1.º ANO – No Outono de 1954 entrei em regime de internato no Seminário das Chagas em Vila Viçosa, dirigido por padres, acompanhado do meu enxoval metido numa arca de madeira forrada a lata. (parte 2)
(Continuação)
1.º ANO NO SEMINÁRIO DAS CHAGAS EM VILA VIÇOSA
Na minha entrada no internato o meu enxoval incluía cobertores, lençóis, uma escova de roupa, outra de sapatos, uma tesoura, agulha e linhas, roupa interior, um fato, calças, casaquinhas, camisas, meias, sapatos, um saco para a roupa suja, etc. Todas as peças tinham um número, que estava bordado em todas as peças de roupa. O meu número era o 404. Não havia mais ninguém a dar ordens para além dos padres. Era um seminário em Vila Viçosa. Só o barbeiro, os serviçais da quinta, o cozinheiro ou o Cadete, que fazia as limpezas, para além de ajudar na cozinha, eram seculares que vinham prestar serviços ao seminário sem lá dormirem. Apenas o Sr. Venâncio, o porteiro, de Aldeia do Bispo, dormia ao lado da portaria.
Comigo entraram mais sessenta e três no primeiro ano no antigo convento das Chagas, do século XVI, ao lado do Paço Ducal, pertença da Casa de Bragança, que o cedera para instalar o seminário.
Vinham da zona da Covilhã (Belarmino, Zé Banana e Baptista), da zona de Moimenta (Vasconcelos e Gomes), de Proença-a-Nova (o Jacinto, o Daniel, o Bairrada e o Tavares), da zona da Murtosa (Cascais, Alcino e Casal), de Vila Verde (o Silva), do Sardoal (o Duque) e uma boa parte do concelho do Sabugal e do Alentejo.
Havia colegas do Soito (Nicolau), de Aldeia do Bispo (Sanches Alves, Capote, Cícero, Esteves), da Lajeosa (o Pombo), de Aldeia Velha (o Vinhas), dos Forcalhos (o Brites). Outros vinham de várias partes do Alentejo. De Sousel (o Parrula), do Cano (o Ramos Peça), de Pavia (o Pinheiro), do Couço (o Correia), do Ciborro (o Sabino), de Santa Susana (o Pragana), de Évora (o Jaime, o Madeira Campino e o Júlio Aço), de Barbacena (o Baltazar), de Estremoz (o Rosado) e de outros lugares (o Palmeiro, o Geraldes e o Fonte Santa). O Firmino era filho do Reitor do Liceu de Bissau. Noutros anos havia gente dos Fóios, Vale de Espinho, Alfaiates, Aldeia da Ponte, Batocas e Bismula; do Baraçal e Vila Fernando, do concelho da Guarda, Nave de Haver e Vale de la Mula, ambas do concelho de Almeida, e Cótimos do concelho de Trancoso.
Eu, tal como os outros quadrazenhos, distinguíamo-nos dos colegas do concelho do Sabugal pelas calças que vestíamos. As nossas eram portuguesas, enquanto as deles eram de pana espanhola, preta ou castanha.
– Qual o teu nome e quantos anos tens?
– Franklim. Tenho 11 anos.
– Cadete, leva lá este rapazinho até à camarata. Ajuda-o a levar as malas, que vêm pesadas. Depois leva-o até à sala de estudo.
– Dá-me licença, sr. padre?
– Entra. Como te chamas?
– Franklim Braga
– Ah! És de Quadrazais. És irmão do António Braga ou do Joaquim Braga?
– Do António. O Quim é meu primo.
– Senta-te ali. Já vais conhecer os teus colegas e outros que ainda não chegaram.
E foi assim que o prefeito padre Lourenço, de Aldeia da Ponte, me recebeu.
Um a um foram chegando os restantes colegas, até perfazermos 64. Eram todos de idade normal de escolaridade, à excepção de uns tantos já em idade de ir à tropa, o que muitos deles não desejavam, e por isso entraram para o seminário, que os isentava desse serviço. Era o caso do Casal, da Quinta do Gato, junto de Aveiro, do Silva, de Vila Verde, do Duque, do Sardoal, do Júlio Aço, de Évora, e do Fonte Santa, dos lados de Mourão, que fora ceifeiro na sua terra alentejana. Havia ainda uns tantos já com dois ou três anos de diferença da maioria.
Nessa altura havia muitos candidatos a entrar nos seminários, não só pela maior religiosidade dos nossos pais e avós, mas ainda porque, como já referi, apareciam nas aldeias padres de vários seminários a recrutar candidatos, o que dava esperança a muitos de poderem estudar em condições muito mais baratas.
