:: :: JOSÉ CARLOS LAGES :: :: No primeiro episódio das «Histórias da Memória Raiana» o António Emídio «apresentou-nos» a família do Luís do Sabugal quando este se preparava para ingressar no Outeiro de São Miguel. Na «quinta temporada» o José Carlos Lages recorda as «Festas de São Paulo em Ruivós». Memórias da sua meninice de imigrante em Lisboa… (Capítulo 5, Episódio 7.)
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HISTÓRIAS DA MEMÓRIA RAIANA
Capítulo 5 – Episódio 7
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25 DE JANEIRO – FESTA DE SÃO PAULO EM RUIVÓS
A 25 de Janeiro a Igreja Católica comemora a «Conversão de São Paulo». Todos os anos a aldeia de Ruivós, no concelho do Sabugal, se embeleza para comemorar a data do «seu santo». Com mais ou menos foguetes, mais ou menos afinados coros ou bandas de música e mais ou menos emotivos pregadores da história da conversão de Saulo no caminho de Damasco, todos os ruivosenses estejam presentes ou ausentes vivem o dia com emoção e tradição. Neste ano de 2023 após um impasse provocado pela dificuldade em encontrar mordomos a festa lá se fez devido à «teimosia e querer» de dois irmãos – o Domingos e o Lourenço Leitão – que, quase em cima do acontecimento, assumiram a tarefa de «ir buscar São Paulo à sua capela»…
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Ir à «festa da terra»
A viver em Lisboa cresci a sentir o frenesi que se apoderava dos meus pais lá para meados de Janeiro. Acho que, ano após ano, nunca faltaram à «festa da terra». Eles e todos os da sua geração estivessem na capital ou em França.
Nos primeiros anos tenho ideia de os acompanhar sempre ansioso para chegar e ir ter com os meus primos, para saber se havia neve e se já por lá andavam as senhoras que vendiam amêndoas e doces nos tabuleiros de madeira rectangulares iguais aquele onde a minha avó e as minhas tias costumavam colocar a carne para fazer os enchidos. Mais tarde vim a saber que uma daquelas «amendoeiras» era avó do meu amigo Luís do Sabugal.
Naqueles tempos a viagem era longa e demorada. Cerca de oito horas pelas «nacionais» no volkswagen carocha cinzento com o meu pai a fazer religiosamente as paragens sempre nos mesmos sítios. Primeiro em Ponte de Sôr num grande largo com várias tascas e casas de pasto. Apesar de só fazer a viagem três ou quatro vezes por ano o meu pai conhecia e tratava o dono do café pelo nome. Depois nova paragem num fontanário com água a sair de uma rocha a seguir a Arez, nas curvas de Nisa, onde se tínhamos o azar de apanhar pela frente uma camioneta lá seguíamos sem poder ultrapassar durante muitos quilómetros. Antes de Vila Velha a paisagem impressionante das «Portas de Rodão» no rio Tejo e o odor intenso da fábrica de celulose com a minha mãe a observar que «as roupas daquelas pessoas deviam ter sempre aquele cheiro».
Recordo as passagens pelo Couço, por Montargil, Água Todo o Ano, Alcains, Escalos, São Miguel d’Acha e outras terras cujos nomes começaram a ser-me familiares.
Castelo Branco era paragem obrigatória para ir ao «mercado». O meu pai sentia sempre uma grande nostalgia e quando passávamos pelo quartel onde tinha «assentado praça em Cavalaria» gostava de recordar apontando para a camarata onde tinha dormido… «O teu avô deu-me 20 escudos quando vim para a tropa. No quartel trabalhei como carpinteiro e quando voltei para casa devolvi-lhe a nota», dizia-me em jeito de ensinamento para as dificuldades da vida.
Depois de Penamacor a impaciência começava a mexer comigo. Quando passava pela Senhora da Póvoa o meu pai cantava e assobiava «Viva a Velha, Viva a Nova», recordando algumas romarias do seu tempo de juventude. Antes de chegar ao Sabugal venerava os «castanheiros das merendas» onde os peregrinos comiam o farnel.
Na descida para o Sabugal quando avistava o castelo das Cinco Quinas sentia-me em casa. E que felicidade era olhar pela janela do carro para ver as casas com paredes de pedra, os carvalhos e os castanheiros onde reconhecia a paisagem das terras raianas. Sobre a ponte, ao moinho da Rapoula, o Côa dava-me as boas-vindas com as suas águas cristalinas (e geladas) e que naquele tempo corriam bastas e livres.
Ao chegar a Ruivós era sair do carro para ir a correr ter com os primos que naquele tempo viviam junto à igreja matriz ao lado da casa do ti Zé Moco e onde se percebia a azáfama dos preparativos para a festa.
A festa de São Paulo sempre foi conhecida pelo brio que os mordomos – um por Ruivós, um por Lisboa e um pela França – punham nas muitas «dúzias de foguetes» que mercavam para a festa. E, de facto, a alvorada do dia 25 era motivo de reconhecimento nas terras em redor como «a mais forte e prolongada de todas».
