No passado dia 15 de Setembro, o antigo Presidente da República Aníbal Cavaco Silva procedeu ao lançamento do seu novo livro «O Primeiro-Ministro e a Arte de Governar».

«O Primeiro-Ministro e a Arte de Governar» o livro de Aníbal Cavaco Silva, editado pela Porto Editora, está dividido em três partes: a primeira, consiste num ensaio normativo ou numa espécie de «Manual de Boas Práticas» sobre o que deve ser o comportamento de qualquer primeiro-ministro de Portugal para que o seu governo tenha sucesso; a segunda inclui um conjunto de textos do mesmo autor sobre Portugal e a União Europeia; e a terceira é uma compilação de crónicas sobre a política portuguesa que o antigo Presidente da República foi publicando ao longo dos anos da sua intervenção cívica.
A primeira parte, de cerca de 60 páginas, tem sido aquela que obviamente maior interesse despertou aos jornalistas, aos comentadores, aos agentes das diferentes forças político-partidárias. Isto, porque, muito embora não nomeando nenhuma pessoa em concreto enquanto destinatária das afirmações nela contidas, logo muita gente se apressou a apontar a quem elas serão, em primeira linha, dirigidas, por outras palavras, a António Costa, atual Primeiro-Ministro.
Não é de admirar. Neste país já vem de longe a tendência para fulanizar a política e para responsabilizar quem, em cada momento histórico, detém as rédeas do poder. Aliás, esta tendência é de algum modo compreensível, e torna-se mesmo indispensável, sempre e quando o exercício do poder político ultrapassa as baias da incompetência, da inépcia, do laxismo, das ofensas à ética ou da irresponsabilidade política.
Mas tratando-se como se trata de um ensaio normativo que preconiza as «boas práticas» a que deverá conformar-se um chefe do governo ideal, pode, em tese, afirmar-se que as considerações deste livro, (ou os seus «recados»,como em politiquez é usual dizer) poderão igualmente aplicar-se a qualquer dos chefes do governo que antecederam António Costa, assim como a qualquer dos seus futuros sucessores.
Nesta primeira parte do livro, são abordados temas ligados ao exercício das competências do primeiro-ministro, designadamente a escolha dos ministros, a avaliação e as reuniões com os ministros, as remodelações governamentais, o relacionamento do primeiro-ministro com o Presidente da República.
1 – Alguns princípios fundamentais para um bom governo
Antes de analisar estes tópicos, vale a pena chamar a atenção para um conjunto de princípios fundamentais em que, no entender de Aníbal Cavaco Silva, deverá assentar a boa governação de qualquer primeiro-ministro.
O Poder não é um fim em si mesmo
A este respeito, o antigo Presidente da República começa por afirmar que «o poder não é um fim em si mesmo», mas, bem pelo contrário, deve ser encarado como «um meio para reformar e deixar melhor o País».
Esta afirmação, a todos os títulos inatacável enquanto princípio conformador de uma boa governação em qualquer país do mundo, não podia deixar, como efetivamente não deixou, de levar muitos comentadores, analistas e agentes políticos da nossa praça a ceder à tentação de identificar o alvo visado pelo livro (apesar de Cavaco Silva não nomear nenhum pessoa concreta a quem o livro é destinado) apressando-se a concluir que a dita afirmação encaixa como uma luva na avaliação negativa que muitos fazem da governação de António Costa, acusando-o de, ao longo dos seus oito anos de primeiro-ministro, não ter feito, até ao presente, as indispensáveis reformas estruturais nem adotado quaisquer medidas substantivas susceptíveis de promover e de acelerar o desenvolvimento do país, (em particular no que respeita aos pilares fundamentais da vida em sociedade – a Saúde, o Ensino, a Habitação e os Tribunais), limitando-se o atual Governo a uma mera navegação à vista ou, como é costume dizer-se, a aplicar «pensos rápidos» ou a «tapar buracos».
