Crónica tranquila, esta de hoje. Foi publicada no «LisboaLisboa2» há 11 anos… Falo aqui sobre memórias profundas: os dias amenos e pacatos do Casteleiro de antanho, quando era miúdo. Os cheiros da aldeia, de que já falei no «Capeia» antes; os sons das ruas da aldeia; as cores das ruas, das casas, da estrada, dos campos… mas também a vida real do Casteleiro de um dia. Vai gostar de regalar o cérebro nesta amálgama de boas recordações de um velhote.
Não é fácil de admitir, mas o melhor é mesmo admiti-lo: com tantas recordações e tantas memórias, o meu cérebro sente-se velhote. E eu acompanho-o, com tranquilidade e até com paz e alegria. E gosto de lhe trazer aqui uma fotografia policromática e poli-cheirosa da minha terra…
Cores de toda a espécie pela aldeia e seus campos
O arco-íris todo numa aldeia só. Por exemplo:
– o verde dos campos húmidos;
– o amarelo dos solos secos da Primavera/Verão;
– o violeta dos rosmaninhos;
– o branco de algumas poucas casas;
– o cinzento da maioria das habitações;
– a faixa preta ou cinza escuro do tapete de alcatrão da estrada;
– as flores do campo: azuis, amarelas, rosa;
– O verde especial da folhagem das oliveiras;
– o próprio arco-íris em dias de chuvinha;
– o sol fraquinho de certas tardes de primavera;
– O branco das cegonhas no seu ninho castanho-escuro na torre da igreja;
– o amarelo das maias das giestas (jestas) no tempo delas.
Todas as cores, todos os tons, todas as sensações em cada olhar.
Sons que perduram dentro de nós
Há ruídos, há barulhos e há sons. Hoje falo mais dos sons: os que me são ou eram muito agradáveis – ou seja: os que me apraz recordar hoje aqui para si. Dou apenas uns exemplos para o leitor perceber do que falo:
– o «dlão-dlão» do chocalho das juntas de vacas que havia (não eram muitas);
– o «dlim-dlim» dos chocalhos e campainhas dos poucos rebanhos do meu tempo;
– o «dlão-balalão, dlão-balalão» do sino da igreja a chamar para a missa ou para o terço;
– o «toque-toque» das ferraduras das burras na calçada da Rua Direita;
– o ladrar permanente dos cães de guarda das casas;
– o som da concertina dos bailes;
– o som da música da Bendada nas alturas de festa.
Mas há mais:
– o «gri-gri» dos grilos tardes inteiras, sem descanso;
– o galo e as galinhas a cantar sem fim, elas porque puseram o ovo, ele para dizer que é ali o Rei e Senhor;
– o «mé-mé» das cabras e das ovelhas – que engraçado quando os rebanhos que havia (e não eram muitos) atravessavam a aldeia e se passeavam pelas ruas sem rebuço…
Pausa para uns ruídos e barulhos também… mas especiais e nada irritantes à data, visto o que significavam de aquisição de bem-estar e de qualidade de vida:
– Mais tarde, os motores de rega aqui e ali nos campos,
– os carros na estrada e os seus motores a roncar,
– as camionetas da carreira e a sua especial ambiência também sonora no Largo de São Francisco.
Mas permita que volte atrás: às vezes, o carro de vacas fazia com as rodas uma chiadeira única. Acho que era falta daquele óleo queimado que lhe punham para rodar melhor e sem barulhos.
E o som inesquecível do «tac-tac-tac-tac-tac» infindo do bico das cegonhas a «tocar as cartchanetas»?
Cheiros
Um dia escrevi sobre cheiros. Trago-lhe aqui umas linhas apenas…
«O cheiro, na aldeia – em qualquer aldeia de Portugal, tenho a certeza – naqueles anos 50 e 60, é um elemento definidor de ambientes e de vivências. E marcam para toda a vida.»
«Há cheiros bons, inesquecivelmente bons.»
Por exemplo: o cheiro da tarimba, o bafo das vacas, o cheirinho da «abob’rais».
«Outro cheiro bom: o dos lençóis de linho que ao entrar na cama eram frios como gelo, mas, passados cinco minutos… «Hummmm!», que bom… E que cheiro! Não há cheiro nenhum que possa apagar estas reminiscências da nossa infância».
Vida real
Mas nem só de coisas belas e de boas memórias vive a memória da gente. Recordo de vez em quando a maneira de ser de muita gente na aldeia.
Sem culpa pessoal, mas antes fruto de séculos de lutas e de guerras, o espírito geral era o de uma certa dureza. O que sempre me impressionou desde garoto.
O clima agreste, mesmo sabendo eu que é bem mais ameno do que o da Raia.
Os transportes eram muito complicados naquele tempo. Mas vá lá, havia a carreira. E havia o comboio. A carreira, como já disse um dia, era o único transporte público que passava na minha terra.
Finalmente: poucas pessoas tinham emprego certo. A maioria trabalhava à jorna: coisa incerta e difícil de prever.
A vida da maioria das pessoas era tão dura que, recordar só as cores e os cheiros seria uma grande injustiça para quem sempre foi injustiçado pela vida.
Por isso, aí ficam estas breves notas. Com o meu apreço de sempre por quem não teve muita sorte na vida.
Obrigado por me ler! Até para a semana, à mesma hora, no mesmo local!
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«A Minha Aldeia», crónica de José Carlos Mendes
(Cronista/Opinador no Capeia Arraiana desde Janeiro de 2011)
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