O Ti Sancho vinha da Raia, de botas de cabedal já cambadas e desatacoadas, odre de azeite preso por um cordel sob a velha samarra, já escassada nos cotovelos e de gola gasta e razoada pelo uso. A tapar as pernas as ruças calças de pana preta a condizer com a boina basca na cabeça.
Penso que as pernas já sabiam o caminho pelas muitas «topadelas» que dera na mesma caminhada ano após ano, dia após dia! Agora nem forças lhe sobravam para erguer bem o «diatcho» dos pés que até na lama mole «entrepicavam».
Entre impropérios castelhanos e lusos, lá se ia safando, cosido aos muros dos lameiros para se safar aos carabineiros.
Sonhava um dia ter uma casinha onde pôr uma enxerga limpa a cheirar a «folhelho», coberta por alvos lençóis de linho e, na lareira, ver crepitar um lume bem aceso e quente, rodeado das panelinhas de ferro, a brilharem como prata, como tinha a sua santa mãe, quando o esperava do carrego. Foi aí, que as pérolas geladas deslizaram cara abaixo. Já morrera a esperança, tal como um dia morrera a sua querida mãe. Afinal, o ganho do azeite nem para o pão de cada dia lhe chegava, não fosse a Ti Maximina lhe achegar uma malga de sopa quente, cada vez que o sentia por ali.
Bem pudera ter abalado para a Argentina ou para a Venezuela como haviam abalado tantos outros dos seus quintos. Mas ele não, nunca o fizera pela sua querida mãezinha viúva e doente. Era ele o seu único amparo e ela o seu tesouro de Amor. Como era bom lembrá-la sentadinha ao lume quase reduzido a cinza, quando ele arribava!… Sorriu. Ele, tão cansadinho dos carreiros andados, ganhava logo folgo mal abria a cancela do curral. Apanhava uns chamiços, umas cepas e galgava as «escaleiras» do balcão duas a duas e até três. Pedia-lhe a sua Santa Bênção e ela, por sua vez, pedia a Deus que o abençoasse.
Envolvido em seus pensamentos nem dera conta que tinha os carabineiros mesmo à sua frente. Encarou-os e nem tugiu nem mugiu. Ainda tinha uma réstia do sorriso que guardava da lembrança de sua Mãe.
– Buenos dias! Pois «baia», ti Sancho, com este frio e tu por aqui.
– Buenos dias. Pois, assim é. Estamos quase, quase no nascimento de El Ninho, e a Ti Maximina não tem azeite para as filhós nem para o bacalhau. É ela que me dá uma malga de caldo de quando em vez! Não posso ficar sem lhe agradecer. Mesmo que me levem para o calaboiço, façam-lhe chegar meio quartilho de azeite.
– Vai-te com Deus e que tenhais uma Boa Novidad.
– Gracias, que O Menino Jesus vos dê um Bom Natal e vos encha os sapatinhos de tudo o que vos fizer falta.
E o Ti Sancho, seguiu achancando o carreiro mas com o coração mais quente e alegre, enquanto os dois carabineiros o olhavam com um olhar de ternura!…
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«Gentes e lugares do meu antanho», crónica de Georgina Ferro
(Cronista no Capeia Arraiana desde Novembro de 2020)
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