No meio da ponte («velha») do Sabugal existiu, durante mais de quinhentos anos, uma cruz de ferro ou marco. Foi colocada no reinado de D. Afonso III, no contexto de demarcação de fronteiras entre Portugal e Castela. Reflete, também, a contenda entre as autoridades de Sortelha e os habitantes do Sabugal, devido aos direitos destes no reguengo da Fatela. Esta só terminou em meados do século XIX com a extinção do concelho de Sortelha. (Parte 1 de 2.)

Junto ao caminho que descia da porta da muralha para a ponte vemos um cruzeiro e um pequeno altar, onde, segundo a inscrição, (…) estão sentados dois santinhos velhos de pau. A vara colocada no centro da ponte recorda acontecimentos do século XIII, relativos à demarcação de fronteiras entre Portugal e Castela.
Documento 1 – «Das inquirições de D. Dinis» de 1315
Depoimentos de algumas testemunhas:
a) «Johane Paaez çapateiro de Sortelha jurado e perguntado disse que el ouvyu dizer a Martim Cafanhom porteiro de Sortelha que foy que el per vezes filhou a portagem pera o alcaide de Sortelha a par da ponte do Sabugal e ouvyo dizer que o termho de Sortelha partia pela agua de Cõa. E disse que en tenpo d’el-Rey don Affonsso a que Deus perdõe vyo estar o concelho de Sortelha deribando os moynhos que chamam de Portugal que estam sobrela ponte porque viinham hy moer os de Sabugal e que foy el hy con o concelho e que mays non sab’ende.» (2)
b) «Domingos Meendiz da Painça termho de Sortelha jurado e perguntado dos dictos artigos e de cada huum deles disse que el s’acorda passa per quareenta anos que el viu a homens d’el-Rey de Portugal midir a ponte do Sabugal con homens do Sabugal per corda e que poseram hũa cruz no meyogoo da ponte. E os de Sabugal ou os de Sortelha ou outros quaesquer depoys que passavam aquela cruz se tragiam sas merchandias de que devyam dar portagem non travavam mays en eles en esta guisa: os que viinham do Sabugal se passavam a cruz ja lhis non demandavam portagem os do Sabugal. Outrrossi os que hiam de Portugal pera Sabugal se passavam a cruz ja os de Sortelha non lhis demandavam portagem. E disse que viu per vezes estar o porteiro do alcaide de Sortelha na ponte do Sabugal contra Sortelha levando a portagem pera o alcaide sen contenda. E disse que ao pee do piar da ponte do Sabugal viu a homens d’el-Rey don Affonsso de Portugal a que Deus perdõe estando hy os do Sabugal chantar hũa estaca de ferro que tiinha hũa crux por sinal e disse que viu hy verter huum vaso de vinho por renenbrança e que ouvyo dizer des o tenpo que s’acorda aca que pela agoa de Cõa partia o termho de Sortelha.» (3)
c) «Domingos Mateus tabaliom de Sortelha jurado e perguntado disse que el ouvyo dizer per muytas vezes que Martim Çaffanhom porteiro de Sortelha fi lhava a portagem a par da ponte do Sabugal contra Sortelha. Do secundo e do terceiro e do quarto artigos disse que o ouvyo dizer. Item disse que s’acorda quando os de Sortelha forom deribar os moynhos que chamam de Portugal e que derribarom a forca que os do Sabugal poserom aalem do rio de Cõa contra Sortelha e que senpre ouvyo dizer que o termho de Sortelha parte pela aguaa de Cõa.» (4)
Documento 2 – «Memórias Paroquiais» de 1758
O Abbade de Santa Maria do Castello, Francisco Xavier de S. Payo, refere-se ao ferro, existente no meio da ponte, do modo seguinte:
«15 – Tem este Rio, junto desta Villa, para a parte do Poente, hurna boa Ponte de cantaria, e no meyo da qual se acha hum marco de ferro, adonde se devide o termo desta Villa do da Villa de Sortelha, e o Bispado de Lamego do da Guarda.» (5)
Comentário
A cruz de ferro no centro da ponte do Sabugal foi colocada no reinado de D. Afonso III , o Bolonhês, (1245-1279).
Esta contenda deve ser entendida no contexto da disputa de território, entre Portugal e Castela, que conduziu à celebração do Tratado de Alcanizes, em 1297.
Os direitos dos habitantes do Sabugal sobre as terras da margem esquerda do rio Côa, nomeadamente o território correspondente ao reguengo da Fatela, eram antiquíssimos, o que sugere uma indefinição das fronteiras entre os dois reinos. Os domínios de Castela poderiam ir além da Urgueira e Aldeia de Santo António, quiçá o Monte de São Cornélio!
Os principais motivos da discórdia, invocados nas Inquirições de D. Dinis, foram:
– A cobrança de portagem, pelo alcaide de Sortelha, na ponte que ligava ao Sabugal;
– O facto destes derribarem os moinhos situados na margem esquerda e pertencentes aos habitantes do sabugal;
– O derrube da forca que os do Sabugal colocaram na margem esquerda do rio Côa.
Para tentar solucionar a contenda, D. Afonso III mandou colocar uma estaca de ferro, que tinha uma cruz no centro da ponte.
– Curiosidade: «… disse que viu hy verter huum vaso de vinho por renenbrança ….»
– A dita cruz ou ferro existiu durante mais de quinhentos anos, pois, em 1758, é referida pelo Abade de Santa Maria do Castelo, Francisco Xavier de S. Payo.
– As rivalidades entre as autoridades de Sortelha prolongaram-se até meados do século XIX!… [aqui]
Notas
(1) Almeida, João de, Livro das Fortalezas de Duarte Darmas, Lisboa, Editorial Império,1943, p. 245.
(2) Marreiros, Rosa, Chancelaria de D. Dinis, Livro III, Vol. 2, Imprensa Universidade de Coimbra, 2019, pp. 111/112… [aqui] (acedido em 04/12/2023).
(3) Idem.
(4) Idem, p. 114.
(5) Censos do Marquês de Pombal em 1758… [aqui] (acedido em 05/12/2023).
(Continua)
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>> Parte 2 de 2… [aqui]
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«Memórias de Sortelha», opinião de António Gonçalves
(Cronista/Opinador no Capeia Arraiana desde Janeiro de 2019)
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