Começou num poema inspirado nos portugueses que trabalham em Angola, na sua grande maioria longe das famílias e que, por uma razão ou outra, encontram muitos aspectos de um Portugal mais antigo, com a então Europa ao redor.

Por insistência de um grupo de produtores musicais do Kuíto, capital da Província do Bié, acabei por embarcar neste projecto, reconhecendo nitidamente muita dificuldade de articulação com a fonética do português normalmente usado em Angola, mas reconhecendo um grande profissionalismo daqueles jovens.
Mas não há impossíveis. E trabalhando de mãos dadas conseguiu-se uma música interessante provando que diferentes culturas podem articular-se em trabalhos comuns.
Relevo que toda a letra foi desenvolvida pelo signatário, tendo-se combinado que o refrão seria cantado com o sotaque angolano, só que o RAP, significando «Ritmo e Poesia», é soletrado sem pontuação e sem pausas, tornando muito difícil ao autor/narrador um discurso neste contexto.
Depois de horas e horas de gravação a equipa conseguiu o que parecia impossível, estando pessoalmente profundamente reconhecido ao esforço e empenho da produção no resultado conseguido.
Mas o que na verdade foi interessante, desde a primeira hora, é um português que fosse o autor da letra. O refrão, também, foi um exercício interessante de desenvolver como um angolano vê um português, um «Tuga».
A «cabeça dura» vem do cansaço do tempo de afastamento da família, que nos leva a perder, por vezes, a paciência e incremente muito a ansiedade do regresso.
O «sem cultura» prende-se com a libertação dos angolanos que legitimamente lutam pela sua autonomia cultural sentindo-se ainda alguma influência do passado.
Porém, o «grita o que sente na sua mente», tem um significado profundo de liberdade que, nós portugueses, vivemos há quase cinquenta anos, e que em Angola, regra geral, sentimos essa abertura, desde que com respeito pela sua soberania e valores.
O restante texto aborda aspectos interessantes, nomeadamente para esta nossa geração, principalmente os mais novos, em que desconhece o que terá sido um colono e em que se sente uma vivência muito diferente deste nosso canto na Europa, a começar pelo clima que favorece um maior convívio entre nós e, para quem quer, também com os nacionais, ou seja, os angolanos. Vê-se muito jovem em que a sua família é luso-angolana quebrando de vez com um preconceito do passado, que na verdade, nunca fez sentido.
Mas o final do poema é um sinal de respeito pela libertação de Angola, onde no meu caso, por muito goste de lá estar, e tenha sido muito bem acolhido e respeitado, haverá sempre uma hora de partir e entender que a criança, ou seja o futuro, «deixe de chorar ao me ver embarcar», tal como décadas atrás, e entender que o progresso e desenvolvimento deste país pertence aos seus nacionais, por muito que gostem de ter estrangeiros, principalmente de origem portuguesa.
Obviamente que a minha experiência cultural em Angola me ajudou a rejuvenescer, tendo em conta, tal como os angolanos, tempos conturbados vividos no passado.
Porém, aprendemos a perdoar e a esquecer, ficando, no entanto, datas marcantes, ou marcos no meu caso, para memória futura, aspectos inesquecíveis que devem permanecer. É importante que outros se lembrem que houve quem sofresse para a sua libertação seja política, seja interior.
O livro «Vivências Paralelas», e agora esta música «Tuga na dura!», foram os meus legados nesta minha peregrinação interior, que acabaram por me curar e dar força para continuar a luta pela vida.
Mas que se repita também por artistas profissionais, porque sem dúvida, a cultura aproxima os povos, e do lado angolano sente-se tanta vontade de comungar e partilhar experiências, sejam paralelas ou mesmo cruzadas.
Um agradecimento profundo aos amantes de cultura de nacionalidade angolana, que sempre mostraram abertura a projectos conjuntos: Isabel Sango, Victor Barros, David Zeferino e Domi Nitchi.
Mas há mais. Muitos mais!
Fica o link da dita música, para quem quiser ouvir, sendo que já está em produção um novo vídeo clip, com imagens do Bié, da equipa de produção e de um «Tuga na Dura!»
Kuíto, 4 de Janeiro de 2024
:: ::
«No trilho das minhas memórias», crónica por António José Alçada
(Cronista/Opinador no Capeia Arraiana desde Junho de 2017)
:: ::
Parabéns aos autores, pelo espectacular vídeo de música Rap.Muito bem conseguida a ligação Música/letra/imagem, para quem é amador e está numa fase inicial