Os sem-abrigo, os idosos e os mais pobres são as traseiras deste país que ninguém gosta de ver. E não é com promessas, nem com discursos políticos redondos, nem com meras declarações de boas intenções dos governantes, nem com beijinhos ou meiguices que se resolvem os seus problemas. Não basta dizer, dizer, dizer… É preciso fazer acontecer.

Dividirei a análise desta problemática em três partes distintas, começando por analisar a forma como os governantes deste país têm procurado responder aos problemas das pessoas sem-abrigo para, em seguida, descrever quais os resultados práticos desta resposta.

Os sem-abrigo
Antes, porém, importa esclarecer o «conceito de pessoa em situação de sem-abrigo» definido pelo segundo Governo de António Costa.
Nos termos da Resolução do Conselho de Ministros, de 25 de Julho de 2017 aprovada pelo dito Governo, «considera-se pessoa em situação de sem-abrigo aquela que, independentemente da sua nacionalidade, origem racial ou étnica, religião, idade, sexo, orientação sexual, condição socioeconómica e condição de saúde física e mental, se encontre:
1) sem teto, vivendo no espaço público, alojada em abrigo de emergência ou com paradeiro em local precário;
2) sem casa, encontrando-se em alojamento temporário destinado para o efeito.»
1 – A estratégia do Governo
Através da Resolução do Conselho de Ministros atrás citada, o dito governo do PS apresentou ao país um documento oficial designado por «Estratégia Nacional para a Integração das Pessoas em Situação de Sem-Abrigo» para o período 2017-2023 (adiante também designada pelo acrónimo ENIPSSA 2017-2023).
Esta estratégia governamental tinha como objetivo genérico «a criação de condições que garantam a promoção da autonomia das pessoas sem-abrigo, através da mobilização de todos os recursos disponíveis de acordo com o diagnóstico e as necessidades individuais, com vista ao exercício pleno da cidadania».
De acordo com o referido documento do citado governo de António Costa, a ENIPSSA 2017-2023 assenta numa «visão holística de prevenção e de intervenção, centrada nas pessoas em situação de sem-abrigo, por forma a que ninguém tenha de permanecer na rua por ausência de alternativas».
Nesta ótica, a ENIPSSA 2017-2023 enunciava um vasto conjunto de objetivos basilares a ter em conta para o efeito, designadamente:
«– Um conhecimento atualizado da dimensão e natureza do fenómeno que sustente o desenvolvimento de estratégias de intervenção;
– Uma abordagem centrada nos direitos humanos e na realização da dignidade da pessoa;
– A implementação de medidas de prevenção, intervenção e acompanhamento;
– A responsabilização e mobilização do conjunto das entidades públicas e privadas para uma intervenção integrada e consistente, no sentido de garantir a acessibilidade aos serviços, respostas e cuidados existentes;
– A adequação às especificidades locais e dos diversos grupos que compõem as pessoas em situação de sem-abrigo;
– A participação proativa e promoção da capacitação da pessoa em situação de sem-abrigo em todos os níveis do processo de inserção social;
– A garantia de uma intervenção de qualidade centrada na pessoa, salvaguardando a reserva da sua privacidade, ao longo de todo o processo de apoio e acompanhamento;
– A monitorização do processo e avaliação dos resultados de implementação da Estratégia.»

Organismos, atribuições e competências da ENIPSSA
A pretexto desta visão holística (i.e., interdisciplinar) da referida «Estratégia Nacional», a referida Resolução do Conselho de Ministros criou:
1. Uma Comissão Interministerial presidida pelo Ministro do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social, e composta por um representante de cada um dos seguintes dezasseis (16) Ministérios do Governo em funções: «Ministério dos Negócios Estrangeiros; Ministério da Presidência e Modernização Administrativa; Ministério das Finanças; Ministério da Defesa Nacional; Ministério da Administração Interna; Ministério da Justiça; Adjunto do 1.° Ministro; Ministério da Cultura; Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior; Ministério da Educação; Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social; Ministério da Saúde; Ministério do Planeamento e das Infraestruturas; Ministério da Economia; Ministério do Ambiente; Ministério da Agricultura, Florestas e Desenvolvimento Rural; e Ministério do Mar.»
Esta Comissão Interministerial teve por missão assegurar a definição, articulação e execução das políticas públicas nesta área, por via da convergência de objetivos, recursos e estratégias entre os diferentes organismos com responsabilidades na implementação de medidas de política e de intervenção para as «pessoas em situação de sem-abrigo».
