Esta crónica foi escrita em Agosto de 2022 nas vésperas de partir da Lunda Norte para a província do Bié, onde actualmente me encontro. Tenho muito texto escrito e alguns acho que devo partilhar…

A missão na Lunda Norte foi difícil, não só pela sua interioridade, como também por ter sido a primeira assistência técnica que teve. A escrita era a «arma» que usava para combater a solidão e também para aprender com os angolanos como é o seu pensamento. Não posso esquecer que iniciei a escrita da poesia na Lunda Norte e muito reconhecimento tive do «povo Tchokué» e da Diocese do Dundo.
«Em pequeno era muito desassossegado. Fazia perder a paciência a alguns tios e primos. Os primos até gozavam comigo por pensar diferente. Eu detestava quando um deficiente recebia uma esmola. Na verdade, tinha a sensação de um tratamento humilhante numa época em que, na verdade, não havia Segurança Social, e não havia outra forma de ajudar. Aliás na escola adorava brincar com meninos deficientes. Ninguém lhes ligava!
Tirando uns primos que viveram e cresceram em Moçambique, um deles infelizmente já falecido, o resto das pessoas que me rodeavam olhavam para os «não ocidentais» como uns atrasados e incapazes.
Eu próprio fui vítima de racismo porque tinha uma maneira de pensar diferente. Por isso falava muito com o «Tio Surdo». Achava me inteligente e capaz, gostando de me ensinar política. Tratava-me de maneira diferente e até falava mais comigo do que com outros. Foi daí que me veio a paixão do cachimbo. E hoje sinto-o, como se ele estivesse ao pé de mim.
Admiro-o porque convivia muito com a família da sua esposa, nunca tendo visto qualquer sinal de desagrado. E sempre foi prestável, nunca se queixando ou lastimando. Eu pessoalmente reconheço um mérito que nunca consegui!
Outro aspecto importante da minha vida foi durante a 5.ª e 6.ª classe conviver apenas com rapazes. Não haviam escolas mistas. E na 7.ª classe eu tive muita dificuldade em lidar com raparigas devido essencialmente à insensibilidade que me caracterizava, sendo muitas vezes mal interpretado. Só tenho uma amiga do tempo de liceu. Era irmã de uma colega de turma e foi meu par no baile de finalistas. Também era muito sensível e entendia as minhas diferenças ficando ainda hoje uma amiga de coração.
Na universidade era uma faculdade de homens. Mas fiquei muito amigo também de uma mulher diferente. Foi da minha turma. É muito bonita e chegou a ser modelo. Mas tinha um raciocínio prático e objectivo. Hoje ainda somos amigos.
Conheci a minha mulher numa fase difícil da minha vida. Andava angustiado porque não me identificava com a sociedade. Com a faculdade, com a família.
A Carla foi um «clarão». A sua classe de falar e até de estar à mesa da refeição era o que mais me surpreendia. Nunca imaginei que uma rapariga daquele nível me quisesse.
E na verdade foi com ela que a minha vida mudou. Apoiou-me no curso, falávamos muito, tal como hoje. No princípio nem pensava em casar comigo, mas com o tempo fomo-nos juntando. E procurava educar- me, porque de facto fui muito mal preparado em casa.
Devo-lhe a minha carreira profissional, inclusive estar hoje em Angola, ter conseguido o grau de Mestre (antes do acordo de Bolonha), ter estabilidade em casa e ter um apartamento espectacular.
Se sou escritor, tive sempre o seu apoio, mesmo reconhecendo que alguns textos a podem incomodar. Mas ela é assim. Vertical. Distingue o pensamento do artista e a imaginação do homem.
Uma característica interessante nela é haver sempre bolo de aniversário e um postal de recordação. Por exemplo, nos meus 18 anos, nem tive bolo. Na verdade, é um hábito de festejo que nos junta e cria bom ambiente familiar.
Se hoje sou respeitado também muito lhe devo.
A minha vida profissional foi sempre muito intensa. Poucos foram os trabalhos pausados. Apenas tive um, com espanhóis, que deu para tirar o curso de mestrado e desenvolver algumas capacidades diplomáticas.
O gosto pela escrita veio no Natal de 2014, em que escrevi o meu primeiro livro a sério. Acabou por esgotar, seguindo a falência da Editora, impedindo uma segunda edição. Sem dúvida que estando na casa da família da minha mulher sentia um distanciamento que o meu «Tio Surdo» nunca sentiu. Mas na verdade a família do conjugue, na minha visão, não é a nossa.
Depois veio o grande projecto do «Vivências Paralelas». Consegui vencer o medo da poesia e escrevi numa altura em que o meu sogro estava num estado terminal, tendo comprado um caderninho onde guardo os manuscritos, enquanto a Carla estava no hospital junto de seu Pai. Também de um momento triste, tive apoio da minha esposa, e também da minha empresa, para o meu único grande projecto internacional, sentindo um orgulho enorme por ter feito tudo ao meu alcance, para ajudar a lançar um eventual talento da cultura de Angola.
Em resumo este sou eu, Graças a Deus!»
Escrito no Dundo, capital da Lunda Norte, aos 14 de Agosto de 2022.
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«No trilho das minhas memórias», crónica por António José Alçada
(Cronista/Opinador no Capeia Arraiana desde Junho de 2017)
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