A Igreja Ortodoxa Russa é dirigida por um homem controverso. O Patriarca Cirilo I é uma figura com um passado de informador do KGB que lidera o Patriarcado Ortodoxo de Moscovo desde 2009 e que se transformou num dos homens mais poderosos do círculo de Vladimir Putin.

Cirilo I nasceu em Novembro de 1946 em Leninegrado, nome da cidade de São Petersburgo no tempo da União Soviética, e foi batizado como Vladimir Mikhailovich Gundyaev.
A teologia ortodoxa viria a ser a sua vocação natural, uma vez que era esse o percurso da sua família, como refere a biografia oficial do atual Patriarca de Moscovo. O pai, Mikhail, era sacerdote. O avô, Vasiliy, também. E o seu irmão mais velho, Nikolay, seguiu a mesma via.
Aos 16 anos de idade, enquanto frequentava o ensino secundário, o jovem Vladimir Gundyaev ainda pensou estudar Física na Universidade de Leninegrado mas, por influência do irmão mais velho, esse desvio da teologia durou poucos anos.
Carreira religiosa
Em 1965, entrou no Seminário de Teologia de Leninegrado, onde se graduou em 1970. Um ano antes de receber a primeira ordenação de diácono, Vladimir Gundyaev adotou aquele que seria o seu nome religioso daí em diante: Cirilo.
A partir da ordenação, Cirilo percorreu uma carreira religiosa que o levou aos lugares do poder dentro da hierarquia da Igreja Ortodoxa russa. Foi professor universitário de teologia, representante do Patriarcado de Moscovo no Conselho Mundial de Igrejas em Geneva, bispo e arcebispo antes de, em 1989, ser nomeado para liderar o departamento de relações exteriores do Patriarcado, um dos lugares de maior relevo da estrutura eclesiástica ortodoxa da Rússia.
Em 2009, tornou-se no primeiro Patriarca de Moscovo eleito após a queda da União Soviética, recebendo o título de Cirilo I e sucedendo no lugar ao Patriarca Alexey II, que tinha sido eleito em 1990.
Agente do KGB?
De acordo com relatos que vieram a público ao longo dos últimos 20 anos comprometendo não só o atual Patriarca de Moscovo mas também o seu antecessor Alexey II e várias outras importantes figuras da hierarquia ortodoxa russa, durante a sua carreira religiosa Cirilo terá tido uma vida dupla como informador, ou mesmo agente, da polícia secreta soviética – o KGB.
Os primeiros indícios de que o anterior Patriarca de Moscovo, Alexey II, teria sido um informador do KGB surgiram no início da década de 1990, quando o primeiro presidente russo pós-URSS, Boris Yeltsin, permitiu que uma comissão parlamentar tivesse acesso aos arquivos soviéticos.
A investigação durou pouco tempo, mas em 1999, um documento encontrado na Estónia trouxe a confirmação de que Alexey II não tinha sido apenas um mero informador, mas um agente do KGB, tal como vários outros padres e bispos ortodoxos, cujas promoções na carreira eclesiástica teriam sido aceleradas com a ajuda da referida polícia secreta.
As suspeitas viriam, depois, a recair também sobre Cirilo, que durante alguns anos foi o braço direito de Alexey II, antes de ser eleito como seu sucessor.
Efetivamente, de acordo com material dos arquivos da era soviética, Cirilo terá sido, tal como Alexei II, um agente do KGB. Isto significa que ele foi mais do que um mero informador, dos quais havia milhões na União Soviética. «Era um agente ativo da organização», afirmou em 2009 o historiador norte-americano David Satter, especialista na história da União Soviética e da Rússia, aquando da eleição de Cirilo I como Patriarca de Moscovo.