Independentemente desta opinião ou de outra em sentido contrário, uma coisa é certa. No final do dia, os melhores julgadores de António Costa e do seu governo acabarão por ser os eleitores, quando, a seu tempo, forem chamados a exercer nas urnas o seu veredicto sobre a sua boa ou má performance.
O País não é o partido que governa
Por outro lado, o antigo Presidente da República faz questão de sublinhar no seu livro que «os interesses do País não devem ser confundidos com os interesses do partido que governa». «O País não é o partido.» Trata-se de um princípio de ética política incontestável que, por outro lado, releva do mais elementar bom senso político.
De tal modo assim é, que não admira que esta ideia de Cavaco Silva tenha sido aliás publicamente partilhada pelo atual Presidente do PS, Carlos César, durante o fecho da Academia Socialista em Setembro passado, onde fez questão de deixar uma mão cheia de avisos para dentro do próprio partido socialista.
O mais significativo destes avisos terá sido motivado pela tensão política resultante do estranho comportamento de António Costa durante as reuniões do último Conselho de Estado, bem como dos episódios mais recentes da conjuntura política, e terá certamente tido por objetivo aplacar uma onda de críticas socialistas ao escrutínio político mais exigente levado a efeito pelo Presidente Marcelo Rebelo de Sousa nos últimos meses.
Disse Carlos César: «O PS sabe que tem, com muita paciência, muita paciência, continuar a procurar e a proteger a estabilidade, inclusive no plano institucional e, designadamente, nas relações com os outros órgãos de soberania.»
Por outro lado, o Presidente do PS fez questão de avisar que «não se governa sozinho em parte alguma» e que «é preciso ter consciência disso e ter a humildade suficiente para isso».
Carlos César afirmou ainda que a maioria socialista deve «continuar a procurar outros contributos, dentro e fora do país, de outros setores de opinião, de outros partidos, dos parceiros sociais que importa mobilizar mais ativamente» e aconselhou o PS a aproveitar «os contributos que achar úteis para a governação do país, venham eles de que partidos e entidades vierem. Provaremos assim, para além da maioria parlamentar, a nossa maioridade política».
Depois, passando pelas várias áreas de governação onde ainda deteta carências, em particular das áreas da saúde e da habitação, Carlos César disse claramente que o PS «tem de fazer mais e mais depressa, mobilizando também a contribuição decisiva do setor privado».
O Presidente do PS foi ainda mais longe ao admitir que «o partido deve entender que lhe cabe sempre aproveitar os contributos que achar úteis e melhores», apontando, inclusive, a uma maior abertura face ao que vier também dos social-democratas.
E concluiu: «O PS não é o dono do País, nem o único a ter as melhores ideias ou a ter sempre as boas ideias.»
Cumprir as promessas feitas
Outro princípio essencial de uma boa governação enunciado no livro de Aníbal Cavaco Silva é o que se refere à necessidade de qualquer chefe do governo cumprir as promessas feitas ao eleitorado: «Um primeiro-ministro que falta às promessas, que engana os eleitores e cria falsas ilusões é um mau primeiro-ministro», afirma o ex-Presidente da República. E que «a mentira corroi a autoridade de quem chefia o governo».
Dito de outro modo, não basta prometer que «palavra dada é palavra honrada». É preciso mais. É preciso honrar a palavra dada.
Reconhecer os próprios erros
«Atirar as culpas para o governo anterior é desculpa de mau pagador» observa, por outro lado, o antigo Presidente da República. «E é um indicador seguro de incompetência.»
Aliás, neste livro, Cavaco Silva, para espanto dos seus adversários políticos, faz questão de proceder a uma autocrítica relativamente a vários erros cometidos pelos seus próprios governos de maioria absoluta.
