O livro «As Causas do Atraso Português» escrito pelo economista Nuno Palma e editado pela «Dom Quixote», em novembro de 2023, analisa a evolução económica de Portugal ao longo dos últimos séculos, procurando perceber «as origens históricas do atraso do país» e desconstruir, de algum modo, os mitos do passado que continuam a existir sobre este tema existencial do nosso país. (Parte 1 de 3.)
Nuno Palma é professor catedrático e diretor do Arthur Lewis Lab for Comparative Development, na Universidade de Manchester, e investigador do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa e do Centre for Economic Policy Research em Londres.
Dada a extensão da análise feita neste livro por Nuno Palma, debruçar-me-ei apenas sobre a parte relativa ao periodo da gestão do Marquês de Pombal (1756-1777) que o autor não se coíbe de apelidar de «desastre em termos de economia».
PARTE I – AS CAUSAS PROFUNDAS DO ATRASO PORTUGUÊS
«Há muito que alguns historiadores, outros estudiosos e até políticos, tentam explicar as causas do atraso português», escreve Nuno Palma.
Demasiada gente no campo?
«País periférico, com demasiada gente no campo, e governado por uma elite tacanha é uma possível paráfrase da tese defendida por gerações de intelectuais sobre as causas deste atraso» começa por dizer o autor deste livro. Mas logo acrescenta «um momento de reflexão é o suficiente para compreendermos que estas não podem ser as explicações profundas das causas desse atraso».
«Todos os países foram sociedades agrárias, ou seja, baseadas na produção e manutenção de culturas e terras de cultivo, antes de se desenvolverem. A Inglaterra também o era até à Revolução Industrial.
Portugal também, até tudo mudar no século XX. Com o tempo tudo pode mudar, e a mudança estrutural, ou seja, a passagem das populações da agricultura e pescas para outros setores que historicamente tinham mais valor acrescentado (a indústria e os serviços) tem de ser explicada. Como tal, a estrutura organizacional da economia – «demasiada gente no campo» – que levaria à baixa produtividade do país não pode ser por si só uma explicação. É antes e apenas um mecanismo através do qual causas mais profundas operam. Na linguagem dos economistas, é um fator endógeno.»
A localização geográfica do país?
Em seguida, Nuno Palma aborda outra tese que frequentemente é avançada para explicar o atraso português, ou seja, a localização geográfica do país:
«Portugal é periférico. Parece ser verdade, mas relativamente a quê? Na verdade, toda a Europa Ocidental foi periférica relativamente aos grandes centros culturais e económicos do mundo, pelo menos até finais da Idade Média. Esses centros correspondiam a regiões como o império bizantino na antiguidade tardia, o mundo islâmico na sua época de ouro entre os séculos VIII e XIII, bem como a China por volta da mesma altura. Ou seja, toda a Europa Ocidental foi, até finais da Idade Média, uma parte marginal do mundo, de importância relativamente secundária. Mas essa condição «periférica» não foi destino: tudo viria a mudar, através de um processo radical no qual Portugal até teve um papel importante, como expliquei no capítulo 4 deste livro. Do mesmo modo, a periferia geográfica de Portugal não foi, em certas épocas históricas, impedimento ao desenvolvimento do país».
Portanto, sugere o autor do livro «temos de encontrar melhores explicações para o atraso histórico português».
«Nos capítulos anteriores» explica Nuno Palma, «mostrei que, pelo menos até ao século XVIII, o império não foi nem um motor nem um impedimento ao crescimento do país. Também argumentei que a cultura e religião portuguesas não foram as culpadas deste atraso ou, pelo menos, não foram a sua causa profunda».
A transformação do sistema político e económico português
Efetivamente, na primeira parte deste seu livro (capítulos 2 e 3), Nuno Palma já tinha proposto aos leitores que «o atraso do país apareceu durante o século XVIII, tendo tido manifestações simultaneamente económicas e políticas, e que se aprofundou depois no XIX».
