As tradições religiosas do Natal e do Ano Novo, são algumas das imagens duradouras e imperecíveis que continuo a guardar do tempo da minha infância.

A Consoada
A véspera do Natal era um dia de grande azáfama dedicado aos preparativos da festa natalícia. Na igreja montava-se o presépio e engalanava-se cuidadosamente todo o seu espaço interior. Em minha casa também se instalava o presépio. Para tanto, eu saía com um dos meus irmãos até ao campo em busca do musgo que crescia a esmo nos muros e nas orlas rochosas dos caminhos. Em seguida, armava-se o presépio junto à parede do fundo da sala de jantar, utilizando o musgo apanhado no campo, caixas de papelão que faziam de montanhas e espelhos que simulavam pequenos lagos. Cobriam-se os montes com flocos de algodão em rama a imitar a neve e nas suas faldas colocavam-se os rebanhos à guarda dos pastores. Finalmente, instalava-se a cabana, com o Menino deitado nas palhinhas de uma manjedoura, rodeado por Maria, por José, pelo jumento e pela vaca e, à entrada da cabana, os Reis Magos vindos do Oriente.
Infelizmente, nos tempos que vão correndo os presépios caíram em desuso, foram varridos para fora da quadra natalícia, quase a expurgando de qualquer gota de espiritualidade e de sentido do sagrado, sobretudo nos meios urbanos, ou mesmo do trilho e dos resquícios que ainda restam da civilização judaica-cristã, que é suposto ser o nosso berço e sinal distintivo. E assim lá vamos seguindo, nós, o país, a Europa e o chamado Ocidente, num galope de descristianização persistentemente consentido, não se sabe bem porquê nem para onde. Mas esta é outra história. Entretanto, voltemos ao tema que aqui nos ocupa.
A Consoada era o momento alto da festa. A família inteira, avós, pais e filhos, reuniam-se em torno da mesa enfeitada e recheada da sala de jantar. Comia-se bacalhau assado com couve troncha e batatas e à sobremesa serviam-se rabanadas, doces de amêndoa, cavacas e filhós de farinha frita com ovos, concluindo-se a refeição com um cálice de vinho fino produzido pela família.
Finda a ceia, a criançada resistia por algum tempo ao sono, jogando ao «par-ou-pernão», à «derindaina» (tentando adivinhar o número de amêndoas que o parceiro tinha fechadas na mão) ou ao «rapa-tira-deixa-põe» com pinhões e amêndoas. Depois, dirigia-se à lareira da cozinha, onde depositava o sapatinho à espera que o Menino Jesus, descendo em segredo pela chaminé, viesse durante a madrugada colocar nele as suas prendas.
Enquanto isso, avós, pais e os filhos mais velhos juntavam-se à volta da lareira, recordando, em amena cavaqueira, episódios passados dos entes queridos da família, dos presentes, dos que estavam longe e dos familiares desaparecidos, ou falando do andamento dos trabalhos do campo, da apanha da azeitona e da próxima matança do porco, e relembrando lendas, usos e costumes, tradições e crenças populares que continuavam presentes na memória coletiva das gentes do lugar.
Entretanto, no largo fronteiro à casa da família, juntavam-se homens e rapazes conversando, rindo, e bebendo, acendiam uma grande fogueira para se aquecer do frio cortante da invernia, e a dado momento começavam a cantar em coro:
«Esta noite, à meia noite… um anjo do céu baixou… a visitar o Menino, que Deus à terra mandou. Ó meu Menino Jesus, ó meu menino tão belo… só tu pudeste nascer na noite do caramelo… Ó meu Menino Jesus, não queiras menino ser… no rigor do caramelo, a neve te faz gemer… O Menino está com frio, o frio o faz tremer, Menino Deus da minh’alma, quem vos pudera valer…»
A certa altura, apareciam por lá também os pastores da terra. Para se defenderem dos rigores do inverno, vestiam calças de serrubeco e safões de pele de ovelha e agasalhavam-se com uma ampla capa de burel castanha, resguardando a cabeça com um barrete de lã e calçando botas de couro ferradas. Alguns seguravam na mão um cajado de lódão e enchiam o terreiro com os sons metálicos dos chocalhos que traziam pendurados à cintura, outros iam repetindo ao som da flauta loas ao Menino:
«À ordem de César, sai de Nazaré… a Virgem Maria com Santo José. Chegam a Belém, não acham pousada… vão fora de portas, a fazer morada. É chegado o tempo, de ela dar à luz… A Virgem Maria, a mãe de Jesus. Envolto em panos, em palhas deitado… no santo presépio, lá está recostado… ó pastorinhos da serra, correi todos, ide ver… a pobreza da lapinha, onde Jesus veio nascer… Vamos nós todos… alegres também… cantar ao Menino, que nasceu em Belém…»

