Eu fiquei com a tia e elas partiram. Foram em Outubro e o Natal nunca mais chegava. Como eram longos, longos… aqueles dias, semanas e meses!…

Abalavam na camioneta da carreira, mal rompia a aurora. E havia tantos abraços de despedida!… Vinha a minha avó, as tias, as vizinhas…De vez em quando, voltavam a ponta do avental onde escondiam as lágrimas que teimavam a escorrer…depois era mais um abraço, mais um conselho, mais uma recomendação… «Escrevam logo a dar notícias. Levam aí um envelope e um selo de dez tostões! Não se esqueçam do meter no correio», lembrava a minha tia pela centésima vez.
Depois, entravam na camioneta que não tardaria a deitar uma baforada de cheiro a gasóleo e arrancava com as primas encostadas aos vidros das janelas a abanar as mãos em despedida.
A tia pegava-me na mão, como se estivesse a dar-me o mimo que as filhas não podiam levar. E ia rezando baixinho à Senhora Mãe de Jesus. As vizinhas, a minha avó e tias, respeitaram o silêncio até chegarmos junto da igreja, onde nos separávamos. Aí, cada qual fungou uma despedida e lá foram a caminho das suas imensas tarefas: abrir a capoeira às pitas, dar a vianda ao marrano, levar as vacas ao lameiro…
Os dias iam passando bem contados pelo calendário dependurado na parede do corredor…
A tia ia guardando um naco de presunto do ano anterior, porque o novo ainda não estaria curado! Já era tempo de ir secando algum queijo, não fossem elas vir e os queijos não estarem secos. A «pasta de chocolate» de Nossa Senhora das Luzes só tinha dois tomos, quando fôssemos a Navas Frias não podíamos esquecer-nos de comprar outra… ia lembrando até ao dia da chegada.
Ao romper do dia, acrescentaram-se as tarefas da limpeza da casa: esfregou-se o soalho da cozinha com carqueja, barrou-se a chaminé, apanharam-se uns ramos de azevinho para pôr na jarra da sala, fizeram-se as camas com lençóis guardados na arca! Veio a avó perguntar se era preciso ajuda, a tia Palmira, a minha tia Maria da «Ti Neves» (minha avó), a ti Zefa, a ti Isabel Augusta, a Laurinda…
E as horas não passavam. O sol não aguentou mais o sono e foi pôr-se para lá do horizonte. Acenderam-se os candeeiros, as lanternas, a candeia … Meu tio não aguentou mais a espera e abalou até ao Pocinho, iria trocar umas lérias com os amigos. A tia não parava de olhar para o relógio que parecia ter ficado sem corda, nunca mais mexia os ponteiros!
Ainda bem que não chovia nem havia neve! A estrada devia estar seca e sem muitas covas! Talvez chegasse antes da hora prevista! Era melhor irmos também esperar para o Pocinho! E lá fomos…
Nunca mais se ouvia o ronco do motor! A tia aconchegou-me no seu xale de lã e permanecia calada, como se o barulho da conversa pudesse abafar o ruído da camioneta!
Por fim, ouviu-se um apito e logo o barulho de um motor. Num instante, é um mar de garotada a correr vinda de todos os cantos: «Já lá vem! Já lá vem!»
Abriram-se as portas! Saiu o revisor e o condutor que treparam ao tejadilho a ir buscar as malas de viagem, enquanto saíam todos os viajantes. Choviam abraços, beijos e exclamações: «Ai mem!, que grandes estais!» «Como crescestes tanto!» Do tejadilho o revisor bem gritava: «De quem é esta?», mas ninguém o ouvia. Os rapazes mais cresciditos trepavam as escadas e davam uma ajuda a descer a bagagem.
Depois, eram os convites para visitar as suas casas, no dia seguinte, e as boas noites. Meu tio carregava as duas malas e elas levavam as suas saquinhas. As perguntas nem esperavam pelas respostas, tal era o desejo de pôr a conversa em dia! O caldo escoado estava arrimado ao lume para não arrefecer e a mesa já estava posta… O serão durou quase até ao amanhecer, penso eu, pois deixei-me dormir com a cabeça encostada à cornija da chaminé!
Poucos anos passaram e já não há gente para ir esperar a camioneta. As famílias partiram para França. A aldeia está quase deserta. Só Agosto recorda a minha gente!…
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«Gentes e lugares do meu antanho», crónica de Georgina Ferro
(Cronista no Capeia Arraiana desde Novembro de 2020.)
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