3.º ANO (segunda parte) – O terceiro ano era nos Agostinhos, que fora convento com a igreja a servir de panteão dos Duques de Bragança e com os Liberais ou com a República fora transformado em quartel de cavalaria. Em Janeiro de 1951, o curso do cónego Fernando Marques foi o primeiro a frequentar o 3.º ano nos Agostinhos, cedidos ao seminário para aí instalarem os alunos do 3.º, 4.º e 5.º anos. (parte 6)
(Continuação)
3.º ANO NO SEMINÁRIO DOS AGOSTINHOS EM VILA VIÇOSA
2.ª PARTE
No dia 6 de Novembro celebrava-se o dia do Santo Condestável, padroeiro da Casa de Bragança. Mandavam rezar missa cantada pela alma dos duques de Bragança, sepultados no panteão da igreja dos Agostinhos, donde os franceses haviam roubado quinze carros de pratas. Nós assistíamos. Lembro-me do cónego José Augusto Alegria ter vindo de Évora e, sozinho no coro, ter cantado a missa. Tinha um vozeirão de tenor impressionante, para além de ser um óptimo compositor e maestro.
A propósito de músicos, o padre Ramiro delegava muitas vezes a direcção do coro na igreja a alguns ajudantes. Lembro-me do Gama, de Castelo Branco, onde após sair do seminário criou e dirigiu uma orquestra típica. Sucedeu-lhe o Fonseca, de Moimenta.
O recreio quando chovia ou estava muito calor era nos claustros. Jogava-se a pulga, dominó, damas, a glória e um jogo de deitar ao ar uma carreta grande de borracha e apanhá-la num fio esticado por dois paus, o «Yó-Yó». Recordo aqui os colegas Correia, do Couço, e o Sabino, do Ciborro, com quem jogava frequentemente, e o Silva, de junto da Covilhã, que era repetente. Um dia veio uma trovoada terrível acompanhada de trovões e raios. Um caíu perto de nós, tendo ficado todos aterrados. O Júlio Aço estava a rezar na igreja dos Agostinhos e veio de lá branco que nem cera. É que o raio caíra na cúpula da igreja, protegida por um para-raios. Mesmo assim, provocou alguns estragos.
Num dos passeios à Tapada Real o Roldão, de São Romão, repetente, apanhou um coelho, o que era proibido e trouxe-o escondido sob a casaquinha. Creio que o mandaram largar na quinta. Esse mesmo Roldão noutro passeio conseguiu apanhar um veado. Teve de o largar. Havia quem gostasse de apanhar cobras e lagartos e pô-los à bulha. Duma vez trouxeram uma cobra e um lagarto para o seminário. Ficaram enrolados num pau à bulha na quinta. Doutra vez apanharam um sapo na quinta e meteram-lhe um cigarro na boca. O bicho ia chupando, ia inchando, até que rebentou. Maldades de rapazitos.
A primeira tapada real estava cheia de mato, onde abundavam coelhos. A segunda tinha bois bravos. O toureiro Manuel dos Santos foi uma vez tourear na praça de Vila Viçosa. Foi ele próprio num automóvel buscar os touros à Tapada Real, fazendo-os correr atrás do carro e entrarem na praça. Certo dia lembraram-se de cultivar a primeira tapada, tendo-a lavrado primeiro. Antes disso caçaram os coelhos. Eram tantos que encheram uma camioneta de carga.
Eu era um bom contralto no coro e bom aluno na aula de música. Mas os ensaios tomavam-me muito tempo e os professores não me perdoavam se no dia seguinte tivesse alguma falha de trabalhos por fazer ou matéria mal sabida. Resolvi então fazer voz mais grossa e desafinar no coro. O padre Ramiro, irritado, mandou-me embora do ensaio que se realizava nas Chagas. Entrei ufano nos Agostinhos. No dia seguinte na aula de música fui chamado a cantar um trecho do solfejo. Pôs-se-me um dilema: se cantasse bem, seria certamente mandado voltar ao coro. Tinha, pois, de cantar mal com a pretensa voz mais grossa. Foi o que fiz. O padre Ramiro, vendo que eu estava a fazer de propósito, clamou: «Oito!», ao mesmo tempo que escrevia a nota na pauta. Afastou-se. O Brites, que estava a meu lado perguntou-me:
– Por que cantaste mal?