O Casal era forte, capaz de arrastar consigo a corda formada pelos adversários de mãos dadas, ou parti-la no jogo da bandeira. O Capote, de Aldeia do Bispo, ágil como era, saltava por cima da corda. No 2.º ano andava o Lotário, que havia já sido guarda-redes do Juventude de Évora, que nos fazia andar com a cabeça à roda para lhe podermos tirar a bola.
Era então arcebispo de Évora D. Manuel da Conceição Santos, para muitos um santo. Era vice-reitor o futuro bispo de Timor D. José Joaquim Ribeiro, alentejano, e prefeito o padre Lourenço, de Aldeia da Ponte. O reitor estava em Évora no seminário maior. O ecónomo era o padre Barroco, de Vila Boím, coxo. O director espiritual era o padre Manso, de Aldeia do Bispo. Os professores eram da prata da casa. O de Ciências Naturais era o padre Ramiro, da Escusa, também professor de Música e o de Religião e Moral o padre Daniel, de Cardigos, que levara para o Seminário o sobrinho Daniel e o Jacinto, meus colegas. O padre Barroco ensinava Matemática. Português era ensinado pelo padre Lourenço.
Já não me lembro quem nos cortava o cabelo nos 1.º e 2.º anos mas costumava ser um leigo da vila.
Nos feriados costumávamos dar um passeio grande, de dia inteiro. Uma vez fomos até aos campos onde se deu a batalha de Montes Claros, uma vasta extensão plana onde corria água em pequenos canais. Visitámos uma ou outra vez o Palácio Ducal, sua biblioteca, sala de armas, cozinha e jardins povoados de pavões que até saltavam para o recreio da nossa quinta. Nos jardins do Palácio Ducal treinara D. Carlos a pontaria com uma pistola apontada a uma laranja colocada na cabeça da esposa Dona Amélia, segundo diziam.
Em Vila Viçosa fazia-se um concurso de portas e janelas melhor adornadas por vasos de flores. Quase sempre ganhava uma rua estreita – a Rua de Santo António, segundo creio.
Poderão perguntar:
– Não saíam para fora do seminário?
– Saíamos em passeio duas vezes por semana após o almoço, mas sempre todos juntos e acompanhados do prefeito.
Íamos normalmente para a Quinta do Paraíso, para a Fonte dos Castanheiros na Tapada Real ou para o Carrascal, grande largo para feiras e campo de bola, em frente à estação do caminho de ferro que ligava a vila a Estremoz, ao lado da qual ficava um pequeno jardim e uma capela dedicada a Nossa Senhora da Conceição. Quando estava mais frio caminhávamos estrada fora até perto de Pardais ou Bencatel.
– Que tens nas mãos, Franklim?
– Frieiras, sr. padre.
– A Primavera logo as cura.
Eram o meu flagelo no Inverno. Lume nunca o vimos, nem qualquer aquecimento.
– Tens frio nas mãos ou nas orelhas? – Esfrega-as.
– Tens frio nos pés? – Dá uma corrida.
Lume ou aquecedores eléctricos nunca os vimos. Muito menos aquecimentos centrais. O aquecimento tinha de ser natural. Orelhas frias, toca a esfregá-las. Pés frios, toca a correr. O facto de esfregarmos as mãos e orelhas não impedia que surgissem frieiras que se transformavam em feridas. Eu era um mártir delas. O Alentejo era de extremos: muito frio no Inverno e muito calor no Verão. O frio, no entanto, não chegava a atingir a dureza do nosso concelho. Apenas no Inverno de 1954 se viram cair uns flocos de neve, algo que já não se via por ali havia muitos anos. O problema estava em não termos lareira, ao contrário das nossas casas.
Destes sessenta e quatro que entraram cerca de metade não regressou após as férias de Natal, entre os quais o Pombo, o Capote, o Vinhas e o Nicolau do concelho do Sabugal, o Gomes, de Cinfães e o Parrula, de Sousel. Tempos em que não precisavam de tantos padres e se davam ao luxo de escolher os que lhes pareciam mais apropriados. Em casa ficou também um lisboeta que gostava de deitar perfume nas roupas, facto pouco apreciado por lá. Em casa ficou ainda o Fonte Santa que gostava de espreitar por baixo das casas de banho. Era um bom cantor de saias, que certamente aprendera no trabalho do campo. O padre Ramiro gostava de o chamar para junto de si nos passeios à Tapada Real. Pedia-lhe que cantasse algumas saias e ele passava-as para música. Os outros costumavam solfejar os trechos aprendidos nas últimas aulas de música.
(Continua)
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«Quadrazenhos no Seminário», por Franklim Costa Braga
(Cronista/Opinador no Capeia Arraiana desde Maio de 2014)
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