A forma leviana e por vezes irresponsável como algumas figuras cimeiras da classe política deste país têm afrontado o papel que, nos termos da Constituição, cabe às instituições da Justiça apenas tem servido para alimentar a desconfiança dos cidadãos em relação ao funcionamento do Estado de Direito e para agravar a crise larvar que, gradualmente, está a corroer o regime democrático. (Parte 2 de 2.)
(Continuação)
Reflexões sobre o funcionamento da Justiça
A Operação Marquês veio trazer à luz do dia a trave mestra de uma perigosa cultura ético-política cultivada durante o consulado de José Sócrates que, não tendo sido devidamente denunciada nem descartada pelos atuais líderes do Partido Socialista, mas apenas camuflada à sombra do famoso mantra «à Justiça o que é da Justiça» e «à Política o que é da Política», acabaria ao longo dos oito anos do consulado de António Costa por gerar na opinião pública uma percepção extremamente negativa sobre o comportamento ético-político dos governantes e dos titulares de cargos políticos em Portugal.
Aliás, a demissão apresentada por António Costa a 7 de Novembro (a última de uma longa série de 15 demissões ocorridas durante o seu governo de maioria absoluta em menos de 2 anos) na sequência de um processo de investigação criminal por alegados atos ilícitos praticados por figuras próximas do primeiro-ministro, apenas serviu para aumentar a referida percepção dos cidadãos de que essa perniciosa cultura ético-política está longe de ter sido erradicada do exercício do poder político.
A teoria da Cabala
De facto, as investigações judiciais que contribuíram para as quedas de António Costa e de Miguel Albuquerque, presidente do governo regional da Madeira, apenas vieram confirmar que, nestes dois casos como noutros, tanto o PS como o PSD têm sido confrontados com problemas com a Justiça que estão a afetar gravemente a imagem destes partidos junto do eleitorado. Mas qual tem sido a reação pública destes partidos do chamado «arco da governação» perante esses casos?
Depois de uma primeira reação dos políticos visados nestes casos, cheia de declarações politicamente corretas, a saber: «vou colaborar com a Justiça», «vou aguardar serenamente que a Justiça faça o seu trabalho», «à Justiça o que é da Justiça»… ou de frases quejandas, o país assistiu, perplexo, a declarações em sentido contrário por parte de alguns desses visados e de figuras cimeiras do partido a que pertencem, ao afirmarem, alguns dias mais tarde, de forma mais ou menos agressiva, mais ou menos cínica, ou mais ou menos hipócrita, consoante os casos, que a atuação do Ministério Público contra eles não passa afinal de uma cabala.
Foi isso que aconteceu designadamente com António Costa, quando, depois de apresentar a sua demissão do cargo de primeiro-ministro ao Presidente da República e depois de explicar numa comunicação ao país os motivos dessa auto-demissão, resolveu passar sem perda de tempo ao contra-ataque, lançando publicamente as culpas da mesma sobre o Ministério Público e sobre o próprio Presidente.
Efetivamente, inconformado e irritado com a sua insuportável situação de visado num processo de investigação judicial, e, em seguida, irritado com a recusa do pedido que fez ao Presidente de nomear Mário Centeno como primeiro-ministro substituto, António Costa voltou, alguns dias mais tarde, a insistir outra vez na tese cabala, afirmando publicamente com todas as letras: «Podem-me ter derrubado, mas não me derrotaram.»
Mas quem o derrubou? perguntar-se-á.
Terá sido Vítor Escária, o homem que ele escolheu para Chefe de Gabinete e que guardou 75.800 mil euros em dinheiro vivo na residência oficial do próprio primeiro-ministro? Ou, como António Costa e algumas figuras cimeiras do PS, de forma mais direta ou mais indireta, quiseram fazer crer à opinião pública, terá sido o Ministério Público ou o Presidente da República?
Os leitores dirão de sua justiça. Mas falando por mim, direi apenas que, pelas razões aqui invocadas numa crónica anterior, não encontro fundamentos válidos para perfilhar, neste caso, qualquer tese da cabala.
O escrutínio da Justiça
Não obstante o que precede, vale a pena começar por dizer o óbvio: a atuação da Justiça nem sempre tem estado isenta de erros. Por outro lado, importa reconhecer que o funcionamento da Justiça é passível de ser escrutinado, porque em democracia ninguém pode estar acima do escrutínio democrático.
A atuação da Justiça não pode ser uma Justiça-espetáculo.
O recente «desembarque» na Madeira (que, pela sua espetacularidade, fez lembrar a alguns comentadores políticos o célebre desembarque da Normandia) de um contingente formado por centenas de inspectores da Polícia Judiciária e por representantes do Ministério Público envolvidos na investigação a alegados atos ilícitos praticados por figuras cimeiras do PSD-Madeira, e com jornalistas à espera no aeroporto do Funchal, previamente avisados e preparados para cobrir o acontecimento, é o episódio mais recente desta Justiça-espectáculo.