2. Um Grupo de Implementação, Monitorização e Avaliação da referida Estratégia (adiante também designado pelo acrónimo GIMAE) que tem como competências promover e acompanhar o desenvolvimento da ENIPSSA 2017-2023 garantindo a mobilização do conjunto dos intervenientes de forma a assegurar, quer a implementação desta Estratégia, quer a monitorização e a avaliação de todo o processo.
Este Grupo de Trabalho, coordenado pelo Instituto da Segurança Social, I. P., é composto por trinta e três (33) membros:
«– Entidade coordenadora: Instituto da Segurança Social, I. P. (ISS, I. P);
– Entidades públicas ou com capital público: Administração Central do Sistema de Saúde, I. P. (ACSS, I. P.); Administrações Regionais de Saúde, I. P. (ARS, I. P.); Águas de Portugal; Alto Comissariado para as Migrações (ACM); Associação Nacional de Freguesias (ANAFRE); Associação Nacional de Municípios Portugueses (ANMP);
– Comissão Nacional de Combate ao Desperdício Alimentar (CNCDA); Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género (CIG);
– Direção-Geral das Autarquias Locais (DGAL); Direção Geral da Segurança Social (DGSS); Direção Geral da Saúde (DGS); Direção Geral da Educação (DGE); Direção Geral de Política do Mar (DGPM); Direção-Geral de Recursos da Defesa Nacional (DGRDN); Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais (DGRSP); Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP);
– Guarda Nacional Republicana (GNR); Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana (IHRU, I. P.); Instituto do Emprego e Formação Profissional, I. P. (IEFP, I. P.);
– Instituto Nacional de Estatística, I. P. (INE, I. P.); Laboratório Nacional de Engenharia Civil (LNEC); Polícia de Segurança Pública (PSP); Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (SCML); Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências (SICAD);
– Entidades privadas: Centro de Estudos para a Intervenção Social (CESIS); Confederação Nacional de Instituições de Solidariedade (CNIS); Rede Europeia Anti-Pobreza (EAPN Portugal); Federação Nacional de Entidades de Reabilitação de Doentes Mentais (FNERDM); União das Misericórdias Portuguesas (UMP).»
3. Um Núcleo Executivo que, no âmbito do GIMAE, tem por missão implementar, monitorizar e avaliar a mencionada Estratégia Nacional.
Este Núcleo Executivo é coordenado pelo pelo Instituto da Segurança Social, I.P. e é composto por:
– Elementos das entidades públicas e privadas que constituem o Grupo de Trabalho GIMAE atrás identificado;
– Elementos representativos dos Núcleos de Planeamento e Intervenção Sem-Abrigo (NPISA). mais adiante melhor identificados.
4. Uma Comissão Consultiva que tem como atribuições assessorar técnica e cientificamente o GIMAE. Esta Comissão é composta por:
– Entidades e/ou personalidades com trabalho de investigação reconhecido neste domínio;
– Organizações de voluntários;
– Associações de pessoas que já estiveram em situação de sem-abrigo.
Esta Comissão é «coordenada, por inerência, pela coordenação» do GIMAE e tem como competências emitir parecer sempre que solicitado pelo GIMAE e emitir recomendações.
5. Núcleos de Planeamento e Intervenção Sem-Abrigo (NPISA), no âmbito dos Conselhos Locais de Ação Social (CLAS) ou de plataformas supraconcelhias.
Os NPISA têm como principais competências: o diagnóstico do fenómeno dos sem-abrigo, a identificação e mobilização dos recursos, a planificação das atividades, a coordenação de intervenções, a articulação com o Núcleo Executivo do GIMAE e com as entidades públicas e privadas envolvidas no processo, bem como contribuir para a implementação e monitorização da Estratégia ENIPSSA 2017-2023, e a monitorização da execução dos planos de inserção das pessoas sem-abrigo.
Cada Núcleo de Planeamento e Intervenção Sem-Abrigo é constituído por:
«– Um representante da câmara municipal;
– Um representante das entidades ou organismos do setor público, nomeadamente os tutelados pelos membros do Governo nas seguintes áreas: Emprego, Segurança Social, Educação, Saúde, Justiça, Administração Interna, Obras Públicas , Ambiente, Cidadania e Igualdade;
– e ainda por todas as entidades com intervenção na área que desejem estabelecer um trabalho articulado e integrado, e às quais seja reconhecida competência para tal por todos os outros parceiros.
