Na código de valores do presidente do governo de Espanha – Pedro Sánchez – a palavra dada vale zero. O seu compromisso eleitoral com os cidadãos depende das circunstâncias e a Constituição de Espanha, o Estado de Direito, as decisões dos Tribunais e o princípio da Separação de Poderes de nada valem sempre e quando constituam um obstáculo à sua desmesurada ambição de se manter a todo o custo no poder.

No seguimento das eleições legislativas de 23 de Julho deste ano – perdidas pelo PSOE e vencidas por maioria relativa pelo PP (Partido Popular) – Pedro Sánchez optou por renovar a anterior maioria de apoio parlamentar, um curioso melting pot constituido pelo PSOE, por partidos regionalistas de esquerda e de direita, por partidos da-esquerda radical, pelos independentistas da Catalunha e pelos herdeiros do terrorismo basco da ETA. Isto aconteceu porque o xadrez político-partidário saído das referidas eleições o obrigou, entretanto, a alargar esses apoios da última legislatura ao próprio ex-presidente da Catalunha no exílio, Carles Puigdemont, o homem que organizou a 1 de outubro de 2017 um referendo ilegal na Catalunha – facto que, na ocasião, lhe mereceu da parte do próprio Pedro Sánchez o cognome de «Le Pen espanhol» mas que, para escapar à prisão, decidiu fugir heroicamente de Espanha dentro da mala de um carro.
A liturgia das negociações desse pacto político de Sánchez com o foragido Puigdemont e o seu partido independentista foi penosa de se ver. Estando os espanhóis a banhos no verão passado, Yolanda Díaz, vice-presidenta (segunda) do governo de coligação cessante, e líder da extrema-esquerda espanhola, rumou a Bruxelas para um primeiro beija-mão ao exilado ex-presidente catalão.
A procissão fez escola e, a 30 de Outubro último, o «número 3» do PSOE, Léon Santos Cerdán, fez-se acompanhar da líder dos socialistas europeus, Iratxe García-Pérez – uma senhora que passou os últimos seis anos a afirmar publicamente que Puigdemont era um foragido à Justiça espanhola e não um exilado político – para negociarem esse pacto com o antigo-presidente do governo da Catalunha.
Deste encontro resultou aquilo que a imprensa espanhola já vinha anunciando há meses: Carles Puigdemont e a sua meia dúzia de deputados do Junts per Catalunya, aceitaram apoiar uma nova «investidura» de Pedro Sánchez como presidente do governo de Espanha a troco de uma Lei de Amnistia aplicável aos condenados no processo judicial do Supremo Tribunal de Espanha por co-autoria do referido referendo ilegal de de Outubro 2017. Ou seja, Puigdemont, que, por outro lado, prometeu reincidir na prática de um novo referendo ilegal na Catalunha, disse que apoiaria a investidura de Pedro Sánchez caso este aprovasse a referida amnistia.
Perante isto, pouco importou a Sánchez que ele mesmo, bem como vários dos seus ministros, ex-ministros, e outros destacados socialistas tivessem declarado reiteradadamente, desde 2017 até 30 de Outubro deste ano, que jamais apoiariam a dita lei de amnistia uma vez que esta não tem qualquer base constitucional, e porque viola de maneira flagrante e grosseira o princípio da igualdade entre todos os espanhóis perante a lei, bem como o princípio da separação de poderes (Governo, Parlamento, Tribunais), como adiante explicarei.

Pacto anunciado em Bruxelas
O que é certo é que a ambição de Pedro Sánchez se manter no poder depois da sua derrota eleitoral nas referidas eleições de 23 de Julho acabou por mergulhar a Espanha numa encruzilhada não apenas política mas existencial.
Na verdade, face aos resultados destas eleições e ao ulterior falhanço, por escassa diferença de votos, da proposta de investidura de Alberto Núñez Feijóo como presidente do governo espanhol, tornara-se por demais evidente que os partidos independentistas, em particular os partidos da Catalunha, não estariam dispostos a viabilizar, sem contrapartidas, a investidura de um novo governo de Pedro Sánchez. Ora, no que respeita à Catalunha, estas contrapartidas eram:
1) uma amnistia geral para os implicados no referendo ilegal realizado a 1 de Outubro de 2017 na Catalunha; e,
2) a garantia de um novo referendo sobre a independência desta Região Autónoma de Espanha.
E de facto assim aconteceu. Para grande choque de uma grande parte da sociedade espanhola, a 9 de Novembro foi anunciado em Bruxelas que Pedro Sánchez tinha chegado a acordo com Carles Puigdemont pelo qual o lider do PSOE lhe garantiu uma amnistia total dos referidos implicados no referendo de 1 de Outubro de 2017 e aceitou que um mediador internacional negoceie um acordo para um novo referendo sobre a independência na Catalunha.
