A forma leviana e por vezes irresponsável como algumas figuras cimeiras da classe política deste país têm afrontado o papel que, nos termos da Constituição, cabe às instituições da Justiça apenas tem servido para alimentar a desconfiança dos cidadãos em relação ao funcionamento do Estado de Direito e para agravar a crise larvar que, gradualmente, está a corroer o regime democrático. (Parte 1 de 2.)

A demissão do primeiro-ministro António Costa e, mais recentemente, a renúncia de Miguel Albuquerque ao cargo de presidente do Governo da Região Autónoma da Madeira – ambas associadas a suspeitas de prevaricação, de tráfico de influências e de corrupção passiva que estão a ser investigadas pela Justiça – continuam a desencadear, dia após dia, as partilhas dos influencers das redes sociais e a preencher ad nauseam o espaço noticioso dos jornais e dos canais de televisão deste país.
Como era de esperar, os meios de comunicação social não resistiram a explorar até ao tutano o verdadeiro alfobre de notícias relacionadas com estes casos judiciais que – tendo em conta o atual contexto da campanha eleitoral das Legislativas de Março próximo – lhes tem permitido captar e fidelizar audiências através da promoção de intermináveis análises e debates levados a cabo por um verdadeiro exército de jornalistas, de comentadores encartados e de notáveis dos partidos sobre o funcionamento da Justiça e o seu impacto no combate à corrupção dos titulares dos cargos públicos resultante da promiscuidade entre o exercício do poder político e o mundo dos negócios.
Apanhada no meio desta verdadeira batalha campal que está a ser diariamente travada no âmbito da chamada opinião publicada entre os defensores e os detratores da Justiça – muitos deles sofrendo de indissimulável partidarite aguda ou, o que não é menos grave, de iliteracia jurídica – a opinião pública tem vindo a assistir, atónita, a aguerridas campanhas de condenação ou de absolvição na praça pública (ao sabor das preferências partidárias ou dos interesses em jogo…), relativamente aos atores políticos que estão a ser alvo dos inquéritos de investigação criminal promovidos pela Justiça.
O acórdão do Tribunal da Relação de 25 de janeiro
No meio desta ruidosa barafunda mediática e político-partidária, a 25 de janeiro veio finalmente a público o acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa (TRL) sobre o recurso que lhe tinha sido apresentado pelo Ministério Público relativamente à decisão judicial tomada em abril de 2021 pelo juiz de instrução Ivo Rosa no processo-crime – mais conhecido por Operação Marquês– contra 18 acusados, entre os quais, o ex-primeiro-ministro do Partido Socialista José Sócrates, o banqueiro Ricardo Salgado, o empresário de construção civil Carlos Santos Silva, o ex-ministro de um governo PS, Armando Vara, os gestores da PT (Zeinal Bava e Henrique Granadeiro), um ex-diretor executivo do Empreendimento de luxo de Vale de Lobo, um ex-diretor da Rede de Alta Velocidade, um ex-diretor da Administração dos CTT, bem como quatro empresas (de construção civil e de consultoria estratégica), todos alegadamente envolvidos numa vasta teia de corrupção e na prática de alegados ilícitos graves a ela associados, designadamente de crimes de corrupção ativa e passiva, de abuso de confiança, de branqueamento de capitais, de falsificação de documentos e de fraude fiscal.
Este acórdão do TRL acabou por recuperar grande parte da acusação que tinha sido deduzida pelo Ministério Público nesse processo-crime contra estes e outros acusados, rejeitando, assim, de forma contundente a aludida decisão judicial do juiz de instrução Ivo Rosa que, no que respeita a José Sócrates, tinha feito cair a maior parte dos 31 crimes constantes da respetiva acusação (apenas ficaram seis crimes) bem como todos os crimes de corrupção de que o dito ex-primeiro-ministro vinha acusado.

Quem vai a julgamento
Nos termos deste acórdão da Relação de Lisboa, vão, como se disse, ser julgadas 18 pessoas e quatro empresas (de construção civil e de consultoria estratégica).
O empresário Carlos Santos Silva é pronunciado para julgamento pelo maior número de crimes, 23, seguido de José Sócrates, com 22 e de Ricardo Salgado, ex-presidente do Banco Espirito Santo e do GES, com 11 crimes. O ex-primeiro-ministro José Sócrates vai ser julgado pela prática de três crimes de corrupção, 13 de crimes branqueamento de capitais e seis crimes de fraude fiscal. Já o empresário Carlos Santos Silva vai a julgamento por dois crimes de corrupção, 14 de branqueamento de capitais e sete de fraude fiscal. O antigo líder do Banco Espírito Santo e do GES Ricardo Salgado também segue pronunciado por três crimes de corrupção e oito crimes de branqueamento de capitais.