Em face do que precede, fácil se torna constatar que a Estratégia Nacional para a Integração das Pessoas em Situação de Sem-Abrigo (2017-2023), criada pelo segundo Governo de António Costa para responder aos problemas destas pessoas, acabou – a pretexto de uma suposta visão holística de interconexão entre os seus órgãos e estruturas – por se traduzir numa solução alicerçada numa espécie de «pirâmide invertida», ou, se se preferir, num descomunal mastodonte burocrático, pesado, incongruente, disforme e ineficiente e baseada numa vasta panóplia de atribuições e de competências repetidas ad nauseam e partilhadas um pouco por todos e cada um dos referidos órgãos e estruturas (Ministérios do Governo, GIMAE, Núcleo Executivo, Comissão Consultiva, NPISA’s) em torno de objetivos como a articulação e a execução das políticas visadas, e de funções de análise, de diagnóstico, de planificação, de coordenação, de implementação, de monitorização e de avaliação da referida Estratégia Nacional.
Por outro lado, importa chamar a atenção para a participação multitudinária dos intervenientes no processo desta ENIPSSA 2017-2023 (16 representantes do Governo, dezenas e dezenas de entidades públicas, privadas e de outras com intervenção na área, organizações de voluntários e até associações de sem-abrigo), que se acotovelam e cavalgam, em «regime de duplo emprego», as mesmas atribuições e as mesmas competências nos supracitados órgãos e estruturas.
Ora, se é garantido que esta participação plurisectorial no processo de implementação, da monitorização e da avaliação da dita Estratégia Nacional se traduziu, por um lado, num substancial aumento das despesas do Estado e, consequentemente, dos contribuintes (tanto em gastos de funcionamento dos serviços, como em nomeações, em vencimentos, em reuniões, em prémios de presença, em viagens e noutras mordomias conexas), por outro lado, «o verdadeiro exército de generais» secundados por «oficiais de média e baixa patente» e apoiado em grupos de «soldados» e de voluntários oriundos de vários azimutes e repartidos a esmo no terreno” que foi criado para participar nesse processo não auguravam nada de bom quanto à eficiência, à coerência, à coordenação, à articulação, à implementação, à monitorização e à avaliação dos serviços prestados aos sem-abrigo e, consequentemente, quanto aos resultados práticos da referida Estratégia Nacional.

2 – Resultados alcançados
Aqui chegados, cabe perguntar: ao fim de seis anos e meio de vigência desta «Estratégia Nacional para a Integração das Pessoas em Situação de Sem-Abrigo» (2017-2023) terá a situação dos sem-abrigo acaso melhorado?
A resposta a esta questão é dada pelos dados oficiais disponíveis até dezembro de 2022 que dizem que o número das pessoas sem-abrigo aumentou 78% relativamente a dezembro de 2018.
Em 2018 eram 6.044. Entretanto, os números oficiais disponíveis até dezembro de 2022 apontam para 10.773 pessoas sem-abrigo que vivem na rua. Mas o crescimento destes números vai ser, contudo, bem mais expressivo no fim da vigência da ENIPSSA 2017-2023, isto é, em 31 de dezembro próximo, já que falta conhecer os dados oficiais relativos ao ano em curso – 2023, uma vez que nos últimos meses – assegura quem trabalha ou vive na rua – esses dados têm sido de subida exponencial.
Dito isto, é caso para dizer que «a montanha pariu um rato» uma expressão usada na Arte Poética de Horácio numa pequena história dirigida por este poeta romano a todos quantos passam o tempo a ameaçar e a prometer, mas que em seguida pouco ou nada fazem nem cumprem o prometido.
Provavelmente o nosso povo, sobretudo aquele que se dedica aos duros trabalhos do campo no chamado Portugal Profundo não hesitaria em aplicar ao presente caso da ENIPSSA 2017-2023, outra sábia expressão popular: «Muita parra e pouca uva.» E talvez o povo urbano das grandes cidades talvez optasse simplesmente por concluir que a anunciada «Integração das Pessoas em Situação de Sem-abrigo» não se alcança apenas «por decreto» do Conselho de Ministros.
Em boa verdade, e descendo do reino das boas intenções à crua realidade dos factos, quando se fala de «pessoas sem-abrigo» não se trata apenas de lamentar a situação daquelas que procuram refúgio debaixo das pontes, mas também de milhares e milhares de outras pessoas sem teto ou sem casa que se abrigam não só nas ruas das grandes cidades como Lisboa e Porto mas também no Alentejo ou no Algarve, usando tendas ou pedaços de cartão e dormindo ao relento envoltas em mantas usadas ou em leitos improvisados a cada dia que passa.
