Estava a consoada à porta. Havia semanas que a chuva caía a potes, como ouvia dizer, embora nunca tivesse visto nenhum pote a despejar água do céu!… Mas eu acreditava no que as pessoas «grandes» diziam.

Era preciso ir a Navas Frias buscar farinha para fazer as filhós e uma garrafinha de «anis escartchado», mas os caminhos estavam escorregadios, encharcados e impraticáveis. Mesmo assim, as parceiras iam-se convidando umas às outras e quando as nuvens deixaram passar uns raios de sol, viam-se grupinhos de mulheres envoltas nos xales de lã a desafiarem a intempérie.
A minha tia também foi com a ti Virgínia do ti Eduardo. Abalaram bem cedinho, mas demoraram-se muito por lá. Nesse dia não me levaram. Fiquei com a Palmira lá para a Barreira. Quando começou a escurecer fiquei receosa não tivessem elas escorregado e caído. Já começava a choramingar, embora a Palmira me tivesse feito uma molídia pequenina, ensinado a fazer bonequinhas de lã, me desse uma merenda apetitosa e até me tivesse pegado ao colo. Mas tinha tanto medo que a tia se tivesse magoado ou os carabineiros não a tivessem deixado passar!…
Fomos à fonte e eu experimentei a minha molídia nova com um cantarinho pequenino que a Palmira me pediu para ter cuidado e não o partir porque o pai lho trouxera da «festa de Sacraparte» em Alfaiates, quando ela era pequenina. Claro que eu tive todo o cuidado para lhe fazer ver que eu já era muito crescida, já tinha cinco anos.!…
Estávamos a encher os cantarinhos no chafariz, quando a tia subia a rua. Já nem quis saber da cantarinha, nem da molídia. Corri rua abaixo, parecia que havia anos que a tia tinha abalado! E, não fosse eu tão pequerrucha, a tia teria caído ao chão.
Nesse ano, as primas não puderam vir nas férias do Natal. Estavam em Torres Novas e as viagens eram tão demoradas e caras que nem sempre conseguiam vir.
No dia de consoada, a tia pôs o alguidar no meio da cozinha. Na mesa baixinha, havia um pequeno açafate de verga cheiinho de ovos, a garrafa de anis, sementes de funcho, farinha, açúcar e uma almotolia de azeite. A tia, de joelhos, ia misturando e amassando os ingredientes. Depois, poisou na trempe, uma sertã de esmalte funda, sentou-se na cadeira com uma rodilha branquinha sobre o joelho do lado esquerdo onde moldava as filhós e arrancou um pedacinho de massa. Primeiro, moldou para mim um bonequinho e uma bonequinha, enquanto o azeite aquecia. Só depois continuou a fazer as filhós que ia voltando com o garfo de ferro que meu bisavô fizera. O açafate grande já estava bem forrado com papel manteigueiro para as receber. Eu ia espalhando, sobre elas, colherzinhas de açúcar com canela, tentando não me aproximar muito do lume, como avisava incessantemente a tia, para não fazer cair o azeite quente em cima de nós.
Ao meio da manhã estavam as filhós já todas a dormir tapadinhas de panos branquinhos. A tia nem as provou pois era dia de jejum e abstinência e ela era muito cumpridora.
Agora a cozinha fazia falta para preparar a ceia de Natal… Arranjar as couves tronchudas, descascar batatas, fazer aletria, tapioca, arroz doce… Falando nisso, a tia pediu-me para ir a casa da senhora Isabel Augusta a perguntar se o caldeiro de cobre já não lhe fazia falta. É que, nesse dia, o caldeirinho andava de casa em casa das amigas e parceiras, como se fosse a caixinha da Sagrada Família. Estava dependurado de um prego da trave, na carpintaria do tio, durante o ano. Raramente saía de lá a não ser pelas festas. Dava muito trabalho antes de ser posto ao lume. Era muito bem areado com sal grosso, vinagre e carqueja. Depois, era esfregado com aquela palha de aço fininha que se ia comprar ao comércio do senhor Anacleto e que ele, de um rolo grande, retirava um pedacinho que media com o metro de madeira do balcão e enrolava em papel de jornal. O tacho ainda tinha de ser bem passado por água e seco a preceito não ficasse com algum verdete. Só depois recebia o leite para ir ao lume sobre a trempe.
Mas o dia ainda tem muito, muito para lembrar….
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«Gentes e lugares do meu antanho», crónica de Georgina Ferro
(Cronista no Capeia Arraiana desde Novembro de 2020)
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