Há anos que escrevo nas plataformas digitais sobre a minha aldeia. E, de quando em vez, gosto de chamar à colação escritos antigos. É o caso do que vai ler hoje. Coisas de todos os dias nos meus tempos de criança…

Dantes, o contrabando e a ida ao barbeiro eram realidades e momentos altos da vida da aldeia, para quem olhava e via coisas do arco da velha, como então dizíamos. Leia e divirta-se, como eu…
1
Contrabando – um pouco mais de qualidade de vida
É disso que se trata. O contrabando trazia, por baixo preço, um pouco mais de qualidade de vida às pessoas da zona. O contrabando foi uma actividade comercial considerável durante duas ou mais décadas: desde o fim da Guerra Civil espanhola até ao 25 de Abril. Mas com maior pujança, sem dúvida nas décadas de 40, 50 e 60. É aí que estamos. Essencialmente, até, nas décadas de 40 e de 50.
Os quadrazenhos arriscavam tudo pelo contrabando, isto é, para atravessarem a fronteira, irem ao lado de lá, às primeiras aldeias e vilórias espanholas comprar, depois atravessarem para cá com as costas carregadas de «taleigos» (sacos) cheios de material.
Do lado de lá, os guardas civis facilitavam. Obrigado! Era exportação dos produtos deles… Do lado de cá, os guardas fiscais eram implacáveis. Quando os apanhavam, parece que a coisa era mesmo a doer por aquelas serranias abaixo e acima…
A ti’ Isabel Quadrazenha era um cromo destas andanças. Aparecia lá na terra todas as semanas carregada e saía de lá só com o dinheirito no bolso. A mercadoria era toda escoada.
Conhecia toda a gente da terra. E toda a gente a conhecia. E esperava-se por ela, como se esperava pela camioneta da carreira ou pela camioneta do peixe: fazia parte da «paisagem» semanal.
Mas, afinal, o que é que a ti’ Isabel Quadrazenha trazia nos seus sacos?
Tudo do melhor para a época. Boinas espanholas com bilro. Eh!, pá. Quem é que não queria andar com uma boina espanhola na cabeça? Alpergatas, rascas à brava, mas do melhor que se podia comprar para a vida diária e sem problemas de «fashion» ou de «in» ou «out». Uma espécie de ténis da época. Chocolates. Caramelos. Muitos caramelos. E que bons.
2
Ceregumil – tudo de uma vez!
Os quadrazenhos traziam também uma espécie de medicamento de venda livre: o Ceregumil. Um xarope concentrado, altamente vitaminado que servia para os putos abrirem o apetite. A ti’ Isabel Quadrazenha vendia-o muito mais barato do que as farmácias em Portugal. Toda a gente lho comprava, sobretudo para a miudagem.
Era bom e fácil de tomar. E era doce e bom que se fartava.
Uma vez o ti’ Narciso (barbeiro-enfermeiro-médico da aldeia) receitou três frascos a um gajo que andava fraquito. Aquilo era tomado às colheres: três por dia. Mas o tipo, um patuleiazito, um pobre-diabo com quem toda a gente gozava, achou que aquilo era tão bom que havia de fazer bem se o tomasse logo todo. Assim curava-se logo, pensava o ti’ Luís Far’nheira. «Mamou» logo os três frascos, como quem bebe uma garrafa de vinho. E pronto… Depois levou um raspanete do ti’ Narciso. Mas ele não se importou nada: curou-se e isso é que era importante.
3
Mercadoria – os barbeiros de hoje são diferentes…
O tempo não está grande coisa, embora a praia me atraia sempre. E está-se bem na areia. Mas, hoje decidi. Teve de ser. Detesto este dia: ter de ir cortar o cabelo. Entro…
É a primeira vez, aqui. Como é que vai ser. Correu bem. Mas começou mal. Senti-me mercadoria. Delicadamente tratado, mas mercadoria:
– Pode sentar-se ali?
Espero. Espero. Saco de uma revista (sei lá, a «Olá» de há uns três meses, já sem capa: tudo o resto eram revista da especialidade: cortes para senhoras, tintas, enrolamentos… Pego na «Olá»). Li-a toda. Que tempos à espera. E começo a ferver. Nasce aí a ideia de mercadoria. Às tantas, por fim:
– Pode sentar-se ali para lavar o cabelo?
Sentei-me. Esperei. Muito. Lá começou então função. Corte quase pronto.
– Pode sentar-se além para enxaguar a cabeça?
Sento-me. Espero. Vem outra pessoa e lava-me a cabeça, de facto. E o resto correu mais ou menos. No regresso, uma memória de recordação: as idas ao ti’ Narciso, o barbeiro. Era mesmo outro mundo. Mas aí, uma recordação traumática. O mesmo ti’ Narciso também me arrancava os dentes… a sangue frio.
Que horror, meus amigos. Só me lembro bem da bacia de esmalte cheia de água com sangue (meu)…
Obrigado por me ler! Até para a semana, à mesma hora, no mesmo local!
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«A Minha Aldeia», crónica de José Carlos Mendes
(Cronista/Opinador no Capeia Arraiana desde Janeiro de 2011)
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