apressaram-se a levar o féretro para o cemitério, entre gritos de indignação dos que assistiam.» E o relato prossegue reportando a indignação de uma mulher que ali se encontrava: «Isto é satanismo, é imoral na nossa cultura. É uma falta de respeito absoluta para com o falecido.»
À saída do féretro, vários dos que esperavam fora da igreja aproximaram-se dos pais de Alexei Navalny dizendo-lhes: «Obrigado pelo vosso filho» e «Perdoem-nos». Curiosamente, o mesmo pedido que alguém tinha deixado escrito na base do caixão de Andrei Dmitrievich Sakharov durante o funeral de 1989: «Andrei Dmitrievich, perdoa-nos» como, nessa ocasião, noticiou um corresponente em Moscovo do jornal «Whashington Post».

O cortejo fúnebre
O cortejo fúnebre que se seguiu até ao cemitério de Borisov, no sul de Moscovo, foi o momento em que o funeral de Navalny deixou de ser apenas privado. Centenas de pessoas acompanharam o carro funerário, enquanto outras atiravam flores à sua passagem. Os gritos com o nome de Navalny repetiam-se, a par de formulações como «Os heróis não morrem» e, também, «Não à guerra» e «Rússia sem Putin» a frase popularizada em vida pelo próprio Alexei Navalny.
Ainda assim, tendo em conta as apertadas medidas de segurança que vigoraram nesse dia em Moscovo, com agentes da polícia por todo o lado, estas afirmações afiguravam-se particularmente arriscadas. Isto porque quaisquer manifestações públicas a favor de Navalny poderiam levar à detenção, já que por lei poderiam significar um apoio a um evento considerado pelo regime como «extremista» sendo por outro lado certo que quaisquer críticas públicas à guerra da Ucrânia são proibidas na Rússia e já levaram a penas de prisão de mais de 20 anos. Aliás, antes do funeral, o porta-voz do Kremlin, Dmitry Peskov, já tinha avisado que «as manifestações não autorizadas não são permitidas».
Quando o carro funerário chegou ao cemitério de Borisov, as medidas apertadas da polícia eram bem visíveis. A família e os amigos próximos voltaram a despedir-se de Navalny antes de o caixão ser fechado, e os portões do cemitério mantiveram-se encerrados para o público em geral. Depois, Alexei Navalny foi enterrado, enquanto uma pequena orquestra tocava a sua canção preferida, «My Way», de Frank Sinatra.
«Ele era um homem simples», disse na emissão da Fundação Anticorrupção ACF (criada por Navalny em 2011) o seu velho amigo Leonid Volkov (membro da oposição russa e chefe de gabinete da campanha de Alexei Navalny para as eleições presidenciais de 2018) que, à semelhança da mulher de Navalny – Yulia Navalnaya –, seus filhos e um irmão de Navalny, reside por razões de segurança pessoal no estrangeiro e que não foi ao funeral devido ao alto risco que correria de ser detido. «Essa música» comentou Leonid Volkov, «fez mais sentido do que nunca no seu “adeus”. Ele saiu à sua maneira. Sem estar quebrado, sem estar perdido, sem ter sido derrotado».
Mesmo estando a residir atualmente na Lituânia, o antigo assessor de Alexei Navalny advertia que «o presidente russo, Vladimir Putin, «não mata quem se cruza no seu caminho apenas dentro da Rússia» mas que «também mata fora da Rússia.»
Nem por acaso, alguns dias depois destas declarações Leonid Volkov foi violentamente agredido por um desconhecido na sua própria residência na Lituânia, tendo escapado à morte mas ficando com ferimentos graves no corpo e com um braço partido que o levaram a um internamento num hospital.
Mas, voltando ao cortejo fúnebre de Alexei Navalny, depois de este chegar ao cemitério, lá fora, na multidão que se juntou à porta da entrada, havia quem dissesse: «Deixem-nos despedir-nos!» E, talvez temendo que o barril de pólvora explodisse, as autoridades russas permitiram que algumas pessoas que ali se encontravam pudessem entrar, um a um, no cemitério para se despedirem do corpo de Navalny mesmo para lá da hora de fecho oficial. «Putin é um assassino» gritaram em coro, a dado momento, algumas das pessoas autorizadas a entrar no cemitério.
Na verdade «o Kremlin quis evitar chatices antes das eleições», comentou ao «Wall Street Journal» o analista Abbas Gallyamov para justificar esta postura das autoridades russas. «Isto é um funeral. Se o Kremlin começasse a agir como se fosse um acontecimento político, então tornava-se mesmo num verdadeiro acontecimento.» Assim se explica também que o número de detidos nesse dia (cerca de 50, segundo a OVD-Info, uma das principais ONG de defesa dos direitos humanos da Rússia, tenha sido muito inferior ao que já acontecera dias antes: 400 detidos nos dias que se seguiram à morte de Navalny na prisão).
Isto não significou, contudo, que não houvesse, como houve, espaço para que a repressão se viesse a concretizar de outras formas. De facto, se para o regime soviético tinha sido difícil conter em 1989 o «efeito Sakharov» atrás citado, a Vladimir Putin não foi nada difícil garantir que o impacto da morte de Navalny não se expandiria para lá de Moscovo. A verdade é que, no dia do funeral, o principal telejornal da Rússia não fez uma única menção às exéquias fúnebres de Alexei Navalny.
Apesar disso, de acordo com dados fornecidos pelo YouTube ao «New York Times», quase 270 mil pessoas assistiram à emissão feita pela Fundação Anticorrupção ACF atrás referida, com outras 150 mil a assistirem ao stream do canal de televisão independente russo «TV Rain» sediado na Holanda, o que indicia que, para além dos milhares de russos que se manifestaram a 1 de março nas ruas de Moscovo, muitos outros que ficaram em casa também fizeram questão de acompanhar os acontecimentos desse dia.
Por sua vez, à noite, enquanto alguns ainda entravam no cemitério de Borisov ou se juntavam junto a memoriais improvisados com o rosto de Navalny, outros decidiram assinalar o momento de outra forma. No canal do Youtube, a acompanhar um vídeo com a canção «My Way» começaram a aparecer centenas de comentários com referências a Alexei Navalny, quase todos escritos em russo, a grande maioria dos quais incluía a palavra «Obrigado».
(Continua)
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«Portugal e o Futuro», opinião de Aurélio Crespo
(Cronista/Opinador no Capeia Arraiana desde Julho de 2020.)
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