Não deixa de ser sintomático que este pacto político que corre o sério risco de desencadear a fragmentação da Espanha se tenha celebrado no exterior, em Bruxelas, e que o PSOE tenha entregue a um mediador internacional a negociação do projetado futuro referendo.

Contra a negociação do pacto
Como era de esperar, toda a oposição de direita reagiu imediatamente contra este pacto que põe frontalmente em causa a unidade de Espanha. Alberto Núñez Feijóo, líder do PP qualificou-o de «processo de capitulação» e Santiago Abascal, líder do partido Vox não hesitou em chamar «ditador» a Pedro Sánchez.
Mas importa referir igulamente que, já antes da celebração deste acordo inédito, dentro do próprio PSOE algumas figuras de relevo, entre as quais duas figuras históricas de topo do socialismo espanhol se tinham desmultiplicado em intervenções públicas, demarcando-se e criticando veementemente as negociações atrás referidas de Pedro Sánchez com os independentistas catalães e bascos. Refiro-me ao antigo presidente do governo espanhol Filipe Gonzalez e ao seu vice-presidente Alfonso Guerra.
Alfonso Guerra voltou, aliás, a fazê-lo a 5 de Novembro passado numa entrevista que deu ao quotidiano madrileno ABC. Encarnando uma linha de pensamento que sempre foi a sua, Alfonso Guerra saiu da sua reserva institucional para se pronunciar contra o atual líder do PSOE Pedro Sánchez acusando-o de estar disposto a tudo, para se agarrar ao poder. E não hesitou em afirmar: «A esquerda perdeu o norte, esqueceu a sua missão», frase que, aliás, serviu de chamada de capa no ABC, na data atrás citada.
E o que significa, para Alfonso Guerra, esta «missão falhada» da esquerda?
A resposta de Guerra foi contundente: «Foi ter cedido a “minorias insaciáveis” e ter deixado que se sacrifiquem os ideais sociais à chamada “correcção política” e às “políticas de género.» E o antigo vice-presidente do governo PSOE concretizou: «(…) hoje os partidos de esquerda têm “Secretarias da Igualdade” que se ocupam exclusivamente da igualdade entre homens e mulheres e não da igualdade de oportunidades entre os filhos e filhas de diferentes classes sociais. Agora está tudo fragmentado em função do sexo.»
Por outro lado, Alfonso Guerra tomou posição frontal contra os indultos, as amnistias e o negócio com os separatistas, reservando especial indignação perante a fotografia em que se vê Pedro Sánchez com Arnaldo Otegi, antigo dirigente da ETA terrorista e agora dirigente do seu partido herdeiro EH Bildu, nestes termos: «Otegi é o mesmo. E agora?» – perguntou – «os Etarras vão ser meus sócios?» – e respondeu – «não, esses não são meus sócios, são meus inimigos!» – e rematou – «Yo, esa foto no la trago».
Depois, a propósito da amnistia, Alfonso Guerra referiu-se a Puigdemont como «uma personagem cobarde, atrabiliária e delinquente»; e afirmou que nunca falou com Pablo Iglesias, ex-lider do partido «Podemos», apesar de ter recebido solicitações nesse sentido. Em seguida, referindo-se à campanha existente contra Don Juan Carlos, saiu em defesa do «rei emérito» desta forma: «De faldas e de dinero se puede pensar todo lo que se quiera pero… eso no pueda opacar que un Rey que ha recibido de Franco todos los poderes, diga que no los quiere, que quiere una democracia.»
De facto, Alfonso Guerra, sendo um político da esquerda socialista é acima de tudo um patriota que recusa os jogos e os artifícios de Pedro Sánchez e dos seus atuais correligionários do PSOE para se manterem no poder numa «geringonça» com partidos independentistas que colocam em risco a unidade de Espanha. E por isso constitui um caso de admirável de dignidade pessoal e política que deve servir de exemplo em Espanha e não só.

Reflexões finais
O pacto celebrado no dia 9 de Novembro entre o PSOE e o Junts per Catalunya – que teve o seu óbvio corolário na nova investidura presidencial de Pedro Sánchez a 16 de novembro passado – traiu a memória da transição de Espanha para a democracia, feriu de morte a Constituição e mergulhou o País, o Estado de Direito, o poder independente dos Tribunais e o princípio da Separação de Poderes (fundamental em qualquer Democracia que se preze) no lamaçal de interesses particulares dos independentistas, de Pedro Sánchez e dos seus acólitos.