«É certo que antes disso», recorda o autor, «mais concretamente a partir da Restauração de 1640, Portugal já tinha entrado num encorajador processo de melhorias políticas e institucionais que poderia ter tido melhor continuação. Depois, durante a segunda metade do século XVII, assistiu-se a mudanças económicas positivas e promissoras no país».
Todavia, «entre a segunda metade do século XVII e o início do século XVIII” deu-se uma “transformação do sistema político e económico português» facto que Nuno Palma considera ser uma causa fundamental do atraso português.
Com efeito, explica o autor a este propósito, «em finais do século XVII, já existiam em Portugal várias regiões rurais industrializadas, com redes bem integradas de produção e distribuição, e Lisboa era uma capital mercantil, que estimulava a procura por bens, e onde era feito o retalho. Além disso, existia o Brasil, que era uma fonte adicional de procura, assim como de oferta de matérias-primas. Por volta de 1680, Portugal até exportava têxteis para Castela». E «caso a dinâmica dos finais do século XVII tivesse continuado» escreve o autor, «o país poderia ter-se tornado, no século seguinte, numa importante potência mercantilista e exportadora. Além disso, as melhorias institucionais poder-se-iam ter também consolidado».
A maldição dos recursos
«Mas o que veio a acontecer não podia ter sido mais diferente» afirma Nuno Palma. «Tanto a nível político como mais diretamente económico, as dinâmicas auspiciosas dos finais do século XVII foram interrompidas por um processo que designo como a “Maldição dos Recursos”: a descoberta de enormes quantidades de ouro e, com menos importância, de diamantes no Brasil. Este acontecimento viria a ter implicações profundas para o país».
E o autor explana em detalhe esta conclusão. «Não há dúvida de que a entrada de ouro aumentava os rendimentos das pessoas, em particular no curto prazo. O ouro do Brasil enriqueceu, em primeiro lugar, os portugueses que o obtinham e que remetiam os fundos para Portugal, ou que, estando no Brasil, os usavam localmente, em particular comprando os bens que chegavam nas três frotas anuais vindas da metrópole. A maior parte do ouro já chegava a Portugal cunhado, e as moedas eram entregues a mais de duas mil pessoas a quem pertenciam, além do rei.»
Por outras palavras, explica Nuno Palma, «os rendimentos pessoais, agora aumentados, eram depois gastos tanto em bens domésticos, não transacionáveis, assim como em bens importados».
Mas, se é verdade que «o aumento de procura dos bens importados não tinha um efeito notório no seu preço, dado o tamanho pequeno do nosso país, já a procura adicional dos bens domésticos teve, de facto, um efeito significativo no aumento do preço dos mesmos. Por sua vez, esta mudança de preços relativos levou a uma retirada de recursos do setor transacionável da economia portuguesa».
«Foi o que aconteceu com a produção industrial que se retraiu. Isto foi uma resposta natural da economia às chegadas do ouro, e que foi agravada pelo aumento do poder de compra das pessoas. Tornou-se mais barato importar, e mais caro exportar, mas a diferença podia ser paga em ouro. Como tal, a indústria portuguesa entrou em declínio».
«Além disso, o ouro teve um efeito político desastroso» alega por outro lado Nuno Palma «os recursos adicionais disponíveis para a Coroa implicaram o desaparecimento de uma limitação importante ao poder executivo que até aí existia».
O encerramento das Cortes
Efetivamente, «como deixou de ser necessário o rei negociar para obter recursos, as Cortes não foram convocadas durante todo o século XVIII. Nas primeiras décadas do século ainda se falou dessa assembleia a propósito de matérias como os novos impostos que a Coroa ia impondo, pois existia a memória de que eram um órgão que controlava a ação do monarca. À medida que o século avançou, no entanto, o ambiente político que se instalou começou a encarar a reunião das Cortes como uma cedência por parte dos monarcas que não era aceitável, recusando a esse órgão qualquer papel de controlo constitucional ou de limitação da vontade da Coroa.
Seria neste contexto que, na sequência do Terramoto de 1755, Pombal iria tornar-se no político mais importante do país, com graves consequências a prazo».