A influência da Igreja Ortodoxa Russa
A história da Igreja Ortodoxa Russa é muito antiga. O Cristianismo chegou à região do leste europeu que hoje corresponde à Ucrânia, Bielorrússia e Rússia oriundo de Constantinopla, no final do século X, isto é, pouco antes do grande cisma que, a partir de 1054 (ano em que os líderes da Igreja de Constantinopla e da Igreja de Roma se excomungaram mutuamente), dividiu o mundo cristão entre Ocidente e Oriente.
A comunidade cristã da Rússia viria a ser elevada à dignidade de Patriarcado Autónomo já no século XVI e, durante o regime dos czares, a Igreja Ortodoxa russa manteve, sempre, grande influência política no país que perdurou até à revolução bolchevique de Outubro de 1917 – data a partir da qual passou a ser duramente reprimida pelo regime comunista da União Soviética.
A queda deste regime ocorrida em 1991, veio entretanto abrir as portas a um ressurgimento da Igreja Ortodoxa, que encontrou novamente espaço para se afirmar como elemento central da identidade russa.
A partir de 2000, já com a Rússia sob a liderança de Vladimir Putin, o peso da Igreja Ortodoxa Russa foi-se reforçando e a instituição aproximou-se gradualmente do poder político, tornando-se num instrumento útil ao Kremlin na sua busca pela recuperação do antigo Império russo.
Efetivamente, há vários anos que o Patriarcado de Moscovo, a maior Igreja Ortodoxa do mundo, com 90 milhões de fiéis, tem vindo a usar a sua enorme influência popular para consolidar junto do povo russo a narrativa de que o Kremlin está empenhado num esforço sagrado de combate contra um Ocidente considerado «perverso e moralmente fracassado», combate que tem por objetivo declarado «defender os valores tradicionais do Cristianismo». Vladimir Putin não hesitou em associar-se a esta narrativa, repetindo vários argumentos religiosos e apoiando-se na Igreja Ortodoxa para justificar a guerra em curso na Ucrânia.
De facto, «qualquer guerra tem de ter armas e ideias. Nesta guerra, o Kremlin forneceu as armas e a Igreja está a fornecer as ideias». Esta é a tese defendida pelo padre ortodoxo ucraniano Cyril Hovorun, professor de eclesiologia, relações internacionais e ecumenismo na Universidade de Estocolmo, em declarações recentemente prestadas ao jornal The Washington Post, resumindo assim de modo particularmente assertivo as atuais relações entre o regime de Vladimir Putin e a Igreja Ortodoxa Russa.
Efetivamente, o Presidente russo encontrou na narrativa da Igreja Ortodoxa Russa um argumentário adequado à justificação das suas pretensões militares e territoriais e encontrou no Patriarca Cirilo I um parceiro à altura.
A luta do bem contra o mal
Tal como Putin tem procurado utilizar a sua política externa como um instrumento de defesa da integridade russa contra um alegado expansionismo militar do Ocidente que ameaça a sua sobrevivência, também o Patriarca Cirilo I tem adotado uma versão religiosa do mesmo discurso, classificando o embate entre a Rússia e o Ocidente como uma «luta do bem contra o mal».
Este posicionamento de Cirilo I não é novo. De facto, antes de ser eleito Patriarca de Moscovo, já o então metropolita Cirilo atacava publicamente o Ocidente, afirmando que as democracias ocidentais «agiam como ditaduras ao consagrarem direitos conferidos aos casos da homossexualidade ou da eutanásia», considerando-os contrários à doutrina ortodoxa.
Mais tarde, em 2017, Cirilo I voltaria a repisar este tema ao comparar as leis dos países europeus que permitem o casamento entre pessoas do mesmo sexo com «as leis imorais da Alemanha nazi…»
O Patriarca de Moscovo voltou ao assunto já depois de a Rússia ter invadido a Ucrânia, num sermão dominical em Moscovo em 6 de Março passado ao afirmar que o tratamento destas matérias na região ucraniana do Donbass era «um argumento que justificava a operação militar russa neste país. Há oito anos que tem havido tentativas de destruir o que existe em Donbass. Em Donbass há uma rejeição, uma rejeição fundamental, dos chamados valores que são oferecidos por aqueles que alegam deter o poder mundial».