Para além destes três acusados, irão a julgamento: Armando Vara, ex-presidente da CGD e ex-ministro do governo de José Sócrates (pela prática de dois crimes de corrupção e de branqueamento de capitais); Zeinal Bava, ex-presidente executivo da PT (pela prática de três crimes de corrupção, de branqueamento de capitais e de fraude fiscal qualificada); Henrique Granadeiro, antigo gestor da PT (pela pratica de cinco crimes de corrupção, de branqueamento de capitais e de fraude fiscal qualificada); Hélder Bataglia, empresário (pela prática de cinco crimes de branqueamento de capitais); Joaquim Barroca Rodrigues, vice-presidente do grupo Lena (pela pratica de 15 crimes de corrupção, de branqueamento de capitais e de fraude fiscal qualificada); José Diogo Gaspar Ferreira, ex-diretor executivo do empreendimento de luxo Vale de Lobo (pela prática de 2 crimes de corrupção e de branqueamento de capitais); Sofia Fava, ex-mulher de José Sócrates (pela prática de um crime de branqueamento de capitais); José Paulo Pinto de Sousa, primo de José Sócrates (pela pratica de dois crimes de branqueamento de capitais); João Perna, ex-motorista de José Sócrates (pela prática de um crime de branqueamento de capitais); Inês Rosário, companheira do acusado Carlos Santos Silva (pela prática de um crime de branqueamento de capitais); Luís Ferreira da Silva Marques, ex-diretor da Rede de Alta Velocidade (pela prática de dois crimes de corrupção e de branqueamento de capitais); José Luís Ribeiro dos Santos, engenheiro na XMI, (pela prática de dois crimes de corrupção e de branqueamento de capitais); Rui Horta e Costa, ex-administrador não executivo dos CTT (pela prática de dois crimes de corrupção e de branqueamento de capitais); Rui Manuel Mão de Ferro, empresário (pela prática de um crime de branqueamento de capitais); Gonçalo Ferreira, advogado (pela prática de três crimes de branqueamento de capitais); a empresa Lena Engenharia e Construções, SA (pela prática de 10 crimes de corrupção, de branqueamento de capitais e de fraude fiscal; a empresa Lena Engenharia e Construções SGPS (pela prática de dois crimes de corrupção e de branqueamento de capitais); a empresa Lena SGPS (pela prática de dois crimes de corrupção e de branqueamento de capitais); e a empresa RMF-Consulting, Gestão e Consultoria Estratégica (pela prática de um crime de branqueamento de capitais).

Tribunal da Relação arrasa a decisão do juiz de instrução Ivo Rosa
Começarei por lembrar a este respeito que, na sua já citada decisão judicial de abril de 2021, o juiz de instrução Ivo Rosa tinha reduzido a 17 as 189 acusações deduzidas pelo Ministério Público no processo-crime original. Agora, por força do acórdão proferido a 25 de janeiro pelo Tribunal da Relação de Lisboa (TRL), passaram a ser 118 as acusações pronunciadas para julgamento.
De excessos de atuação, à incapacidade de Ivo Rosa para seguir «o caminho do dinheiro», este acórdão do TRL deixou duras críticas à atuação do referido juiz de instrução.
As três juízas desembargadoras autoras deste acórdão do TRL consideraram que muitos dos «cortes» na acusação dos diferentes arguidos que foram efetuados pelo juiz Ivo Rosa na dita decisão judicial de abril de 2021 assentaram em «excessos de atuação», em «erros de leitura» e, em alguns casos, em «candura» e «ingenuidade» por parte do juiz de instrução em causa.
Aliás, a «ingenuidade» e a «candura» de Ivo Rosa explicam, segundo o acórdão do Tribunal da Relação, a razão pela qual este juiz de instrução ignorou os «indícios fortíssimos» de que o «caminho de dinheiro» levava inevitavelmente ao ex-primeiro-ministro José Sócrates.
Na base de muitas das apreciações do TRL esteve, igualmente, aquilo que este tribunal entendeu como um «extravasar de competências por parte do juiz de instrução» algo que foi argumentado pelo Ministério Público no seu recurso para a Relação de Lisboa, acusando Ivo Rosa de ter ido muito além dos poderes que lhe cabiam na fase de instrução do processo, ao tecer considerações sobre a validade das provas apresentadas. Na página 53 deste acórdão de 25 de janeiro, o TRL afirma inclusive que o dito juiz de instrução fez, na sua decisão instrutória de abril de 2021, «uma análise exaustiva da prova» que claramente se afastou do objetivo da fase instrutória em questão ao realizar «diligências típicas de um verdadeiro julgamento».
