No discurso do Estado da União que proferiu no Parlamento Europeu no passado dia 13 de setembro, Ursula von der Leyen procedeu à apresentação do programa que a Comissão Europeia defende para o futuro da União Europeia.
Ursula von der Leyen iniciou o seu discurso do Estado da União com uma referência às eleições europeias, que vão ter lugar de 6 a 9 de junho do próximo ano.
E a referência não terá sido inocente. Passando a elencar os temas que considera mais relevantes: Green Deal e Alterações climáticas; Relações União Europeia-China; Política de Migrações e Asilo; Guerra na Ucrânia; Alargamento e União Geopolítica. A Presidente da Comissão Europeia, que termina o seu mandato em 2024, orientou a sua intervenção para falar, não tanto sobre o passado, mas sobretudo para projetar o futuro da União.
Green Deal – Pacto Ecológico Europeu
O primeiro grande tema em que Von der Leyen se focou foi o Pacto Ecológico Europeu (Green Deal) que a Comissão quer aplicar na Europa. Nesta fase inicial do seu discurso, a Presidente da Comissão Europeia tentou falar para os cidadãos e explicar-lhes a necessidade de avançar com esta proposta com base em acontecimentos recentes que os europeus viveram: incêndios, cheias e temperaturas elevadas neste verão que passou. No fundo, numa lógica de quem percebe que as alterações climáticas deixaram de ser uma realidade abstrata e passaram a ter consequências diretas no dia-a-dia da Europa e do planeta, razão pela qual, acredita Ursula Von der Leyen, é preciso reagir com este Green Deal:
«Há quatro anos, o Green Deal europeu foi a nossa resposta ao chamamento da História. E este verão – o mais quente na Europa desde que há registos – foi um alerta gritante disso. A Grécia e a Espanha foram atingidas por fogos selvagens e foram atingidas novamente, poucas semanas depois, por cheias devastadoras. E vimos o caos e a carnificina das temperaturas extremas, da Eslovénia até à Bulgária, que atravessaram a nossa União. Esta é a realidade de um planeta que está a ferver.
O Green Deal europeu nasceu desta necessidade de proteger o nosso planeta. Mas também foi projetado como uma oportunidade para preservar a nossa prosperidade futura.»
No quadro deste Projeto Ecológico Europeu, a Presidente da Comissão decidiu insistir sobre a «Lei sobre a Restauração da Natureza», que foi aprovada por margem mínima no Parlamento Europeu em 12 de Julho passado, e que «visa restaurar os ecossistemas para combater as alterações climáticas e a perda de biodiversidade e reduzir os riscos para a segurança alimentar». A este respeito, Ursula Von der Leyen reconheceu que esta lei deve ser articulada com as necessidades dos agricultores, a quem deixou uma «nota de apreço», e com «menos polarização»:
«A perda da natureza destrói não só os alicerces da nossa vida, mas também a nossa perceção do que significa casa. Temos de a proteger. Ao mesmo tempo, a segurança alimentar, em harmonia com a natureza, continua a ser uma tarefa essencial.
Gostaria de aproveitar esta oportunidade para expressar o meu apreço pelos nossos agricultores, para lhes agradecer fornecerem-nos comida dia após dia. Para nós, na Europa, a tarefa da agricultura, de produzir comida saudável, é o alicerce da nossa política agrícola. E a auto-suficiência alimentar também é importante para nós. É isso que os nossos agricultores nos garantem.(…) Mas precisamos de mais diálogo e menos polarização. É por isso que queremos lançar um diálogo estratégico sobre o futuro da agricultura na UE. Continuo convencida de que a agricultura e a proteção do mundo natural podem andar de mãos dadas. Precisamos de ambas.»
Relações União Europeia-China
Em dezembro de 2020, a União Europeia assinou um grande acordo de investimento com a China, que contou com o alto patrocínio da então chanceler alemã, Angela Merkel.
Agora, menos de três anos depois, a antiga colega de Merkel no Governo alemão – Ursula von der Leyen – defende uma postura diferente para a relação da UE com a China. Não de corte total, com a Presidente da Comissão a sublinhar que «é necessário manter linhas de comunicação e de diálogo abertas com a China», mas abrindo uma ofensiva numa área específica: a concorrência.