A missa do Galo
À meia-noite começava a missa do Galo. Para se alumiarem, todos os fiéis levavam velas que conservavam durante a liturgia. Entretanto, chegavam ao templo os pastores da aldeia e dos lugares em redor tocando as suas flautas rústicas, e entoando cânticos em louvor do Menino Deus:
«Alegrem-se os céus e a terra, cantemos com alegria, que já nasceu o Menino, filho da Virgem Maria…»
Como numa réplica, ouviam-se então as vozes rudes de homens e mulheres cantando em uníssono: «Entrai pastores, entrai por este portal sagrado, vinde adorar o Menino numas palhinhas deitado…»
No fim da missa, o sacerdote ia ao presépio buscar a imagem do Menino e, depois de a incensar, dava-a a beijar aos presentes, num ambiente onde os cantos litúrgicos se misturavam com o o fumo e o odor acre do incenso que se expandiam por todo o espaço do templo. E os homens cantavam:
«Bendito e louvado seja, o Menino Jesus nascido»… «No ventre da Virgem Maria, nove meses andou escondido», continuavam as mulheres… «Ó pastorinhos da serra, correi todos, vinde ver… a pobreza da lapinha onde Jesus veio nascer!», entoavam em coro os membros da assembleia.
Por tudo isso, a noite de Consoada era uma noite mágica.
O Ano Novo
Uma semana mais tarde, o Ano Novo era celebrado com ritos especiais.
Na passagem do ano, comiam-se doze passas de uva, para que o novo ano fosse um ano de abundância. Havia também a tradição de um rapaz se vestir de Ano Velho e outro de Ano Novo e à meia-noite expulsava-se o Ano Velho. Na manhã seguinte, primeiro dia do ano, toda a gente procurava vestir um fato novo, como que a significar… «Ano novo, vida Nova».
Antes da missa desse dia festivo, organizava-se um peditório para o Menino Jesus. Ao toque do sino da igreja, o mordomo do peditório saía à rua com a imagem do Menino, acompanhado de um grupo de rapazes de cesta na mão e, em seguida, entravam, uma após uma, em todas as casas da aldeia a solicitar as oferendas. Os seus moradores beijavam a imagem e enchiam as cestas com presentes. Acabado o peditório, o sino anunciava o começo da missa e toda a gente rumava em direção à igreja. No fim da cerimónia, procedia-se no adro do templo ao leilão das oferendas, cujo pecúlio revertia para os pobres da freguesia.

O cantar das Janeiras
Ao cair da noite, havia a tradição de cantar as janeiras à porta das casas. Um grupo de rapazes postava-se no pátio fronteiro à minha casa e anunciava ao que vinha, cantando em alta voz:
«Aqui chegados, senhores, das partes do oriente, vimos dar as boas-festas a esta boa gente.»
Seguiam-se as loas às pessoas da casa:
«Viva o dono desta casa, lábios de cravo vermelho, que é o homem mais honrado, que passeia no concelho» e «Viva a menina da casa, raminho de salsa crua… Quando vai para a igreja, alumia toda a rua».
Mas os cantores não se despediam, sem antes pedirem em paga um presente:
«Viva a dona desta casa, aí sentadinha à lareira… levante-se, por favor, dê-nos uma farinheira… Já vejo andar a faca e o canivete no ar, para cortar a chouriça, que a senhora nos vai dar.»
Finda a cantoria, a minha mãe abria a porta da casa e presenteava-os com bolos, figos secos, vinho, farinheira e salpicão. Recebido o peditório, os cantores agradeciam, sempre a cantar:
«Vamos dar a despedida, como Jesus em Belém… com as lágrimas nos olhos se despede quem vos quer bem…»
No fim, os cantores repartiam as dádivas pelos membros do grupo, e partiam, aldeia fora, a cantar as janeiras a outros fregueses, repetindo em coro à chegada:
«Viemos cantar os reis, chegámos ao Novo Ano… com prazer e alegria, chegaremos outro ano… Pró Senhor dos Aflitos, os reis viemos cantar… Os benzinhos que vós derdes, aqui estamos prós levar…»
Tempos que já lá vão, dir-se-á. É certo. Mas para mim são imagens duradouras e imperecíveis que, apesar da passagem dos anos, e dos ventos que tudo parecem arrasar nestes tempos de descrença, continuo a guardar na memória e que recordo com saudade.
Natal de 2024
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«Portugal e o Futuro», opinião de Aurélio Crespo
(Cronista/Opinador no Capeia Arraiana desde Julho de 2020)
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