Estas pessoas são em grande medida vítimas da extrema pobreza, ou de dificuldades ligadas ao acesso à habitação, à imigração, a doenças psiquiátricas, ao alcoolismo ou à adição ao consumo de droga.
Dois terços das pessoas sem-abrigo são homens de média e avançada idade sem rede familiar, mas, contrariamente ao que muita gente julga, começa a aparecer, cada vez mais, gente mais nova e também milhares de imigrantes, designadamente do subcontinente indiano (India, Bangladesh, Nepal) que vivem sós ou em família.

De facto, «o número de pessoas sem abrigo tem vindo a aumentar rapidamente e é transversal, de portugueses a estrangeiros, de jovens a idosos» declarou recentemente à comunicação social Renata Alves, diretora-geral da «Comunidade Vida e Paz» uma IPSS nascida em 1989 sob os auspícios do Patriarcado de Lisboa que se dedica em especial ao acompanhamento e reinserção familiar que acrescentou: «Só este ano (2023) registou-se um aumento de cerca de 25%, essencialmente devido ao agravamento das condições de vida, à imigração e ao aumento do consumo de droga.»
Efetivamente, «em Lisboa o fenómeno dos sem-abrigo mudou» confirmou também Rita Valadas, presidente da «Cáritas» ao semanário Expresso. «Antes, eram essencialmente homens com problemas de saúde mental ou dependência. Agora o perfil é muito variado. E há famílias inteiras sem casa. A situação está muito agressiva». E concluiu, dizendo: «As respostas a este flagelo social não estavam dimensionadas para um problema desta magnitude.»
Na verdade, segundo a citada diretora-geral da «Comunidade Vida e Paz», «as respostas que existem não chegam para todas as pessoas que vivem atualmente na rua. Os centros de acolhimento estão cheios. E as Instituições Particulares de Solidariedade Social (IPSS) estão a atravessar muitas dificuldades devido à subida dos custos de vida, à ausência dos apoios e à descida dos donativos.»
«Devíamos assumir todos que falhámos» criticou por sua vez Américo Nave, diretor da «Associação Crescer» cuja missão é ir ao encontro do outro promovendo a saúde, a redução de riscos e a inclusão das pessoas em situação de vulnerabilidade através de projetos de intervenção na comunidade: «Gastam-se milhões de euros e as pessoas continuam na rua ou numa “porta giratória”, dependentes de uma lógica de caridade. Há em Portugal mais de 10.000 pessoas sem-abrigo e o PRR não tem um tostão para lhes dar casa. O único dinheiro que existe é para dar respostas de emergência e temporárias. Continuamos a falhar na resolução deste problema.»

Mais palavras para quê?
Esta crítica deveria chegar aos ouvidos do Governo. E também aos ouvidos do Presidente da República que, apesar de não ter quaisquer poderes de governo para resolver a problemática dos sem-abrigo, ainda assim, não se eximiu em 2019 de traçar como objetivo nacional «tirar da rua até 2023 todos os que dela quisessem sair». Ora, esgotado que está este prazo, não só não se acabou com o flagelo dos sem-abrigo, como, pelo contrário, segundo os dados oficiais até agora conhecidos, o número das pessoas sem-abrigo em Portugal aumentou 78% no período de 2018-2022.
Marcelo Rebelo de Sousa voltaria mais tarde a declarar publicamente que não quereria terminar o seu mandato sem ter resolvido este grave flagelo social do nosso país.
Mas, como querer é uma coisa, e fazer acontecer é outra, fácil se torna concluir que, pelo andar da carruagem, também este voto piedoso do Presidente não irá, a não ser por divino milagre, ser alcançado até ao fim do seu mandato.
Na verdade, a estratégia dos sucessivos governos de António Costa e as boas intenções do Presidente da República tendo em vista a resolução dos problemas dos sem-abrigo falharam por completo.
Em suma, para resolver este grave problema social não basta viver da caridade das Instituições de Solidariedade Social que apoiam os sem-abrigo, nem tão pouco basta acreditar em votos piedosos, em meras declarações de boas intenções ou em promessas dos governantes que passam o tempo a dizer, dizer, dizer…mas que não ousam passar das palavras – e das leis publicadas no Diário da República – ao rigoroso cumprimento das promessas feitas e dos objetivos visados pelas leis que eles próprios aprovaram.
Não. Não basta dizer, dizer, dizer… É preciso fazer acontecer.
Bruxelas, 2 de dezembro
:: ::
«Portugal e o Futuro», opinião de Aurélio Crespo
(Cronista/Opinador no Capeia Arraiana desde Julho de 2020)
:: ::
Leave a Reply