O legado político e económico do Marquês de Pombal para o atraso do país
«O governo do país por parte do Marquês de Pombal foi desastroso. Mas também é preciso compreender o contexto que o tornou possível: uma Monarquia Absoluta, como não tinha existido nos séculos anteriores» pondera o autor do livro, ilustrando o seu raciocínio com uma analogia: «Se um condutor embriagado atropelar um peão, ninguém vai dizer que o problema é o condutor não ter travado. A causa mais profunda foi outra.»
Voltando ao século XVIII, Nuno Palma sublinha que «o problema foi terem faltado limites ao poder executivo. E isso foi, por sua vez, um resultado das chegadas do ouro brasileiro» que, como explicou, «levaram a essa alteração na natureza das instituições políticas portuguesas».
«Pombal desprezava o parlamento inglês, que considerava um mero instrumento dos grandes interesses comerciais da Inglaterra. No entanto, sabemos hoje que esse sistema parlamentar é precisamente uma das chaves para compreendermos porque foi aí possível a Revolução Industrial».
«Na realidade», acrescenta o autor do livro, «a política alternativa que Pombal promoveu não beneficiou o país. Uma dessas políticas, a nível económico, foi a criação de várias companhias comerciais. A sua fundação ajuda a compreender as motivações de Sebastião de Carvalho e Melo para expulsar a Companhia de Jesus. Em Portugal, os jesuítas opunham-se ao seu despotismo e ao Absolutismo régio em geral e, no Brasil resistiam ao monopólio do comércio externo imposto pela Companhia do Comércio do Grão-Pará e Maranhão, uma companhia criada por Pombal que operava numa região do Brasil onde o Governador era o seu irmão Francisco Xavier de Mendonça Furtado. Este último, Governador Geral do Estado do Grão-Pará e Maranhão de 1751 a 1759 e secretário de Estado da Marinha e do Ultramar entre 1760 e 1769, também esteve envolvido na conspiração que levou ao assassínio dos Távoras e do jesuíta Gabriel Malagrida, que foi queimado na fogueira num auto de fé no Rossio em setembro de 1761».
Conflito de interesses – públicos e privados
«Como tantas vezes tem sucedido na nossa História», escreve Nuno Palma «existia aqui um conflito de interesse» (entre o público e o privado): «Pombal não só nomeava os irmãos e outros familiares para altos cargos, como depois ainda beneficiava financeiramente das suas ações políticas.»
No caso da Companhia do Comércio do Grão-Pará e Maranhão, beneficiava dos lucros da companhia através de ações que estavam em nome da sua segunda mulher. Através do seu irmão, Sebastião de Carvalho e Melo ordenou que as leis régias fossem executadas rigorosamente, sendo que a sua violação devia ser considerada crime de lesa-majestade. Ordenou mesmo que qualquer missionário jesuíta que no púlpito insinuasse qualquer crítica à política real fosse imediatamente destituído das suas funções e expulso.
Por outro lado, acrescenta o autor, «Pombal promoveu uma vasta campanha propagandística, acusando os jesuítas de quererem criar um «império secreto» no Brasil, numa obra conhecida como “Relação Abreviada” em 1757. Publicada inicialmente de forma anónima (o spin não é uma invenção dos dias de hoje…), este opúsculo foi promovido por Pombal.
A perseguição aos Jesuitas
Na sequência do Tratado de Madrid (1750), que definia as fronteiras entre o Brasil e o Império Espanhol substituindo o Tratado de Tordesilhas, que não era respeitado, a Companhia de Jesus, por ordem do seu Geral e Provincial, obedeceu às ordens do Rei de Portugal e mandou sair os seus missionários dos Aldeamentos ou Reduções. A maioria, de facto, obedeceu e saiu. Mas, houve um pequeno grupo de jesuítas, muito minoritário, que ficaram ao lado dos ameríndios e resistiram. É essa colaboração de alguns jesuítas na resistência indígena, e em particular na Guerra Guaranítica (1753-1756), que será usada como pretexto e mitificada pela documentação pombalina para incriminar toda a Companhia de Jesus, atribuindo-lhe um plano secreto mirabolante segundo o qual estaria a construir um Estado autónomo, como princípio de um projeto maior de dominação universal. Sebastião de Carvalho e Melo enviou também queixas à Santa Sé, acusando os jesuítas de serem rebeldes contra a autoridade real e papal. O esforço de propaganda contra os jesuítas continuou com outras obras, como a Dedução Cronológica e Analítica, de 1761, também encomendada por Pombal”.