O fim da separação de poderes em Espanha
De facto, para sepultar de vez o império da Lei em Espanha, Pedro Sánchez prepara-se agora para fazer aprovar no Parlamento espanhol o chamado conceito de lawfare no ordenamento jurídico espanhol. E isto justifica uma explicação.
O «Conceito de Lawfare» consiste, «na utilização dos sistemas e instituições jurídicas para desencorajar a sociedade civil ou dissuadir um indvíduo de exercer os seus direitos legais» a qual, em termos práticos, permite, por exemplo, que o poder legislativo, através de comissões parlamentares, averigue e decida se uma determinada sentença judicial dos Tribunais corresponde, ou não, a uma forma de «perseguição política» ou, pelo contrário, ao simples cumprimento do direito em vigor.
Dito de outro modo, o Parlamento espanhol poderá passar a inspeccionar as decisões dos Tribunais e, caso sejam por ele consideradas «lawfare», iniciar-se-ão «acções de responsabilidade» ou «alterações legislativas» que contrariem as referidas decisões judiciais.
Ora, isto representa , em suma, o fim da separação de poderes em Espanha.
Nestes termos, Pedro Sánchez defende uma solução manifestamente contrária ao Estado de Direito democrático, o que, na prática, se traduz na rendição da Democracia espanhola face à sua desmesurada ganância pessoal pelo poder e à ambição política dos independentistas da Catalunha.
A insusentável leveza do ser de Pedro Sanchez
Com efeito, Pedro Sánchez, atual lider do PSOE – um partido com mais de um século de história e protagonista da transição e da consolidação democrática em Espanha – disse uma coisa e o seu contrário, antes e depois das eleições legislativas de 23 de Julho de 2023. Se não vejamos…
Antes das eleições de 23 de Julho de 2023
Desde a campanha independentista que antecedeu o referendo de 1 de outubro de 2017 levado a cabo na Catalunha por Carles Puigdemont e seus comparsas e até às eleições do passado dia 23 de Julho, Pedro Sánchez sempre entendeu que esse rereferendo era proibido pelo artigo 155 da Constituição espanhola. Ao longo desse período de cinco anos, sempre achou que o referido ato de rebelião independentista de 2017 contrariava a sentença do Supremo Tribunal de Espanha que condenou os seus autores. Chegou mesmo a defender que não deveria haver impunidade para os protagonistas implicados nesse referendo ilegal. Acusou o partido independentista Junts per Catalunya presidido por Puigdemont, de ser um partido xenófobo de extrema direita. Declarou que a eventual amnistia dos implicados no dito referendo não era conforme à Constituição e ao Estado de Direito de Espanha. Chegou mesmo a afirmar que se comprometia a que, quando voltasse a Espanha, o fora de lei Carles Puigdemont prestaria contas à Justiça.
Depois da eleições de 23 de Julho de 2023
Entretanto, uma vez conhecidos os seus maus resultados nas eleições de 23 de Julho de 2023, Pedro Sánchez, inconformado com a sua referida derrota eleitoral, mudou subitamente de opinião e, cedendo à sua desmesurada ambição, decidiu agarrar-se com unhas e dentes à cadeira do poder, negociando, sem pudor, com os partidos independentistas da Catalunha a aprovação de uma Lei de Amnistia e a realização de um novo referendo na Catalunha, a troco de uma segunda investidura como Presidente do Governo de Espanha.
Efetivamente, Pedro Sánchez comprou a narrativa histórica e política do independentismo catalão. Resignou-se à exigência de uma Lei de amnistia ad hominem e abriu a porta a um segundo referendo ilegal na Catalunha, atirando assim para o caixote de lixo da História de Espanha a soberania nacional, a unidade do País, a Constituição espanhola e o poder independente do Supremo Tribunal de Espanha e do próprio Supremo Tribunal da Catalunha. Por outro lado, abdicou do «interesse geral» da Espanha ao renunciar à cobrança de impostos na Catalunha e concedendo a esta Região Autónoma financiamentos avaliados em 42 mil milhões de euros à custa do Orçamento do Estado Central.
Falando de contrapartidas, Pedro Sánchez cedeu igualmente ao independentismo basco, em matéria de Segurança Social, ao abdicar da correspondente competência contributiva, transferindo-a para o País Basco. E acordou com os partidos nacionalistas bascos novos e importantes avanços em matéria de autonomia fiscal e nas leis do trabalho ou em matéria de assistência na saúde, de transportes, de infraestruturas viárias e portuárias e em avultados financiamentos concedidos a esta Região Autónoma.