De facto, a guerra na Ucrânia veio alterar por completo o panorama geopolítico internacional e a Europa, aparentemente, já não está preocupada com a possibilidade de melindrar Pequim. Tanto que a Comissão Europeia vai abrir diretamente uma investigação a uma possível concorrência desleal ou dumping (exportação de produtos chineses a um preço inferior ao praticado no seu mercado interno) no setor dos carros elétricos, graças a enormes subsídios do Estado chinês. A este propósito, importa recordar que a China é o principal mercado do qual a UE importa bens e que cerca de 20% são produzidos neste país:
«Não esquecemos como as práticas comerciais desleais da China afetaram a nossa indústria solar. Muitas empresas jovens foram afastadas por concorrentes chineses que são fortemente subsidiados. Empresas pioneiras tiveram de declarar falência, talentos promissores saíram em busca de fortuna no estrangeiro. É por isto que a justiça na economia global é algo tão importante porque afeta vidas e sustentos. Indústrias e comunidades inteiras dependem disto. Por isso, temos de ter os olhos bem abertos para os riscos que enfrentamos.
Vejam o setor dos veículos elétricos. É uma indústria crucial para uma economia limpa, com grande potencial para a Europa. Mas os mercados globais estão agora inundados de carros elétricos chineses mais baratos. E o preço deles é mantido artificialmente baixo graças a enormes subsídios estatais. Isto está a distorcer o nosso mercado. E como não aceitamos isto cá dentro, também não aceitamos isto lá fora. Por isso, posso anunciar hoje que a Comissão vai lançar uma investigação aos subsídios aos carros elétricos vindos da China. A Europa está aberta à concorrência, mas não a uma corrida para o fundo. Temos de nos defender contra práticas desleais. Mas, ao mesmo tempo, é vital manter abertas linhas de comunicação e de diálogo com a China. Porque também há tópicos onde conseguimos e temos de conseguir cooperar. Eliminar o risco, não afastarmo-nos. Esta será a minha atitude com a liderança chinesa na Cimeira UE-China no final do ano.»
Política de Migrações e Asilo
Sobre a política relativa às migrações e asilo de refugiados – um dos pontos que mais tem tensão tem provocado entre diferentes Estados-Membros da União nos últimos anos, pela enorme pressão que a chegada de migrantes de África ao continente europeu está a gerar –, Ursula von der Leyen defendeu o «Novo Pacto para as Migrações e Asilo» recentemente discutido no Conselho Europeu. O documento prevê, entre outras, medidas como a redistribuição de requerentes de asilo por vários países europeus, através do chamado Mecanismo de Solidariedade:
«A cada dia vemos que conflitos, alterações climáticas e instabilidade estão a levar as pessoas a procurarem abrigo noutros lugares. Sempre tive a convicção firme de que as migrações devem ser geridas. É preciso resistência e um trabalho paciente com aliados-chave. E é preciso unidade dentro da nossa União. Este é o espírito do Novo Pacto para as Migrações e Asilo.
(…) E traduzimos o espírito do Pacto para soluções práticas. Fomos rápidos e unidos na resposta ao ataque híbrido que a Bielorrússia lançou contra nós. Trabalhámos de perto com os nossos parceiros dos Balcãs Ocidentais e reduzimos os fluxos irregulares. Assinámos uma parceria com a Tunísia que traz benefícios mútuos para lá das migrações, da energia e educação até ferramentas e segurança. E agora queremos trabalhar em acordos semelhantes com outros países.
(…) Sabemos que as migrações exigem trabalho constante. E isso é mais vital do que nunca na nossa luta contra os traficantes de pessoas. Eles atraem pessoas desesperadas com as suas mentiras e colocam-nas em rotas letais pelo deserto ou em barcos que não estão prontos para ir para o mar. A forma como estes traficantes operam está sempre a evoluir. Mas a nossa legislação tem mais de vinte anos e precisa de uma atualização urgente. Por isso, precisamos de nova legislação e uma nova estrutura de governação.
Precisamos de uma atuação policial e judicial mais fortes e de um papel mais proeminente para as nossas agências, a Europol, Eurojust e Frontex. E precisamos de trabalhar com os nossos parceiros para dirimir esta praga do tráfico humano. É por isso que a Comissão vai organizar uma Conferência Internacional sobre o combate ao tráfico de pessoas. É altura de pôr um fim a este negócio insensível e criminoso.»
Apoio à Ucrânia
Mais do que atacar diretamente Vladimir Putin pela guerra na Ucrânia, Von der Leyen decidiu focar parte deste discurso no apoio europeu à Ucrânia. E apresentou medidas concretas de apoio, como a extensão da proteção temporária para os refugiados ucranianos na UE ou o aumento dos fundos para a reconstrução deste país. Já quanto à questão do fornecimento do armamento, medida que de forma insistente tem sido pedida por Kiev, a Presidente da Comissão Europeia tem menos para oferecer, já que as políticas de defesa continuam a ser da competência de cada Estado-membro. Por isso, Von der Leyen destacou que a UE fez o que, neste domínio, lhe é possível, através da proposta ASAP (Lei de Apoio à Produção de Munições) destinada a «fomentar a indústria da União Europeia ao nível da produção de munições» e a «financiar o reforço da sua base industrial de defesa para apoiar a Ucrânia e a segurança da Europa».