– Porque quis – respondi-lhe.
O padre Ramiro ouviu e perguntou ao Brites:
– O que é que ele disse?
O Brites, acusador, respondeu-lhe que eu dissera que tinha cantado mal de propósito. O padre Ramiro descarregou toda a sua raiva sobre mim, dando-me algumas doze bofetadas. Nunca tinha levado uma sova tão grande, nem dos meus pais. Apesar disso, não sinto muito ódio ao padre Ramiro porque ele tinha um pouco de razão, embora se tenha descontrolado. Apenas não fui visitá-lo a Abrantes, onde residia, reformado de capelão do exército, quando a LASE (Liga dos Antigos Seminaristas de Évora) resolveu homenageá-lo.
Já o mesmo não acontecia com o padre Reia. Não gostava nada de mim. Um dia, em plena sala de estudo, chamou-me e publicamente deu-me umas lambadas porque eu tinha dito mal dele. Expulsou-me da comunidade durante três dias, isto é, não podia juntar-me aos outros colegas. Tinha de comer depois deles e já não me lembro se podia frequentar as aulas. Um castigo desproporcionado à falta cometida, se é que a cometi, pois vim a apurar que tinha sido uma intriga e acuso do Brites, falso amigo.
Não foi a única cena que provocou. A sala de estudo tinha carteiras individuais presas ao chão por uma barra de ferro pintada de castanho, produto da Adico (de Adelino Dias Costa) de Avanca, tal como as camas. Era onde apoiávamos os pés. A barra estava esfolada, certamente já antes de mim, mas admito que eu tenha ajudado a esfolá-la, como todos os outros. O padre Reia viu-a, chamou-me à frente, repreendeu-me e deu-me uma lambada. Achei isso tremendamente injusto porque não era caso para me bater, tanto mais que havia outras carteiras mais esfoladas que a minha e nada disse aos seus ocupantes. Era mesmo aversão por mim.
Não menos aversão passei a ter por ele. Livrei-me dele no fim do ano ao passar para o 4.º ano, onde o prefeito era o padre Melo, de Moimenta da Beira, bom homem.
O padre Reia teve o seu castigo. Um dia, na sua terra, já depois de eu ter saído do seminário, tentava cortar um bidão com um berbequim. O bidão tinha alguns gases acumulados e, com as faúlhas saídas do corte, explodiu, matando-o. O acusa-cristos do Brites acabou por sair no fim do ano.
Por vezes aparecia por lá um ou outro missionário que, numa palestra, relatava um pouco do seu trabalho em África. Um destes mostrou-nos um pequeno filme-documentário, creio que se chamava Mata-Mata, em que nos revelou como coisas vulgares colocavam os pretos em pânico. Era o caso de o missionário ter tirado a sua dentadura postiça diante deles.
Nesta mesma sala em anfiteatro assistimos a uma sessão de teatro pelo Carnaval. Recordo o Virgolino do 4.º ano, do Cano ou de Sousel, a fazer de Dr. Fantorra. Viria a ser piloto da TAP. Algumas canções como: «Era uma vez uma velha que morava numa ilha e tinha um gato com os olhos cor de ervilha»; de versos como «O Terrível»; de «O meu primo Zé Cangalhas». Tudo para fazer rir.
No 10 de Junho desse ano fomos até Santiago Rio de Moinhos, onde assentámos arraiais junto de uma pequena lagoa formada numa pedreira de mármore. Houve quem se atirasse à água e nadasse. O Júlio Aço, já rapazola, tentou nadar. Mas começou a afundar-se e teve ainda consciência para rezar o acto de contrição. Valeu-lhe o padre Reia (creio) que o tirou da água. O Júlio Aço foi um dos que chegou a padre.
Todos os anos tirávamos uma fotografia do ano, cujo fotógrafo era um descendente da nobreza, ora arruinada, a ponto de ter vendido o título.
No fim do ano iam ficando uns tantos em casa. O Gaspar Ramos Peça, de Sousel, foi um deles. Outro foi o Correia, do Couço.
(Continua)
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«Quadrazenhos no Seminário», por Franklim Costa Braga
(Cronista/Opinador no Capeia Arraiana desde Maio de 2014)
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