Dito isto, em breve se verá até que ponto estas contrapartidas serão suficientes para parar as ambições dos partidos independentistas destas duas Autonomias Regionais de Espanha.
Mas, a julgar pelo alerta lançado a Pedro Sánchez durante sessão de investidura de 15 de novembro pelo deputado do Partido Nacionalista Basco – Aitor Esteban – («Estaremos atentos! Logo veremos nos próximos 4 anos…»), e pela porta-voz parlamentar do partido independentista Eh Bildu – Mertxe Aizpurúa ao frisar que o voto a favor na investidura de Sánchez «não é um cheque em branco», e exigindo-lhe «coerência», não será de espantar que os independentistas bascos desconfiem de Pedro Sánchez e que não levem demasiado a sério o seu discurso ingénuo quando afirmou acreditar numa convivência e numa concórdia futuras com os independentistas bascos, bem como no perdão dos seus pecados passados e no seu eventual «regresso ao redil» da unidade de Espanha.
À mesma conclusão se pode chegar quanto à desconfiança manifestada pelos independentistas catalães tendo em conta, não apenas as citadas declarações de Puigdemont que prometeu reincidir na prática de um novo referendo na Catalunha, mas também as declarações da porta-voz parlamentar do Junts per Cataluyna – Miriam Nogueras – que, durante a referida sessão de investidura, acusou Pedro Sánchez de não ser «corajoso», dizendo-lhe: «Não se atreveu a abordar o problema catalão de forma direta. É tempo de deixar esconder o problema. Está disposto a fazê-lo?», questionou a deputada, exigindo a Sánchez uma clarificação sobre se apoia ou não o «pagamento da dívida da Catalunha e o direito ao referendo e a autodeterminação» desta Região Autónoma. Caso contrário, assegurou a referida deputada, o seu partido não «apoiará nenhuma iniciativa deste futuro governo».
Dito isto, adivinham-se tempos muito difíceis e conturbados para o próximo mandato de Pedro Sanchez e, o que é mais grave, para o futuro da Espanha.
Mas, enquanto o pau vai e vem folgam as costas… Por isso, para barrar um governo do PP vencedor das últimas eleições legislativas, Pedro Sánchez não hesitou em ceder às condições de um fora da Lei, por um lado, e dos partidos independentistas bascos e catalães, por outro. Por outras palavras, para o PSOE de Pedro Sánchez, foi preferível mandar às malvas a Democracia e atentar contra o Estado de Direito, do que ter de conviver com uma saudável e democrática alternância de poder.

Na sua intervenção durante a primeira sessão de investidura de 15 de novembro, o lider do PP, Alberto Feijóo acusou Sánchez de «falta de palavra, de ausência de restrições morais e de patológica ambição» e considerou que o novo presidente do governo espanhol «deixará como legado uma Espanha dividida».
Esta divisão já está a acontecer, com grandes multidões (dois milhões de pessoas em Madrid e noutras 52 cidades de Espanha, a 12 novembro) envolvidas em manifestações diárias, nas últimas duas semanas, nas ruas da capital espanhola, que acabaram com distúrbios, cargas policiais e vítimas associadas.
A verdade é que o referido pacto político firmado com Puigdemont e que contou com o apoio dos independentistas bascos e catalães apenas serviram a Pedro Sánchez para se manter no poder. Porque, bem vistas as coisas, para o atual líder do PSOE os limites constitucionais e as regras do Estado de Direito são relativos, podem ser usados à la carte, em suma, moldam-se às circunstâncias, aos tempos e às necessidades do próprio e dos seus «compagnons de route».
Pergunta: qual será o prazo de validade deste governo?
Tarde ou cedo o saberemos. Mas, a meu ver, isto acontecerá, no pior dos casos, quando Carles Puigdemont vier, como prometeu, reclamar a Pedro Sánchez a contrapartida do novo referendo independentista na Catalunha que abrirá caminho a um verdadeiro golpe de Estado contra a integridade territorial da Espanha.
Antes, porém, o «primeiro ato» desta história trágica do nosso país vizinho vai passar no imediato pela aprovação da anunciada Lei da Amnistia.
«A amnistia não melhora a convivência, destrói-a» afirmou, a dado passo, o lider da oposição Alberto Feijóo durante sessão de investidura de 15 de novembro na Câmara dos Deputados.
Depois, dirigindo-se cara a cara a Pedro Sánchez, deixou-lhe um vaticínio: «A história não o amnistiará!»
Esperamos para ver.
Bruxelas, 20 de novembro
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«Portugal e o Futuro», opinião de Aurélio Crespo
(Cronista/Opinador no Capeia Arraiana desde Julho de 2020)
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