Mas, se juntarmos às características particulares desta mega-operação – que exigiu aviões militares e um dispositivo em terra devidamente organizado –, a crise do Governo Regional da Madeira, a campanha eleitoral na Região Autónoma dos Açores e a presente campanha eleitoral para as Eleições Legislativas, poderá colocar-se a questão de saber por que razão certas operações de investigação criminal da Justiça acabam, por vezes, por coincidir com os calendários políticos do país.
Há por aí quem pense que tais coincidências revelam um sintoma ou uma tendência para a judicialização da política, argumentando com a escolha cirúrgica das datas de intervenção das autoridades judiciárias e a sua avassaladora cobertura mediática. Como quer que seja, sempre cabe perguntar se esta aparatosa mega-operação judiciária não poderia ter ocorrido noutra altura que não durante as campanhas eleitorais no Continente e nas Ilhas. Por que motivo não foi ela levada a cabo, alguns meses mais tarde ou alguns meses mais cedo, quando perturbasse menos o andamento dos eventos eleitorais, tanto mais que se trata de suspeitas que já andam há anos nos jornais? Eis um questão pertinente que só as autoridades – Procuradoria Geral da República e Polícia Judiciária – poderão esclarecer.
Por outro lado, não deveria esta operação judiciária ter sido feita de uma forma mais reservada e sem jornalistas previamente «informados» para não se infringir o tão invocado «segredo de justiça», como aliás o entendem dois antigos Procuradores Gerais da República, José Souto Moura e António Cunha Rodrigues? Efetivamente, em declarações à Rádio Renascença, enquanto Souto Moura considerou que «o facto de estarem lá jornalistas do continente significa que houve uma violação do segredo de justiça», Cunha Rodrigues não só exigiu uma «explicação pública, cabal e urgente por razões imperativas de defesa da democracia e do Estado de direito», como assumiu que, se fosse ainda Procurador-Geral da República, «é evidente que não permitia que isso acontecesse».
Em boa verdade, o que os cidadãos esperam da Justiça é que ela seja discreta, serena, que assegure o respeito do «segredo de justiça» e que se recuse a alimentar fugas seletivas de informação e a atirar notícias para os media através da instrumentação da comunicação social. E esperam que, assim fazendo, a Justiça não possa ser considerada cúmplice de julgamentos sumários na praça pública.
Mas, acima de tudo, o que se exige da Justiça é que seja mais célere, porque uma Justiça lenta não é uma Justiça justa.
De facto, um país que se preze não pode ter um antigo primeiro-ministro há 10 anos à espera de saber se vai ou não a julgamento. Para lá de tudo o que se possa pensar sobre a conduta ético- política de José Sócrates, já é tempo de haver um desfecho deste caso judicial. E já é tempo de o país ser poupado às sucessivas declarações de inocência feitas nos canais de televisão pelo antigo primeiro-ministro e pelos seus advogados pagos a peso de ouro, a tentar justificar o indesculpável e a proclamar a alegada incompetência deste pilar fundamental do Estado de Direito e da Democracia que é a Justiça.
À política o que é da política
Isto dito, a verdade é que os dois principais partidos do regime – os únicos que tiveram verdadeiras responsabilidades políticas durante meio século de democracia – nunca até hoje quiseram adotar as medidas necessárias para mudar o estado de coisas na Justiça. Lavaram daí as mãos como Pilatos. E preferiram optar pela tese da cabala.
Efetivamente, em matéria de reforma da Justiça, o Partido Socialista e o PSD nada têm feito para a levar à prática. O primeiro, invocando ad nauseam o citado mantra «à Justiça o que é da Justiça», alegando, entre outras coisas, que não se deve reformar a Justiça num quadro político de maioria absoluta, ou defendendo que não se deve «legislar a quente». O segundo, adotando nesta área particularmente sensível do nosso sistema político que é a Justiça, um indesculpável low profile limitando-se, durante a presidência de Rui Rio, a alguns passos tímidos na defesa de um Pacto de Justiça interpartidário com o PS, no qual, em razão da reiterada recusa de António Costa, desistiu de acreditar.
Só que, agora, com o país político completamente virado do avesso, com Governos demitidos no Continente, na Madeira e nos Açores, com um Presidente da República fragilizado pela investigação do «caso das gémeas» e claramente diminuído na sua posição de árbitro das forças políticas em presença e, enfim, com a ameaça do populismo que já se perfila como provável protagonista de topo na cena política nacional, agora, enfim, já começam a ouvir-se algumas vozes que defendem que é preciso reformar a Justiça porque, a continuar assim, a governação do país ainda acaba um dia nas mãos dos populistas.