A criação da Junta do Comércio
«Sebastião de Carvalho e Melo era um político que não olhava a meios para atingir os seus fins» alega por outro lado Nuno Palma. «A Mesa do Bem Comum dos Homens de Negócio» (organismo de coordenação e de defesa dos interesses dos comercaintes de Lisboa junto do poder) «foi extinta em resposta a uma representação que esta apresentou à Coroa contra a instituição do monopólio da Companhia» (acima citada)» de que Pombal beneficiava. E depois de exilar os líderes da Mesa do Bem Comum, Pombal criou uma nova agência, a Junta do Comércio, que não era mais do que um braço político do seu governo, existente para defender os seus próprios interesses. Existem hoje vários casos bem documentados referentes ao enriquecimento dos irmãos Carvalho e Melo graças ao seu controlo do aparelho do Estado. Mesmo um autor estrangeiro, que até mostrava alguma admiração por Pombal, o descrevia como: «Altivo, vingativo, cruel, ávido de honras e de dinheiro.»
Neste contexto, não será talvez surpreendente que os supostos esforços de fomento industrial promovidos por Pombal tenham, na realidade, falhado.
A Companhia Geral da Agricultura e das Vinhas do Douro
Por outra via, escreve o autor, também «a Companhia Geral da Agricultura e das Vinhas do Douro, criada por Pombal em 1756, supostamente com o objetivo de melhorar a qualidade do vinho exportado para Inglaterra, é um outro exemplo de compadrio e de defesa do interesse próprio promovidos por Pombal. Em fevereiro de 1757, os taberneiros do Porto revoltaram-se contra esta Companhia que, ao criar um monopólio, tanto os prejudicava. A revolta foi violentamente suprimida por Pombal, com a execução de 26 pessoas e com mais de 300 condenados a confisco, deportação, ou chicotadas. E foram dadas ordens aos habitantes da cidade do Porto para alimentarem as tropas enviadas para acabar com a revolta, e para pagarem um imposto que iria cobrir os salários e munições dos soldados».
A expulsão dos Jesuitas
«Pombal ainda aproveitou este contexto para acusar os jesuítas de serem responsáveis por instigar esta revolta (o que era falso), expulsando-os de imediato da Corte de D. José, onde eram até então confessores. Este episódio, assim como a já referida “Relação Abreviada”, mostra que a aversão de Pombal aos jesuítas, que se opunham a ele, já era anterior à tentativa de assassinato do Rei D. José que ocorreu no ano seguinte, em 1758», acrescenta Nuno Palma.
«Na sequência deste atentado, os jesuítas foram incriminados com base em confissões conseguidas sob tortura, tendo Pombal encabeçado um enorme esforço de propaganda – que viria a ter reflexos noutras partes da Europa – em que a Companhia de Jesus era apresentada como o maior obstáculo ao progresso do país.
Pombal fez mesmo a acusação, absurda, de que eram os jesuítas os responsáveis pela forma de funcionamento da Inquisição, bem como pelo bloqueio cultural e intelectual do país. Acabou assim por expulsá-los, um ano depois do referido atentado. Entre os cerca de 1500 jesuítas que existiam em Portugal à época, mais de 1100 foram exilados para o Vaticano, 222 foram presos, acabando 80 por morrer no cárcere, e tendo alguns sendo ainda deportados para África».
(Continua.)
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«Portugal e o Futuro», opinião de Aurélio Crespo
(Cronista/Opinador no Capeia Arraiana desde Julho de 2020)
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