«Iremos estar ao lado da Ucrânia em cada passo. Durante o tempo que for preciso. Desde o início da guerra, quatro milhões de ucranianos encontraram refúgio na nossa União. E quero dizer-lhes que são tão bem-vindos hoje como eram naquelas fatídicas primeiras semanas. Garantimos que eles tinham acesso à habitação, à saúde, ao mercado laboral e a muito mais.
Ilustres membros, isto foi a Europa a responder ao chamamento da História. E, por isso, tenho orgulho em anunciar que a Comissão vai propor a extensão da nossa proteção temporária aos ucranianos na UE.
O nosso apoio à Ucrânia vai continuar. Já demos mais de 12 mil milhões de euros só este ano para ajudar a pagar salários e pensões. Para manter em funcionamento hospitais, escolas e outros serviços. E, através da nossa proposta ASAP [Lei de Apoio à Produção de Munições], estamos a aumentar a produção de munições para ajudar a responder às necessidades da Ucrânia. Mas também estamos a olhar para a frente. É por isso que propusemos mais 50 mil milhões de euros ao longo de quatro anos, para investimento e reformas. Isto ajudará a construir o futuro da Ucrânia e a reconstruir um país moderno e próspero.
E esse futuro é fácil de ver, esta câmara disse-o bem alto: o futuro da Ucrânia é na nossa União.»
Esta foi a verdadeira mensagem que a Presidente da Comissão Europeia trazia para Kiev: a de que, consigo, a adesão da Ucrânia à União irá acontecer. Ainda assim, Ursula Von der Leyen fez questão de acalmar os receios dos que temem uma adesão apressada da Ucrânia – como é o caso o primeiro-ministro português, António Costa –, sublinhando que esta continuará a ser «baseada no mérito» e sem prejuizo das indispensáveis reformas que têm de ser conduzidas por este país candidato à adesão europeia.
Alargamento e União Geopolítica
Mas Von der Leyen sublinhou que, para além da Ucrânia, os países dos Balcãs Ocidentais e a Moldávia também devem entrar na UE no futuro e que para a Geórgia, se mantém igualmente essa possibilidade. A adesão da Moldávia, país fortemente influenciado pela Rússia, parece ter ganho um caráter mais urgente desde o início da guerra da Ucrânia para a presidente da Comissão Europeia. Isto porque, diz Von der Leyen, a UE deve ser agora uma «união geopolítica»:
«O futuro dos Balcãs Ocidentais é na nossa União. O futuro da Moldávia é na nossa União. E sei bem o quão importante é a perspetiva da UE para tanta gente na Geórgia.
(…) Isto é do nosso interesse comum. Pensem no grande alargamento de há 20 anos. Chamámos-lhe “Dia Europeu de Boas-Vindas” e foi um triunfo da determinação e da esperança sobre os fardos do passado.
Nos 20 anos seguintes, assistimos a uma história de sucesso económico que melhorou a vida de milhões. Quero que olhemos para o próximo “Dia Europeu de Boas-Vindas” e para as próximas histórias de sucesso económico.»
Para facilitar este processo de alargamento, Ursula Von der Leyen anunciou que a Comissão vai disponibilizar aos países-candidatos à adesão o acesso aos relatórios conduzidos sobre as violações do Estado de Direito por alguns países:
«Sabemos que este não é um caminho fácil. A adesão é baseada no mérito e a Comissão vai sempre defender este princípio. Exige trabalho árduo e liderança. Mas já há muito progresso. Vimos os grandes passos que a Ucrânia já fez desde que lhe atribuímos estatuto de candidata. E vemos a determinação dos outros candidatos para conduzirem reformas.
(…) Provámos que conseguimos ser uma União geopolítica e mostrámos que conseguimos avançar depressa quando nos unimos. E acredito que a Equipa Europa também funciona com mais de 30 países.»
Para terminar, a Presidente da Comissão Europeia quis sublinhar a urgência do momento atual, procurando galvanizar os eleitores, a menos de um ano das próximas eleições europeias de 2024 que ditarão o futuro da União…
«É aqui que a Europa está hoje, num tempo e num lugar em que se escreve História. O futuro do nosso continente depende das escolhas que fazemos hoje. Dos passos que damos para completar a nossa União.
(…) Uma vez mais: este é o momento de a Europa responder ao chamamento da História. Longa vida à Europa.»
Em suma, um bom discurso de Ursula Von der Leyen, cujo excelente desempenho à frente da Comissão Europeia continua a ser elogiado pela maioria dos observadores e que tem contado com o apoio dos principais partidos políticos europeus.
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«Portugal e o Futuro», opinião de Aurélio Crespo
(Cronista/Opinador no Capeia Arraiana desde Julho de 2020)
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