Carne vale! Adeus carne, segundo alguns. O Carnaval, mais conhecido por Entrudo nas nossas terras, era o último dia em que se podia comer carne, já que no dia seguinte, Quarta-Feira de Cinzas, começava a Coresma (Quaresma), tempo de jejum, durante o qual não se podia comer carne. E vá de encher a pança de carne e de vinho no dia de Carnaval além de outros desregramentos e extravagâncias!

Como aquela dura quarenta dias, mais que o Ramadão dos muçulmanos, a Igreja acabou por aligeirar o jejum de carne ao longo dos tempos, passando a proibi-la apenas às Sextas-Feiras da Quaresma. Mas, quem a quisesse comer mesmo às Sextas-Feiras, bastava que pagasse uma determinada quantia à Igreja. Todos nos lembramos da Bula ou Desobriga, o papel que o padre da freguesia nos entregava contra o pagamento de 15 escudos por adulto, se a memória não me atraiçoa.
A intenção da Igreja seria: porque não comer carne constitui um sacrifício, vamos substituir esse sacrifício por outro, isto é, por um pagamento de determinada verba.
A intenção poderia ser boa mas, na realidade, a bula passou a ser vista como uma compra de poder comer carne.
Talvez o Papa Leão X, que creio ter sido também o criador desta indulgência a par de outras, não tenha tido a diplomacia suficiente para explicar aos cristãos essa sua boa intenção. O resultado é conhecido. O frade Martinho Lutero, alemão ferido no seu orgulho por ter sido preterido por Johann Tetzel para pregar o perdão dos pecados por indulgências, resolveu fazer a Reforma, isto é, a cisão entre católicos e protestantes.
À Reforma de Lutero seguiu-se a Contra-Reforma dos Jesuítas e a criação da Inquisição em 1536 para proteger a fé católica, com os resultados que todos conhecemos.
Vem isto a propósito porque na minha paróquia em Lisboa recebi no fim duma missa de Domingo no ano passado um envelope para que nele depositasse um valor em dinheiro à minha discrição, que substituiria a antiga bula, sem receber aquele papel de antigamente.
Agora o envelope tem escrito: «Patriarcado de Lisboa-Renúncia Quaresmal.»
Por um lado, fica-se a saber que o donativo será para o Patriarca de Lisboa, que o distribuirá quiçá pelos padres da diocese e pelo Papa. Por outro lado, é dada a explicação para o donativo, isto é, trata-se duma renúncia quaresmal, ou seja, um sacrifício.
Esta é uma maneira mais diplomática para fazer um peditório aos cristãos, sem lhes falar em comer ou não carne. Os seguidores da Igreja conhecem a intenção, embora não seja visível a liberdade de comer carne às Sextas-Feiras da Quaresma contra este donativo.
Se o Papa Leão X tivesse usado esta diplomacia, não precisava de pregadores de bulas e a cristandade ainda hoje poderia estar unida, pois Martinho Lutero não se teria sentido preterido nas pregações e ter-se-iam evitado milhares de mortes e castigos à mão da Inquisição.
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