Contudo, reformar a Justiça não deverá, a meu ver, servir propriamente para tentar «pôr em sentido» a Justiça, nem para «salvar a democracia» de uma eventual ameaça das forças políticas radicais.
Não. Os partidos que, a partir das eleições de Março próximo, irão assumir as responsabilidades do próximo Governo, vão ter de assumir, de uma vez por todas, as medidas concretas que se impõem para pôr a Justiça a funcionar de forma adequada e eficiente e para assegurar no País o respeito do Estado de Direito.
Efetivamente, quando se apregoa «à Política o que é da Política», este slogan só pode ser entendido de maneira séria se ele significar, na prática, que governar um país não pode limitar-se a meras promessas demagógicas, nem a proclamar boas intenções ou grandes objetivos, mas sim a executá-los no dia a dia, com medidas efetivas, adequadas e assertivas.
Reformar a Justiça
Neste sentido, reformar a Justiça deve, sim, servir para ter uma Justiça mais rápida, mais competente e, portanto, mais justa. Deve servir para reforçar decisivamente o bom funcionamento dos Tribunais, em geral, e os meios de investigação criminal em particular. Deve servir para apostar em mais e melhores recursos humanos, materiais, tecnológicos e informáticos ao seu dispor e em melhor organização interna do sistema judicial no seu conjunto. Deve servir para melhorar, de uma vez por todas, a legislação anacrónica e excessivamente garantística do Código de Processo Penal, de modo a penalizar os expedientes meramente dilatórios utilizados, de má-fé, pelas partes em litígio, e melhorar a forma como essa legislação processual é aplicada e interpretada pelos magistrados judiciais E, sim, reformar a Justiça é garantir que os julgamentos têm um início, um meio e um fim em tempo decente.
O debate da corrupção política
Por outro lado, há que reconhecer que, de há alguns anos a esta parte, a denúncia dos males de que padece o regime, i.e. das malfeitorias e crimes praticados por alguns titulares de cargos políticos e por figuras cimeiras da presente situação política, não tem sido feita nem pelas instituições tradicionais do sistema (Presidente da República, Assembleia da República) nem tão pouco, de forma consistente e fundamentada, pelos próprios media que se têm limitado, como atrás se disse, a explorar, por razões ligadas à captação das audiências, a chamada Justiça-Espetáculo. Não. A denúncia desta crise do regime, há que reconhecê-lo, tem sido feita, na prática, exclusivamente pela Justiça. E, no interesse da sobrevivência do próprio regime democrático, é vital que continue a fazê-lo.
Neste contexto, é preciso ousar dizer que o debate da corrupção política não pode ser evacuado da discussão pública, quando se sabe que a esmagadora maioria dos casos de corrupção remete para os partidos políticos que têm governado o país, nos poderes Central, Regional e Autárquico.
Sim. Usando uma metáfora em voga, e tendo em conta a grande amplitude deste fenómeno, pode afirmar-se que a corrupção política é afinal de contas o «grande elefante na sala» da casa da Democracia, que muitos não querem ver.
Por isso, os partidos políticos que irão governar o país a partir de Março próximo, quaisquer que eles sejam, vão ter de olhar para dentro da própria casa e ter a coragem de perceber, de uma vez por todas, que algo de profundamente errado se passa quando há forças partidárias que toleram ser frequentadas e dirigidas por gente que não se recomenda e que acaba por ser promovida até ao topo da pirâmide do poder político sem que ninguém, no interior desses partidos, ouse dizer sobre o assunto uma única palavra.
Se não o fizerem, esses partidos políticos bem poderão continuar a queixar-se das cabalas, sempre e quando forem chamados a responder perante a Justiça ou em eventos eleitorais perante o País. E bem poderão continuar a acusar os populistas que se aproveitam desses inexcusáveis casos de corrupção para afirmar que «os políticos são todos iguais».
Na verdade, se nada fizerem para mudar de vida, nem mesmo depois da vertigem política em que, por causa dos seus repetidos erros o País se encontra presentemente mergulhado, já pouca gente irá realmente acreditar que esses partidos políticos estarão em condições de reganhar, a curto ou médio prazo, a confiança da maioria dos eleitores.
Porque, afinal de contas, do que os portugueses precisam, como de pão para a boca, é de uma liderança política competente, séria, fiável, empenhada e responsável, que governe bem este País.
Bruxelas, 31 de janeiro
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«Portugal e o Futuro», opinião de Aurélio Crespo
(Cronista/Opinador no Capeia Arraiana desde Julho de 2020)
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