No final da procissão da manhã depois de ir «buscar» São Paulo à capela os mordomos distribuíam os músicos pelas casas para almoçarem em mesas fartas onde não podiam faltar as tchouriças do marrano criado em casa, os queijos feitos com o leite da «castanha» e da «turina», as filhoses e os bolinhos cozidos no forno da praça. A «Ressalva» durante a tarde era preenchida com a volta da banda pelas casas da aldeia e… reconheço que eram valentes. Tinham de parar em todas as portas e comer e beber, em especial, nas casas dos novos mordomos. Tenho ideia que ao fim da tarde, para tocar, já não precisavam de olhar para as pautas de música!
Tradição daquele tempo a que um bispo da Guarda mandou «pôr fim» era a arrematação dos andores dos santos. «Perna direita da frente! Quem arremata a perna direita da frente? Uma, duas, três! Arrematado ao… Vamos passar agora ao guião de São Paulo! Quem tem devoção para levar o guião este ano?…» Reconheço agora que soava um pouco a mercado de fariseus e vendilhões do templo e por vezes era uma feira de vaidades. Com o câmbio do franco francês em alta em relação ao escudo alguns emigrantes aproveitavam para mostrar aos seus conterrâneos que estavam a ser bem sucedidos na difícil vida que levavam em terras francesas.
E claro à noite havia o baile. Naquele tempo todos se reuniam na velha escola primária junto às casas dos pais da Maria dos Anjos e do Toninho da Isaltina. Lá dentro dançava-se ao som da concertina do Manuel da Ti Luísa com as minis e ajudar a esquecer o frio da geada ou da neve que, do lado de fora, decorava em tons de branco os caminhos e as tapadas.
No dia seguinte a nossa inocente brincadeira de crianças era ir pelos lameiros à procura das «bombas» dos foguetes que não tinham arrebentado. Parvoíces que felizmente nunca tiveram acidentes graves a lamentar.
No dia 26 (ou 27) a missa dos emigrantes encerrava a festa. Com os novos mordomos já nomeados, para o ano seguinte haveria mais…
Para mim tudo ficou mais difícil quando cheguei à escola preparatória e depois ao Liceu. O final de Janeiro era tempo de testes, não podíamos faltar e deixei de acompanhar os meus pais à «Festa». Em 1998, tinha o meu filho Tiago apenas dois meses, foi a minha vez de ser mordomo de São Paulo cumprindo uma obrigação que ia rodando por todos, vivessem em Ruivós, em Lisboa ou em França.
Em 2023 os dois irmãos, Domingos e Lourenço, assumiram a responsabilidade de ser mordomos da Festa de São Paulo celebrada e dirigida pelo padre Daniel Cordeiro.
Viva São Paulo! Viva Ruivós!
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Data da festa de São Paulo
Há muito tempo que os de Ruivós falam da possibilidade de alterar a data da festa de Janeiro para os meses de Verão. «Heresia!», gritam uns,… «quando quiseram mudar o dia da festa, nesse ano veio uma peste que matou os animais todas da aldeia», recordam outros baseados numa lenda difícil de comprovar.
O facto é que os tempos actuais e vida profissional longe da aldeia não se compadece com a data fixa de 25 de Janeiro que «calha» muitas vezes a meio da semana. E se acrescentarmos o tempo gelado, por vezes com neve, a vocação de estar presente na festa sobra na sua maioria para os residentes e das redondezas e para os reformados ou como muitas vezes se ouve dizer… na «retraite».
Mas como quase todos os problemas têm solução aqui fica a minha sugestão para uma data mais «amiga das novas gerações»: 29 de Junho.
Claro que a pergunta que se segue é: «Mas porquê 29 de Junho?»
As soluções devem ser fundamentadas. Para a Igreja Católica o santo Paulo é o «príncipe dos apóstolos» ou o «apóstolo dos gentis» e o maior missionário de todos os tempos.
A Festa de São Pedro e São Paulo, comemorada a 29 de Junho ou no domingo seguinte, também chamada de Solenidade de São Pedro e São Paulo, é uma festa cristã em honra ao martírio em Roma dos dois apóstolos, pilares da igreja. A celebração tem origem muito antiga e a sua liturgia convida-nos a reflectir sobre estas duas figuras e a considerar o seu exemplo de fidelidade a Jesus Cristo e de testemunho do projecto libertador de Deus.
No Calendário Romano Geral da Igreja Católica a data é celebrada como solenidade. No calendário romano geral de 1962, é uma festa de primeira classe.
Assim e, curiosamente, para os mais devotos o dia de São Paulo é comemorado a 29 de Junho em todo o mundo católico. Até prova em contrário, ele há coisas…
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José Carlos Lages
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Os episódios das «Histórias da Memória Raiana» são escritos periodicamente por um autor diferente. Participaram na «primeira temporada»: António Emídio, Fernando Capelo, José Carlos Mendes, Ramiro Matos, António José Alçada, Franklim Costa Braga, António Martins, António Alves Fernandes, Joaquim Tenreira Martins, Georgina Ferro e José Carlos Lages.
Nesta «quinta temporada» o José Carlos Lages recorda as Festas de São Paulo da sua meninice…
Total de episódios publicados: 42.
Apesar de fazer referência a nomes e lugares verdadeiros da região raiana dos territórios do Sabugal esta é uma obra de ficção misturada com a realidade e qualquer semelhança com nomes de pessoas, factos ou situações terá sido mera coincidência (ou talvez não!)
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José Carlos Lages
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