2.º ANO – No Outono de 1954 entrei em regime de internato no Seminário das Chagas em Vila Viçosa, dirigido por padres, acompanhado do meu enxoval metido numa arca de madeira forrada a lata. (parte 4)
(Continuação)
2.º ANO NO SEMINÁRIO DAS CHAGAS EM VILA VIÇOSA
Chegados de novo ao seminário, os primeiros momentos eram a alegria de ver de novo os amigos e colegas e compartilhar com eles as nossas férias. Mas, por pouco tempo, porque entrávamos em retiro durante um ou dois dias para purificar as almas dos desvios das férias, com orações, leituras de livros de santos e algumas palestras. Creio que o arcebispo já era D. Manuel Trindade Salgueiro, de Ílhavo.
No 2.º ano levantávamo-nos meia hora mais cedo, às seis horas da manhã. Tivemos como prefeito o padre Patacas, um santo homem de São Miguel de Acha. Era também nosso professor de Latim. Um dia desafiámo-lo a deixar fazer um ponto de Latim com consulta de dicionário e gramática e veria como as más notas acabariam. Aceitou o desafio. O ponto tinha apenas umas cinco perguntas. O problema é que estavam em Latim. A maioria não conseguiu traduzi-las para poder responder. Foi pior a emenda que o soneto. Quase toda a turma teve negativa, à excepção de dois ou três, em que me incluía, com um dezoito.
De Francês era o padre Mário, pároco do santuário de Nossa Senhora da Conceição. Das outras disciplinas continuavam os mesmos professores. De Música o padre Ramiro, de Português o padre Lourenço e de Matemática o padre Barroco.
A missa já era na igreja, que tinha a porta principal para a rua e umas escadinhas que levavam do claustro à sacristia com porta para a igreja. A camarata ficava no primeiro andar, por cima do refeitório, já mais pequena porque os alunos iam diminuíndo. A sala de estudo era também no primeiro andar. Nesse mesmo andar ficavam as salas de aula do 2.º ano, a papelaria onde o padre Barroco nos vendia canetas, lápis, cadernos, borrachas e demais objectos necessários. Lembro-me de uma vez o Vasconcelos, de Cinfães, ter pedido ao padre Barroco umas atacas e uma safa. O padre Barroco desatou a gozá-lo.
– Então, o que é que tu queres? Que é isso de atacas? Safa digo eu para te aturar!
O que o Vasconcelos queria era um par de atacadores e uma borracha. Pobre Vasconcelos, que não adaptou a linguagem do Norte à do Sul. Depois teve de adaptar o Português à variante brasileira, pois acabou ordenado padre no Brasil, onde viviam os pais, tendo chegado a bispo do Rio de Janeiro.
Nesse primeiro andar presenciei um episódio desagradável. Num recreio ou intervalo das compras na papelaria o Duque pegou numa vassoura que por ali estava e atirou-a ao Boaventura, que tinha reprovado no 2.º ano. Com tanto azar o fez que o cabo da vassoura foi direito ao olho do Boaventura, de Avanca, partindo-lhe os óculos de lentes bastante graduadas. Foi levado ao hospital. Felizmente nenhum vidro se havia espetado no olho.
As deslocações de ou para a camarata, sala de estudo, capela ou refeitório eram sempre em formatura. O banho semanal para todos os anos era cronometrado. Três a cinco minutos para cada um. Não dava tempo para floreados.
No Verão fazia muito calor no Alentejo. Eu fartava-me de correr no recreio e suava imenso. Cheguei um dia alagado em suor à sala de estudo. Tirei a casaquinha para refrescar. Como a sala era fresca, apanhei uma pleuresia. No dia seguinte tinha febre. Veio o médico ver-me e mandou-me para o hospital da Santa Casa da Misericórdia da vila. Aí fiquei vinte dias. Além de medicação, punham-me uma espécie de cântaro com uma lâmpada vermelha, provavelmente de ultravioletas ou infra-vermelhos, para secar o líquido da pleuresia e espetavam-me uma agulha grossa entre as costelas também para sugar o líquido. Talvez porque ainda era muito jovem ou porque me dei bem com a medicação, tive alta ao fim de vinte dias. Ao sair, ouvi comentários de um rapaz de Bencatel:
– Então eu já aqui estou há mais de um mês e este já vai embora?
Tive algumas visitas do padre Patacas, que eu tinha escolhido para meu padrinho do Crisma, que ele aceitou mesmo contrariando a norma de que os padres não poderiam ser padrinhos dos alunos, e o Jacinto que era meu especial amigo, para além de meu irmão que frequentava o 3.º ano noutra casa, os Agostinhos, e talvez de meu primo.
Como eu era bom aluno e isto se passou já no 3.º período, recuperei a matéria e passei de ano sem dificuldade.
Continuámos a ter dois dias de passeio para os mesmos lugares do 1.º ano e uma vez ou outra para o bosque de Borba, seguindo pela estrada de paralelepípedos, ladeada de giestas de flor branca.
No dia 10 de Junho, como noutros feriados, costumávamos dar um passeio grande. Nesse ano atravessámos a Primeira e a Segunda Tapada Real e fomos até uma lagoa entre Borba e Vila Boím. A ordem era não poder tomar banho. A lagoa deixava sair água por uma ponta, caíndo numa cascadita para formar um riacho. Arranjámos umas canas que entrançámos e com elas tapámos a saída da lagoa. Apanhámos muitos pequenos peixes, sobretudo carpas. A carrinha do seminário foi lá levar-nos o almoço e regressou com os tachos cheios de peixes, que deram para outra refeição, com o aplauso do ecónomo padre Barroco que assim viu a tesouraria um pouco aliviada. Vimos imensas carpas grandes que saltavam na lagoa. Mas a essas não chegámos.
Como fazia calor, houve a tentação de tomar banho. Dado que estava proibido, alguém disse que havia obtido permissão do padre Patacas. E aí vai o Jaime, o Velez, o Tavares e sei lá quem mais para dentro de água. Quando chegámos à sala de estudo, o padre Patacas, que não gostava nada de mentiras, chamou o Jaime e perguntou-lhe:
– A quem pediste autorização para tomar banho?
Não soube responder. O mesmo aconteceu com os outros nadadores. Apurou-se que fora o Jaime, já grandote, quem lançara o boato de que tinha sido dada autorização. Levou ali umas fortes lambadas do Padre Patacas. Creio que acabou por ser expulso no fim do ano, isto é, não regressou de férias.
Nessa mesma sala de estudo presenciei outro episódio que recordo. O Basílio, estava numa carteira de dois encostada à parede do claustro, mesmo ao lado duma tomada eléctrica. Deu-lhe o diabo a idéia de experimentar meter o bico do compasso na tomada para ver o que acontecia. Aconteceu que se ouviu um grande estalo e os fios exteriores ainda forrados a tecido começaram a arder, estoirando com as lâmpadas todas. Estão a imaginar a cena e o sermão que se seguiu mais uns estalos e o pobre do padre Barroco a ver o cofre a ser esvaziado para repor tudo de novo?!
Era ainda o padre Barroco que geria a grande máquina policopiadora de impressão das provas de exame, que jazia num cubículo no rés-do-chão mesmo ao lado do portal de acesso ao recreio.
Chegou o fim do ano, após as provas finais, tendo dito adeus às Chagas, pois passaria para os Agostinhos no 3.º ano.
(Continua)
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«Quadrazenhos no Seminário», por Franklim Costa Braga
(Cronista/Opinador no Capeia Arraiana desde Maio de 2014)
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