Tocaram as Trindades e rezámos as Avé-Marias. De seguida eu pus a mesa, já puxada para a frente da lareira, enquanto a minha tia servia o caldo escoado. Naquele dia abriu-se mais um potinho de pimentos curtidos. Eram bem picantes, mas eu gostava imenso!… Meu tio «Zé Manso» dizia sempre que não sabia como é que eu aguentava aquele queimor na boca e eu sentia-me uma mulherzinha forte!…
Quando acabámos de jantar, minha tia deitou água quente no alguidar e eu ia-lhe dando os pratos e talheres que ela lavava com um esfregão e uma côdea de sabão azul e branco. Eu depois limpava-os na rodilha branquinha e ia guardá-los no lugar.
Meu tio arredou a mesa para o canto e trouxe um cepo de carvalho que pôs lá bem atrás. Minha tia puxou, então, as brasas à frente e juntou-as para colocar a panela de ferro com água e o meu rebolinho de pedra mesmo ao lado para estarem quentinhos à hora de nos irmos deitar.
Meu tio pôs o chapéu e o capote, minha tia embrulhou-se no xale de lã e eu vesti o sobretudo e a touquinha. E fomos passar o serão a casa do meu tio Eduardo e da minha tia Palmira.
Naquela noite não era preciso levar o candeeiro de mão, porque a lua e as estrelas brilhavam de tal forma na geada que os caninhos pareciam pejados de diamantes. O ar transparente e gelado espetava-se nos poros do rosto e das mãos.
Atravessámos o Enxido e depressa chegámos. Empurrámos a porta e fomos entrando. Dependurámos os agasalhos no cabide à entrada do corredor e demos as boas noites. Eu fui dar um beijinho à ti Petra, mãe da minha tia Palmira que estava perto do lume a «escartchar» castanhas para o caldeiro furado (assador). Meu tio Eduardo já se sentara perto da mesa elástica, com os pés no estrado da braseira coberta de pratas, para as brasas não se apagarem.
Meu tio Zé Manso sentou-se ao lado e as minhas tias, cada uma em frente ao seu respectivo marido.
E começou o jogo da sueca. Era silêncio rigoroso, que meu tio Eduardo não permitia o menor som enquanto se batiam as cartas. Só no intervalo de cada vasa é que ele soltava uma estridente gargalhada se tivesse ganho, ou barafustava se uma bisca estivesse seca e a tivesse perdido para um trunfinho insignificante ou para o ás do mesmo naipe. E repetia vezes sem conta «se não fosse aquela!…»
Eu ficava ao lado da ti Petra enquanto ela volteava as castanhas para ficarem bem assadas e tenrinhas. O leite também já começava a ferver no tacho de esmalte pousado na trempe. No colo tinha um prato para onde lascara uns tomos de chocolate que iria juntar ao leite. Tirou um «cartchinho» e «botou-mo» na mão fazendo sinal para eu não mostrar a ninguém.
As castanhas ficaram assadas e a ti Petra arredou-as do lume e abafou-as com uma rodilha. Foi buscar a garrafa da jeropiga e os cálices pequeninos, as canecas para o leite com chocolate, os «paninhos» para irmos limpando as mãos. Pôs tudo na mesa pequenina e começámos a «debulhar» as primeiras castanhas para um «caçoilo» enquanto eles tentavam renhidamente a última vasa do jogo. Meu tio Eduardo, sempre atento às cartas já «saídas» conseguiu que a sua bisca de espadas «sequinha» apanhasse o rei depois de ter tirado todos os trunfos aos parceiros de jogo. Soltou uma imensa gargalhada que abafou logo ao ver que tinha perdido a vasa e também o último jogo por um «tento» apenas. Entre lamúrias e boa disposição, atiçou-se o lume, baixou-se um bocadinho a torcida ao candeeiro e sentaram-se todos de volta do assador.
Daí a um «poquenino» já ninguém se lembrava de quem tinha perdido o jogo. A conversa ia mudando de assunto, passando por anedotas, adivinhas ( já com barbas), com as previsões do Borda d’Água para o dia seguinte… Depois foram as despedidas. Eu pedi a benção à ti Petra, que me deu o melhor abraço, e ao tio Eduardo e à tia Palmira que por lá ficavam. E nós vestimos os agasalhos que tínhamos deixado dependurados e viemos para a rua gelada. Envolvi os braços em volta da cintura da minha tia e ela embrulhou-nos a ambas no seu xale. E eu deixava-me ir ao ritmo do seu caminhar apressado.
Meu tio foi à loja ver da Mimosa e pôs-lhe mais uma faixazinha de feno na manjedoura. Eu corri a apanhar a chave de casa guardada no buraco da entrada da capoeira, subimos as escaleiras e fomos à cozinha. Minha tia, com a tenaz, tirou o meu rebolinho do borralho quente e enrolou-o em papel manteigueiro, no resto duma velha camisola e finalmente num trapo branquinho que havia sido cortado de um lençol já todo escassado pelo uso. Depois varreu a lareira e apanhou a cinza para a pilheira.
Ajeitou uns galhinhos ao tição e deixou arder enquanto me vinha a aconchegar na cama fofa ainda a cheirar aos folhelhos novos desse Verão. «Botou-me a sua benção» e volveu à cozinha a encher a botija de barro para si e para o meu tio que subira da loja arreganhadinho… Nisto, caí no vale dos sonhos donde só vim quando o cheirinho a café e a pão torrado entrou no meu quarto…
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«Gentes e lugares do meu antanho», crónica de Georgina Ferro
(Cronista no Capeia Arraiana desde Novembro de 2020)
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