Mais. Já depois da apresentação do livro, declarou em entrevista ao semanário «Sol» o seguinte: «Com certeza que cometi erros, porque fui aprendendo. Eu não fiz tudo perfeito.» E acrescentou: «Um primeiro-ministro que tente sempre ganhar as eleições, muitas vezes pode falhar o objetivo de uma boa governação. Pelo contrário, o foco de um primeiro-ministro deve ser conseguir para o país progresso económico, social, cultural, ambiental, numa perspetiva de médio e longo prazo, tendo em conta as gerações futuras. E deve ter a habilidade política necessária para explicar aos portugueses a necessidade de fazer reformas estruturais mais difíceis.»
Dito isto, decorridos que são cerca de oito anos sobre o início das suas funções de primeiro-ministro, muitos perguntarão: podem António Costa e o seu governo continuar a afirmar de boa-fé, perante os portugueses, que, quando as coisas correm mal, a culpa continua a ser do Passos Coelho?
2 – Exercício das competências de Primeiro-Ministro
Passemos, de seguida, a alguns tópicos referidos no livro mais diretamente ligados ao exercício corrente das competências de qualquer primeiro-ministro.
Avaliação dos ministros
O conselho número um para um governo de sucesso, escreve Cavaco Silva, é avaliar o trabalho de cada um dos ministros. «É uma das tarefas mais complexas e delicadas de qualquer primeiro-ministro», sublinha.
O antigo Presidente da República considera que «este é um exercício que um primeiro-ministro responsável não pode falhar. E só assim conseguirá garantir a eficácia do seu Governo e decidir sobre os ministros que devem ser substituídos».
Segundo Aníbal Cavaco Silva, cumpre a qualquer primeiro-ministro responder a três perguntas para fazer esta avaliação:
«1 – O ministro cumpriu o programa do Governo?
2 – Realizou os objetivos definidos para o seu ministério?
3 – Respeitou o princípio da solidariedade governamental?
Se a resposta for afirmativa a estas três perguntas, é dada nota positiva ao governante, e é um indicador de continuidade.»
O segundo conselho em matéria de avaliação ministerial é o seguinte: «Não se avalia um ministro pela popularidade nas sondagens.» O antigo Presidente da República explica que «para cumprir o programa do Governo, os ministros podem ter de implementar medidas impopulares, que vão provocar contestação, mas que visam preparar um futuro melhor para o País».
Na verdade, «as sondagens devem ser para o Primeiro-Ministro apenas um entre vários indicadores da ação governativa. Se viver delas e para elas, presta certamente um mau serviço ao país», acrescenta Cavaco Silva.
Conselho número três: «O primeiro-ministro não deve ter como critério de avaliação as críticas infundadas da oposição.» Até porque justifica o autor, «os ministros, em princípio, executam a política do governo, definida para os respetivos ministérios».
Reuniões com os ministros
Nos casos em que o ataque da oposição se torne «intenso e persistente», Cavaco Silva recomenda que o primeiro-ministro agende uma reunião e trate o assunto «numa reunião de trabalho privada para esclarecer se o que está em causa é, ou não, o cumprimento do programa do Governo».
Por outro lado, o antigo Presidente da República acrescenta que «as críticas ao trabalho de um ministro devem ser sempre feitas a dois e em privado».
Na verdade, diz Cavaco Silva «o desempenho de cada ministro é mais positivo se sentir que o primeiro-ministro é justo na avaliação do seu trabalho e que o trata com respeito».
Remodelações governamentais
«A relação entre o chefe do governo e os seus ministros é, em primeiro lugar, uma relação de confiança política que, em caso de rutura insanável, deve dar lugar a demissão», alerta ainda Cavaco Silva.
E acrescenta: «Há situações extremas em que o primeiro-ministro não pode deixar de propor a demissão de um ministro. E são elas: casos de falta de lealdade; comportamentos que revelem falta de sentido de Estado; linguagem insultuosa, indícios de corrupção, prevaricação ou outras violações graves da ética política.»
Na sua referida entrevista ao semanário «Sol», Aníbal Cavaco Silva fez questão de acentuar ainda o seguinte: «A falta de bom senso, as atitudes mentirosas e a linguagem que reflete falta de boa educação são linhas vermelhas» que não podem ser ultrapassadas e, nestes casos, um primeiro-ministro «tem a obrigação de propor ao Presidente da República a exoneração de um ministro».