Peça-chave de Putin
Na realidade, dada a enorme influência espiritual de que goza sobre milhões de fiéis, o Patriarca Ortodoxo de Moscovo tem sido uma peça-chave na difusão da narrativa de Vladimir Putin junto da população russa. Ao classificar insistentemente o Ocidente como «um sinal do demónio que tem de ser duramente combatido pelos esforços sagrados de uma Rússia apostada em defender os valores tradicionais», Cirilo I usa os seus sermões para criar na população russa a ideia de que «a guerra na Ucrânia é um ato de Deus em defesa do bem contra o mal».
Este discurso de Cirilo I intensificou-se desde que a Rússia invadiu a Ucrânia. O Patriarca de Moscovo tem-se multiplicado em elogios à ofensiva militar russa e aos soldados de Moscovo, tendo inclusivamente presidido a cerimónias de bênção dos militares, onde apelou a que «a inspiração divina descesse sobre os jovens soldados que fazem o juramento e embarcam no caminho da defesa da pátria».
No referido dia 6 de Março, quando a Rússia já tinha invadido a Ucrânia, o Patriarca Cirilo I falou em Moscovo sobre o lugar ocupado por esta guerra num plano mais alargado afirmou: «Entrámos numa luta que tem um significado não físico, mas metafísico. Hoje há um teste à lealdade a esta Nova Ordem Mundial (…)». Sabem que teste é este? É um teste muito simples e ao mesmo tempo terrível: a parada gay», continuou dizendo, sugerindo que o povo do Donbass estava a «sofrer a fúria do Ocidente por recusar a realização de paradas gay e que, por isso, a Rússia tinha de libertar as suas populações».
Este foco de Cirilo I nos valores tradicionais da família e da moral foi instrumental para que Vladimir Putin se aproximasse da Igreja Ortodoxa e para que se consolidasse a ideia de uma Igreja Nacional, em que os valores da pátria e da religião se confundem. Basta olhar para o que têm sido as decisões políticas de Putin, por exemplo nos domínios já citados, com a proibição da propaganda das relações sexuais não-tradicionais e dos casamentos homossexuais, ou mesmo com a descriminalização da violência doméstica.

Reações à posição de Cirilo I sobre a invasão da Ucrânia
No plano interno, o posicionamento de Cirilo I a favor da invasão da Ucrânia não deixou, ainda assim, de causar algum desconforto dentro da própria Igreja Ortodoxa Russa. Em Março deste ano, quase 200 clérigos ortodoxos publicaram uma carta aberta pedindo em vão a Cirilo I que se pronunciasse publicamente contra a guerra na Ucrânia, o que não aconteceu.
Apesar disso, Cirilo I chegou a ser equacionado como um interlocutor privilegiado para uma possível mediação deste conflito. Efetivamente, Cirilo I vinha desde a sua eleição em 2009 a iniciar um caminho de aproximação ao Vaticano. Em 2016, o Patriarca Cirilo I e o Papa Francisco reuniram-se no aeroporto de Havana, em Cuba, naquela que foi a primeira vez em que um Patriarca de Moscovo e um Papa católico se encontraram. Este encontro proporcionou uma relação de maior proximidade entre Roma e Moscovo, entretanto confirmada por encontros de nível mais baixo entre outras figuras das hierarquias católica e ortodoxa russa.
E, mesmo quando, em 2018, o mundo ortodoxo entrou em cisma interno, com a decisão do Patriarca de Constantinopla Bartolomeu I (o «primus inter pares» dos patriarcas ortodoxos) de reconhecer a independência da Igreja Ortodoxa da Ucrânia face à soberania religiosa do Patriarcado de Moscovo, e quando, por esse motivo, Cirilo I rompeu as ligações com o Patriarcado de Constantinopla dividindo o universo ortodoxo em dois, ainda assim, Roma e Moscovo continuaram a comunicar entre si.
