Naquele dia, o tempo nem estava tão frio como estivera a semana anterior. Estava farrusco sim e cada vez mais negro, embora o relógio tivesse os ponteiros grande e pequeno voltados para o 12.

A minha avó Neves chegou aconchegada na saia longa de fazenda preta, que quase tapava os botins de pelinho por dentro, de lenço preto atado no alto da cabeça e o já pardo xale de todos os dias de lã de fioco, como eu ouvia dizer, a proteger-lhe as costas, os ombros e as suas mãos engadanhadas e doridas.
Sempre soube que a avó Neves sofria muito das mãos que se iam deformando e, para mal de seus pecados, tinha deixado cair na mão esquerda, a pesada tampa da arca feita de tábua de carvalho.
Mal abriu o portão do curral anunciou que não ia demorar porque vinha lá um nevão! Vinha só dar os «bons dias».
– Ai mulher!, então nem queres comer um caldinho connosco? Olha cozi uma «tchouriça» de ossos com vagens secas. Cheira tão bem! Vá entra e «come que o comes»!
– Oh!, valha-te Deus! Não vês que a neve não demora a cair?!
– Pois baia, leva uma malga de sopa e comes quando chegares lá a casa.
– «Ai mem, home»! A nossa Maria vai ficar enfadada comigo! Ela já ficou a fazer sopa de gravanços!
– Pronto, como «tu lo queiras»!
Ainda as duas irmãs estavam neste despique já tombavam os primeiros farrapinhos de neve no chão! E a avó ainda tinha de se apressar a chegar à Barreira, onde morara desde menina. A casa e forja do meu bisavô Pires era paredes meias com a casa para onde casara com o meu avô Júlio.
Lá foi ela de passo miudinho mas apressado, era baixinha mas parecia sempre que voava, ou antes, que bailava como aquelas bailarinas que víamos nos livros de contos de fadas e princesas. Ainda a vi a atravessar o Largo do Enxido até chegar ao muro da casa do seu irmão Eduardo. Depois enfiou-se na rua estreita entre as casas que ia dar ao Pocinho e foi passar a ribeira no pontão de poldras.
A tia bradou-me lá de dentro, para não me quedar na rua. Foi quando me apercebi que já havia neve suficiente, no parapeito da varanda, para fazer uma bolinha. E corri com ela a desafiar a tia para a brincadeira.
– Agora não pode ser, cachopa! O tio e o Tino estão a chegar do trabalho e é preciso pôr a mesa e atear um “poquenino” o lume para eles se aquecerem quando chegarem!
– Eu também ajudo. Vou buscar os pratos.
Quando o tio e o primo chegaram vinham cobertos de neve e com um grande sorriso! Porque seria que quando nevava lá na aldeia toda a gente sorria?!
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«Gentes e lugares do meu antanho», crónica de Georgina Ferro
(Cronista no Capeia Arraiana desde Novembro de 2020)
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