Dizia-se que estávamos no Verão de São Martinho. O sol doirado, durante o dia, vá lá que se pudesse acreditar que lembrava o Verão. Mas as noites escuras e geladas não lhe faziam jus.

A minha tia já fizera subir, para a cozinha, a canastra das espigas de milho já desfolhadas no mês anterior, para se irem desgranando ao serão, enquanto ela ia fazendo mais um par de meias de «fioco».
Quando toavam as Trindades a anunciar o pôr do sol já a ceia fumegava ao desafio com o lume da lareira.
Pouco depois de se rezarem as Avé Marias, punha-se a mesa para o caldo escoado da noite. Entretanto, ficavam a assar umas poucas de castanhas no caldeirinho todo furado ou, então, a cozer num pucarinho de barro. Abafavam-se com uma rodilha e comiam-se à ceia, lá para o fim do serão que era bem longo.
Tirada a mesa, loiça lavada, lar bem varrido e lume atiçado com lenha grossa, que o tio trazia do curral depois de ordenhar a vaca e de lhe aconchegar a cama e a manjedoura, era o tempo do melhor convívio familiar.
Meu tio levantava e retirava os bagos do milho de cada casulo com um prego e eu ia catar os bagos mais resistentes a sair do bercinho, como eu chamava a cada alvéolo do casulo.
O pior era a hora de rezar o terço. O tio fazia-me sinal que a tia ia cabeceando e era a hora de eu adiantar os mistérios. Íamos sempre em qualquer outro da frente. Mal acabávamos de rezar a «Salvé Rainha», logo a tia despertava e dizia a sua célebre frase: «Ai mãe, que soninho tão lindo!» Eu penso que era a cadência ritmada de avé Marias que a arrolava. Depois havia contos, adivinhas, anedotas e conversas das dificuldades de cada dia. Estas já não eram para mim, pois eu, por sorte, ainda não compreendia quão triste era o patrão não ter conseguido pagar o trabalho, a tia não ter vendido as castanhas a um preço mais justo, as galinhas não andarem a pôr, o porquinho ter poucos palmos…
Neste momento era eu que começava a cabecear o meu soninho tão lindo. Quando o tio dava conta dizia que estava na hora de eu me ir deitar. Eu respondia sempre que não tinha sono e escancarava os olhos para logo, logo tornar a fechá-los.
A tia descascava-me duas ou três castanhas, enchia-me a caneca de leite quentinho e depois ia levar-me ao quarto. Eu pedia-lhes a bênção e aconchegava-me no colchão de folhelhos a cheirar a lençóis de linho corados ao sol e lavados na água cristalina da ribeira com sabão azul e branco!
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«Gentes e lugares do meu antanho», crónica de Georgina Ferro
(Cronista no Capeia Arraiana desde Novembro de 2020)
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