Efetivamente, quando estalou a guerra na Ucrânia, ainda chegou a ser colocada em cima da mesa a possibilidade de uma intervenção diplomática do Papa Francisco junto de Cirilo I para pôr termo à guerra. Contudo, Cirilo I recusou intervir nesse sentido e continuou a posicionar-se incondicionalmente ao lado de Vladimir Putin.
Entretanto, as relações entre Francisco e Cirilo I deterioram-se. No centro da discórdia esteve o modo como ambos os líderes religiosos descreveram o que aconteceu durante o seu segundo encontro que decorreu por videoconferência no passado mês de Março e que levou inclusive a uma troca de argumentos em público, através da divulgação de dois comunicados com as respetivas versões do referido diálogo.
Cirilo alvo de sanções
O jornal Político anunciou recentemente que Bruxelas poderá vir a juntar Cirilo I ao rol de milionários, políticos, militares e instituições na mira das sanções aplicadas ao regime de Vladimir Putin, um universo em que o Patriarca de Moscovo é tido como uma das figuras de maior destaque.
O Político não descreveu que tipo de sanções a Comissão Europeia poderá aplicar ao Patriarca Cirilo, no âmbito de um novo pacote de medidas contra figuras de relevo associadas ao regime de Putin. Mas, perguntar-se-á, que tipo de sanções poderão realmente ser aplicadas, uma vez que não há informações oficiais disponíveis sobre todo o património detido pelo líder da Igreja Ortodoxa russa?
Apesar disso, várias investigações jornalísticas efetuadas sobre o assunto têm procurado levantar este véu. Em 2019, em resultado de uma investigação ao universo patrimonial de Cirilo I, o jornal Novaya Gazeta apontava para uma fortuna de entre 3.800 e 7.600 milhões de euros, se considerados os negócios na área da joalharia, petróleo e pescas, além do património imobiliário e mobiliário do líder da Igreja Ortodoxa russa.
O certo é que, até agora, a Comissão Europeia não decidiu avançar com quaisquer sanções contra o Patriarca de Moscovo.
Em contrapartida, o Reino Unido «decidiu sancionar o chefe da Igreja Ortodoxa russa, como parte de uma nova ronda de medidas em resposta à invasão da Ucrânia», disse o Ministério das Relações Exteriores britânico em comunicado emitido em 17 de Junho.
Em suma, no centro da Igreja Ortodoxa Russa está um homem controverso – o Patriarca Cirilo I – que é um dos homens mais poderosos do círculo de Vladimir Putin.
Tanto Putin, como Cirilo I alimentam a mesma ideia imperialista que visa a reconstituição do império histórico da chamada «Grande Rússia». Um imperialismo que dá vazão às pulsões nacionalistas do «Kremlin» e da «Igreja Ortodoxa Russa» que promiscuamente se misturam e se confundem no mesmo projeto expansionista. Um imperialismo que renega os mandamentos da própria religião cristã que estes dois homens dizem defender nos seus discursos e que despreza sem rebuço nem vergonha os valores universais do respeito da dignidade da vida humana, bem como as regras fundamentais do direito internacional e da convivência pacífica entre os povos.
Por outras palavras, um imperialismo que, pela mão de Putin e de Cirilo I, tem vindo a transformar a Federação Russa na maior organização de terrorismo de Estado que hoje existe no mundo.
:: ::
«Portugal e o Futuro», opinião de Aurélio Crespo
(Cronista/Opinador no Capeia Arraiana desde Julho de 2020.)
:: ::
Artigo bastante interessante e com amplitude de horizontes. Obrigada ao autor, Aurélio
Artigo deveras interessante.
Por norma não são publicos os factos aqui relatados.
O resultado só pode ter sido precedido por um trabalho de investigação profundo.
parabéns