O meu professor da Escola Primária chamava-se Flávio Augusto Alvares de Almeida Martins. Era natural da freguesia de Pega e casado na Lageosa da Raia com uma simpática senhora que todos tratávamos por Dona Berta.


O prof. Flávio foi colocado nos Foios no ano de 1956 onde permaneceu cerca de meia dúzia de anos. Depois foi para a zona do Seixal – ou Amora – onde acabou por se reformar e onde também veio a falecer.
O casal teve dois filhos. O Rui e o Nélito. O primeiro foi afetado por uma doença ossea tendo ficado bastante diminuído fisicamente. O Nélito sei que tirou um curso e foi professor de esducação física.
O prof. Flávio era um homem culto e com métodos pedagógicos já bastante avançados para a época. Já nessa altura levava os alunos para o campo onde nos dava excelentes aulas de botânica, geologia e de outras áreas.
Recordo-me de, no campo, nos pedir para descobrirmos uma folha caduca, outra fasciculada ou raízes das mais variadas espécies. Por vezes também subíamos ao ponto mais alto da serra das mesas e daí mostrava-nos planícies, planaltos e descrevia a serra falando do supé, cimo ou cume, encosta ou ladeira.
Nessa altura havia em Foios duas salas de aula embora em edifícios distintos. Havia a escola das meninas e havia a escola dos rapazes. Distava uma da outra cerca de quinhentos metros. O edifício da escola do sexo feminino era estatal, plano centenário, e da escola do sexo masculino era numa casa grande, arrendada, e que era anexa de uma casa pertença do casal António da Pacheca e de Girarda Martins.
A sala era bastante espaçosa mas encontrava-se completamente lotada com cerca de quatro ou cinco dezenas de rapazes. Havia filhos de muitas mães como se costuma dizer. E havia rapazes de todos os estilos como sempre aconteceu e acontece.
Apesar de, nessa altura, a maioria das famílias viverem bastante mal havia meia dúzia que se destacavam. Havia sete ou oito famílias de guardas fiscais, meia dúzia daqueles agricultores mais abastados e também uma ou duas de pequenos comerciantes. Mas a grande maioria viviam do contrabando, da pastorícia e de uma triste e pobre agricultura que ia dando para matar a fome.
Recordo-me de andarmos – alguns amigos – a brincar no curral da casa do prof. Flávio e cada par de dias vermos umas caixinhas, caídas no curral, que nos deixavam intrigados. Lá as levávamos para lavar com a intenção de que nos pudessem vir a ser úteis.
O professor ao verificar que disputavamos as caixinhas resolveu levar uma para a sala de aula e ao abri-la disse-nos que estava cheia de manteiga que servia para espalhar pelo pão torrado. Ficámos todos admirados e com água na boca.
Poderemos considerar que o prof. Flávio tinha duas personalidades com comportamentos totalmente diferentes. Da parte da manhã e antes de ter provado o álcool era uma pessoa de bom trato, mas da parte da tarde, depois de já ter bebido uns bons copos – sobretudo de vinho tinto – ficava completamente avariado e a maioria dos seus procedimentos já não faziam sentido.
Quando já estava embriagado perdia o controlo e tornava-se muito agressivo para com os alunos e para com a própria família.
A esposa, Dona Berta, era uma pessoa doce e simpática mas muito mal tratada quer em palavras quer mesmo no aspeto da agressão física.
Mas aquilo que mais me marcou – a mim e a todos aqueles que o tivemos como professor – foram as muitas e violentas agressões que praticava sobre nós. Para além da tradicional régua usava também uma varas para nos aquecer as nádegas.
Eu e mais quatro alunos tivemos explicação com ele – tendo em vista a preparação do exame de admissão ao liceu – e recordo-me de um dia ter ficado muito tempo na taberna e a D. Berta nos ter pedido para estudarmos bem aquilo nos tinha marcado.
Recordo-me que nos encontrávamos no quintal da casa sentados numas cadeiras num bonito dia de sol. Eu já andava meio atrapalhado e já adivinhava que depois de me interrogar deveria pegar por algum lado para me agredir com um toro de couve como já tinha acontecido no dia anterior.
Segurava-nos pelo braço e com o toro da couve batiamos nas nádegas com bastante violência. Recordo-me de, nessa tarde, eu ter metido dois livros – algo maleáveis – entre as calças e as nádegas e ter ido mostrar a habilidade à D.ª Berta dizendo-lhe que se me bate-se assim já não me doía.
A simpática senhora – quase sempre com um ar triste – pediu-me que retira-se os livros, de imediato, porque se ele se apercebesse da minha invenção depois é que me pegaria com mais ganas.
Também me recordo de um dia nos ter deixado de castigo a cinco ou seis alunos gritando de forma assustadora que ficavamos fechados na sala e que não iriamos almoçar. Assim aconteceu.
Mas como nós também eramos meios judeus, sempre a iamos pregando, nem que fosse pela calada. Mal o professor deu as duas voltas à fechadura começamos logo a estudar a melhor maneira de podermos escapar da sala. Mas como era apenas uma hora lá decidimos ficar.
Sei que alguns – ou talvez todos – começámos a dizer que estávamos à rasquinha para fazer xixi. Mas como e donde, diziamos nós. De imediato nos metemos com uns frascos onde era guardada a tinta que, por sua vez, era metida nos tinteiros onde depois os alunos molhavamos o apáro da caneta.
Um desses grandes frascos encontráva-se vazio – e lavado – e de imediato passámos à ação. Fizemos xixi a ponto de quase termos enchido o frasco que colocámos no mesmo sítio, por detras da caixa métrica.
No dia seguinte o professor que tinha o olfato muito apurado, exclamou: «Há por aqui um cheiro esquisito. Algum de vocês deu algum pum?», perguntou ele. Ficámos todos caladinhos que nem uns ratos. Mas passados uns minutos o professor voltou à carga. Mas o que se passará por aqui que o mau cheiro não desaparece.
Levantou-se da cadeira e dando uma espreitadela depressa deu com o dito frasco. Fino e rato como ele era logo desconfiou que a tinhamos pregado. Mandou-nos sair das carteiras e pediu-nos para ficarmos todos de pé e em fila.
Já com o frasco aberto, aproximou-o do nariz do primeiro aluno e perguntou: «Ao que cheira?» O aluno respondeu: «A água, senhor professor.»
Continuou a percorrer a fila e às tantas o meu parceiro Chico da ti Bei, para ver se se safava, respondeu: «A urina, senhor professor.»
Continuou a perguntar e quase todos iamos respondendo, a água. Mas quando chegou a vez do Jacinto este respondeu: «A mim cheira-me a laranjada.»
O professor, danado que já estava, agarrou o Jacinto pelo cachaço e apertando com ele, levou-lhe o frasco, quase à boca, e disse: «Se é laranjada, então bebe.»
Claro que não o fez beber mas o rapaz ainda se viu bem apertado.
Muito mais havia para dizer mas, por hoje, fico por aqui.
:: ::
«Nascente do Côa», crónica de José Manuel Campos
(Cronista/Opinador no Capeia Arraiana desde Julho de 2007)
:: ::
Leave a Reply