E o ex-Presidente da República conclui no seu livro: «Se mesmo assim, o Chefe do Governo decidir manter o ministro em funções a credibilidade e a autoridade política e moral do primeiro-ministro ficam duramente feridas e a coesão do Governo e a qualidade da sua ação serão postas em causa.»
Alguns analistas políticos não resistem à tentação de ver nestas afirmações uma referência velada à falta de lealdade do ex-Ministro das Infraestruturas Pedro Nuno Santos para com o Primeiro-Ministro, quando, à revelia e na ausência deste, lançou e anunciou publicamente ao país a sua solução para o novo aeroporto de Lisboa, situação que o levou, entretanto, a ter de apresentar a sua demissão do governo.
O mesmo sucedeu, aliás, com a falta de sentido de Estado e com a série de trapalhadas do ministro que o substituiu na referida pasta – João Galamba – que deu origem a todo aquele braço de ferro com Marcelo Rebelo de Sousa que publicamente defendeu, embora sem êxito, a sua demissão, uma vez que António Costa o segurou, até à data, no governo contra todas as indicações do Presidente da República.
Relacionamento do Primeiro-Ministro-com o Presidente
Nesta matéria, Aníbal Cavaco Silva é de opinião que, acima de tudo, os titulares destes dois órgãos de soberania «não devem alimentar a conflitualidade entre eles».
A este respeito, entendem curiosamente alguns analistas políticos que o antigo Presidente da República deixa neste livro mais «recados» a Marcelo Rebelo de Sousa do que a António Costa.
Escreve Cavaco Silva: «O Presidente da República deve adotar uma conduta marcada pela isenção e independência relativamente às forças partidárias, não deve interferir no debate político e não deve atuar como uma força de contra-poder.» Por outro lado «não faz parte das funções presidenciais demitir um ministro» uma vez que essa função «é da exclusiva competência do primeiro-ministro».
Por seu turno, «o Primeiro-Ministro não deve criticar publicamente o Presidente da República, mesmo quando discorda das suas posições políticas».
Concluindo, através deste livro Aníbal, Cavaco Silva volta, uma vez mais, a manter vivo o seu legítimo direito de intervenção cívica.
Personalidade polémica que continua a unir a direita e também a esquerda mas contra ele, o antigo Primeiro-Ministro e Presidente da República vem com este livro dar um contributo útil para a reflexão política do atual e dos futuros chefes do governo, num momento em que a classe política dirigente deste país parece enredada numa situação de progressiva inércia e deliquiscência (vide os casos extremamente graves do mau funcionamento dos principais pilares do regime democrático, i.e., do Serviço Nacional de Saúde, do Ensino, da Habitação, dos Tribunais) e se arrisca a desbaratar, cada vez mais, o que ainda resta da esperança dos portugueses em melhores dias.
De facto, este livro não pode ficar preso à «questão pobre» da fulanização da política, i.e. de saber de quem no livro se está a falar em concreto, ou num mero jogo de «pingue-pongue» entre lados opostos da barricada partidária ou barricada ideológica, mas, pelo contrário, deve ser encarado como um instrumento útil de debate inteligente, para a classe política e para os cidadãos em geral.
Efetivamente, se lermos este livro de boa-fé, encontraremos nele muita coisa que resulta da capacidade de observação e da longa experiência política de alguém que, tendo exercido os mais altos cargos políticos com reconhecida competência, com sentido institucional e com sentido de estado, dispõe de autoridade bastante para falar com conhecimento de causa sobre os assuntos da governação e para apontar caminhos que, de algum modo, podem contribuir para aperfeiçoar a arte de governar o país.
Porque, bem vistas as coisas, o que, acima de tudo, mais interessa aos portugueses é serem bem governados.
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«Portugal e o Futuro», opinião de Aurélio Crespo
(Cronista/Opinador no Capeia Arraiana desde Julho de 2020)
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