Sendo estrangeiro, sinto mais liberdade e isenção, para poder estudar a evoluir do pensamento, neste caso da História de Angola e de Africa. Estamos a caminho dos cinquenta anos da libertação da Angola, não esquecendo que após a Segunda Guerra Mundial, centenas de países também foram libertados pelas potências coloniais da época, tornando por isso, para um estrangeiro, um facto normal e até salutar.
E, curiosamente, o pensamento politico de Agostinho Neto, pelo que se sabe, tem inicio em 1945, coincidentemente, ou não, no inicio num novo mundo pós-guerra, que curiosamente Portugal terá ficado de fora, embora não tenha a certeza, por exemplo em Angola, os nazis não terão andado por cá e até não tenham ocorrido algumas escaramuças com forças militares portuguesas, ou até os próprios colonos da época se tenham organizado para rechaçar os arianos. Mas, na verdade, muito pouco sei sobre essa questão.
Achei interessante escrever um pouco sobre uma pessoa invulgar, sabendo que ainda existe muita amargura neste fatídico ano de 1975, mas que no lado dos países libertados foi um ano de jubilo.
Em 2018, concretamente no início de Abril, numa visita que fiz a Angola, tive o prazer de conhecer o Dr. João Job, secretário particular do Dr. Agostinho Neto, homem que andou nas matas a combater as forças portuguesas, mas formado em Direito pela Universidade de Coimbra e em Teologia, tirada em Roma, quando foi cônsul de Angola em Itália. Infelizmente já falecido, explicou-me pela primeira vez na minha vida o porquê da libertação, obviamente no contexto da sua visão. Hoje com o que sei e aprendi, reconheço do Dr. João Job uma grande capacidade diplomática, porque nunca tocou no aspecto mais escondido e desconfortável da história de Portugal, mas que já se começa, felizmente, a ouvir no nosso país: a escravatura.
O pensamento netiano revela-se através da poesia, sendo a sua obra um documento importante da História de Angola, relatando entre 1945 e 1956, em verso um movimento popular que foi crescendo pela libertação de Angola. E de facto, em 1956, nasce o partido político que alicerça a vontade dos angolanos em serem livres da potência que os administra, vulgarmente chamados de colonos.
A poesia netiana para além de almejar o movimento popular, liderança politica, organização social com o objectivo da independência, usa os «musseques» através de uma analise histórica, social, as aspirações de mudança politica, esperança pela independência, pressupondo a existência de condições objectivas para o nascimento do dito movimento popular, como forma de luta, não deixando de ser um discurso estético e eloquente que começou no próprio Agostinho.
Agora escrevendo como português, e desconhecendo que os «musseques» foram tão importantes na obra libertadora e Agostinho, senti igualmente uma necessidade de reflexão profunda quando comecei a vaguear pelos «musseques» de hoje, já com o nome de Bairros Peri-urbanos, conforme os conceitos do planeamento urbano.
Os Bairros Peri-urbanos marcaram-me socialmente, porque as questões políticas num país estrangeiro guardo-as para mim. Mas, paradoxalmente, estes bairros foram dos locais por onde mais gostei de andar, e na verdade não andam muito longe da descrição de Neto, salvo obviamente a ausência de policias ou forças controladas por estrangeiros.
O poema «Sábado nos Musseques», onde na noite sente-se uma forte ansiedade nas suas populações, motivadas, hoje, por problemas sociais de falta de emprego, muita irresponsabilidade de pais que abandonam as mulheres e os filhos, de bebedeiras que ocasionalmente acabam em tragédias, mas que, felizmente, já têm algumas infra-estruturas, como electricidade, água em chafarizes, não deixando também de aparecer a policia para restabelecer a ordem publica, principalmente em casos de vandalização de bens públicos.
Mas falemos das suas gentes. Hoje, passados quase 70 anos, a génese daquelas gentes permanece. Raramente se encontra alguém com intuitos maldosos ou provocatórios. Quantas vezes me perdi nas ruelas, fazendo lembrar as medidas árabes, e sempre um desconhecido me levava à estrada sem esperar recompensa. De tanto por lá passar, algumas famílias já me conheciam e me cumprimentavam, sempre com um sorriso, porque ali se vive um dia de cada vez.
Nunca me pediram nada. Apenas os garimpeiros da água, me suplicavam por favor que não os denunciasse. Mas, com o tempo, o estado começou a intervir e disciplinar a gestão das infra-estruturas, e todos tinham de pagar, nem que fosse algo simbólico. Foi um trabalho difícil, mas os habitantes dos «musseques» ainda hoje vivem de uma grande solidariedade. Cortando-se a água ou a luz, há sempre um vizinho que ajuda.
Tal como o poeta Presidente descobriu nos «musseques» a inspiração para o movimento popular de libertação, eu, nos Bairros Peri-urbanos, descobri a essência da vida, a sobrevivência do dia a dia com naturalidade. Não pensem os europeus que um dia esta realidade lhes pode bater à porta. Tudo vai depender das cabeças pensantes que mandarem nos nossos destinos.
Talvez por isso pego novamente nas palavras de Agostinho Neto: «Sagrada Esperança.» Ele teve sucesso na Esperança de conseguir os seus intuitos.
Estranho. Será que nós europeus também conseguiremos a sustentabilidade, em todas as vertentes, das nossas vidas? Embora tempos diferentes, as realidades talvez não andem tão longe. Qual será o nosso rumo de liberdade? Aqui direi que a Esperança seja Sagrada.
Termino, como comecei. Recorrendo às palavras do Presidente Poeta:
«Minha mãe…..
Tu me ensinaste a esperar
Como esperaste nas horas difíceis.»
Kuito, 21 de Janeiro de 2023
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«No trilho das minhas memórias», ficção por António José Alçada
(Cronista/Opinador no Capeia Arraiana desde Junho de 2017)
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Belo texto que nos leva a pensar no dia a dia daqueles que vivem nos musseques.