Por outras palavras, Ivo Rosa em vez de se limitar a fazer, como legalmente lhe competia, um trabalho meramente instrutório do processo, decidiu pura e simplesmente fazer o julgamento do megaprocesso da Operação Marquês.
Para as juízas desembargadoras do TRL, este comportamento do juiz de instrução foi duplamente prejudicial porquanto, além de constituir um excesso de atuação, não teve em conta o facto de que Ivo Rosa não teve em consideração todas as provas produzidas pelo Ministério Público.
O Tribunal da Relação salienta ainda os vários pontos da decisão judicial de Ivo Rosa em que este juiz de instrução sustentou as suas posições única e exclusivamente com base nos depoimentos e nas declarações dos próprios acusados. E o TRL chega mesmo a confessar alguma estranheza pela «certeza» de Ivo Rosa sobre o não-envolvimento de José Sócrates no alegado favorecimento ao Grupo Lena na adjudicação de diversos contratos de construção civil.

E agora, o que vai acontecer?
Em princípio, deste acórdão da Relação de Lisboa não cabe recurso para a instância superior… o Supremo Tribunal de Justiça. De facto, a lei não prevê que haja recurso de um despacho de pronúncia, o que limita consequentemente o ex-primeiro-ministro José Sócrates e os restantes acusados a lançar mão de um eventual recurso para o Tribunal Constitucional. Mas não sobre questões de «substância», ou seja, sobre o conteúdo do acórdão do TRL, contrariamente ao que erradamente afirmou o ex-primeiro-ministro quando tomou conhecimento do mesmo. Os acusados apenas poderão fazê-lo sobre eventuais questões de outra natureza, alegando que, no acórdão do TRL, foi violada uma determinada norma da Constituição. Todavia, esse eventual recurso não terá, na prática, implicações no andamento do processo-crime original pendente no Tribunal de Primeira Instância, uma vez que esse eventual recurso terá apenas um efeito meramente «devolutivo» que não suspende o processo original, o qual poderá seguir para julgamento enquanto o Tribunal Constitucional avalia as eventuais questões que venham a ser alegadas pelos recorrentes.
Como quer que seja, tendo em conta o comportamento passado de José Sócrates no processo em curso, – no qual já apresentou em Tribunal 40 recursos ou incidentes processuais – e face à ameaça de utilização dos meios legais ao seu dispor por ele feita logo após ter tomado conhecimento do teor do acórdão do TRL, e tendo ainda em consideração que as demais pessoas e empresas acusadas não deixarão de recorrer a idênticos procedimentos dilatórios, tudo indica que este processo estará para durar ainda por alguns anos.
Por outro lado, apesar de o acórdão da Relação de Lisboa não admitir recurso com efeito suspensivo, tudo leva a crer que, mesmo que o julgamento do processo original venha a ter lugar no Tribunal de Primeira Instância no decurso dos próximos meses, a sentença a proferir não terá lugar a curto prazo
Enfim, last but not the least, essa sentença será sempre susceptível de recurso, primeiro para o Tribunal da Relação de Lisboa e, posteriormente, para o Supremo Tribunal de Justiça.
Efetivamente, tudo indica que, para escapar a uma eventual condenação, José Sócrates e os demais os acusados tudo farão para a evitar, lançando areia na engrenagem da Justiça e criando pretextos de toda a ordem, invocando nulidades processuais por alegados vícios de forma nas futuras fases do processo ou pondo em causa, sempre que necessário, a probidade dos juízes, para deste modo conseguirem adiar, por tempo indeterminado, o desfecho deste caso judicial, na expectativa de poderem beneficiar da prescrição dos crimes de que são acusados. Em conclusão, a decisão final deste megaprocesso terá ainda um logo caminho a percorrer.
Dito isto, independentemente da evolução futura deste caso judicial, é caso para dizer que, ainda assim, o acórdão da Relação de Lisboa de 25 de janeiro representa, para já, uma pequena vitória da Justiça e da própria Democracia, e poderá ser considerado como um primeiro ajuste de contas com um período negro da nossa história política recente, durante o qual uma vasta teia de corrupção encabeçada por um antigo primeiro-ministro de Portugal, os acusados procuraram aproveitar-se da promiscuidade entre o poder político e o mundo dos negócios para conseguirem enriquecer de forma ilícita.
(Continua)
Bruxelas, 31 de janeiro
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«Portugal e o Futuro», opinião de Aurélio Crespo
(Cronista/Opinador no Capeia Arraiana desde Julho de 2020)
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