«A Grande Substituição» é o título de um livro de Renaud Camus publicado em 2011 onde o autor afirma que a «Europa branca» sofre uma colonização inversa que extinguirá, a prazo, o modelo da sociedade europeia tal como hoje o conhecemos.


Segundo Renaud Camus, os estrangeiros e em particular os muçulmanos que vivem na Europa não serão integrados no atual modelo de civilização europeia porque não são assimiláveis, nem em número, nem em termos de cultura e de civilização. Consequentemente, sustenta Renaud Camus, esta situação vai logicamente conduzir, a prazo, a uma alteração étnica e civilizacional da própria Europa.
Baseados mais em impressões do que em dados demográficos reais, os seguidores desta teoria de Renaud Camus afirmam que se assiste em França a um processo de substituição da população francesa por uma população não europeia, originária sobretudo da África subsariana e do Magrebe e sustentam que este processo está a desencadear uma mudança de civilização consentida ou mesmo sustentada por uma elite política, intelectual e mediática qualificada de «remplaciste» que mantem a este respeito uma «conspiração do silêncio» motivada, conforme os casos, por razões ideológicas, culturais ou sócio-económicas.
Na esteira das teses avançadas pelo escritor acima mencionado, há quem afirme que, em França, um tal discurso político teve a sua raíz no antisemitismo da Terceira República e no movimento nacionalista anterior à primeira Guerra Mundial, o qual, depois desta guerra, se prolongou no nazismo e mais recentemente nos movimentos radicais da extrema-direita. De facto, nos últimos anos, a expressão «Grande Substituição» e a teoria que lhe está subjacente têm sido adotadas pelos partidos franceses nacionalistas radicais «Rassemblement National» e «Reconquête» e mesmo por vários partidos políticos de menor dimensão como «Debout la France», partido de direita radical de raíz gaulista.
A referida expressão foi, aliás, particularmente mediatizada em França, sobretudo a partir de 2010, por iniciativa do escritor, polemista e editorialista Éric Zemmour, líder do referido movimento nacionalista «Reconquête» que apoiou a sua candidatura às recentes eleições presidenciais de Abril passado.
Por sua vez, esta expressão e a teoria que lhe está associada têm sido igualmente utilizadas na última década nos Estados Unidos pelos supremacistas brancos e pelos elementos afetos ao movimento «Alt-Right».
De facto, foi o supremacista norte-americano Richard Spencer que nomeadamente renvindicou esta ideia da «Grande Substituição» em 2010 para designar a existência de um movimento político centrado sobre o chamado nacionalismo americano. Segundo a Associated Press, trata-se de uma ideia destinada a revalorizar uma nova forma de racismo, de supremacia branca e de neonazismo.
Por seu turno, a Alt-Right encontrou inspiração não apenas no supremacismo branco, mas também noutros movimentos políticos como o Tea Party americano ou nas correntes de extrema-direita francesa e conta com militantes particularmente ativos nos fóruns da internet como «Reddit», «4chan» ou «8chan». A Alt-Right, abreviação de «Alternative Right» é um movimento que representa uma parte da extrema-direita americana que rejeita o velho conservadorismo americano, que milita pela supremacia branca contra o feminismo e o multiculturalismo, que defende o sexismo e o antisemitismo e se opõe à imigração e à integração dos migrantes nos Estados Unidos. Os seus seguidores caracterizam-se por uma retórica identitária que apela ao ódio dos «outros» e que se opõe ao chamado «politicamente correto». Mas vários jornalistas e investigadores têm por seu turno sublinhado que a Alt-Right é sobretudo uma mistura de correntes da extrema-direita americana, ou seja, um movimento e não propriamente uma ideologia unificada.
Esta retórica anti-imigração, anti-globalismo e anti-multiculturalismo do Alt- Right encontra-se igualmente presente numa corrente mais radical do Partido Republicano que segundo, alguns analistas, corresponderá a cerca de 30% do total dos seus membros.
A verdade é que, à semelhança do que sucedeu em França, as teses da «Grande Substituição» tiveram igualmente uma grande repercussão mediática nos Estados Unidos e foram utilizadas durante e depois da campanha presidencial do candidato republicano Donald Trump em 2016, tendo alguns media e alguns investigadores associado, aliás, o sucesso de Trump ao movimento Alt-right atrás citado.

Efetivamente, a ideia da «Grande Substituição», entendida como uma teoria mais ou menos conspiratória, está em plena circulação nos Estados Unidos. Em razão da facilidade do acesso às armas, da força dos movimentos supremacistas brancos e dos ultranacionalistas, reforçados por Donald Trump, por Steve Bannon e por Tucker Carlson, da Fox News, bem como por força da recomposição política do Partido Republicano, não é, aliás, surpreendente que sucessivos ataques racistas ocorridos, desde 2018 até hoje, tenham encontrado inspiração na ideia subjacente à referida teoria da «Grande Substituição».
De facto, segundo alguns observadores, um em cada três norte-americanos acredita nessa ideia, isto é, na substituição a prazo da população norte-americana por imigrantes, e que a mesma é o resultado da «conspiração de um grupo de poderosos» que têm por objectivo ganhos eleitorais e/ou a alteração da cultura e dos valores do tradicional modo de vida democrático e liberal dos americanos. Efetivamente, para 32% da população adulta dos Estados Unidos esta já é, segundo os referidos analistas, não apenas uma teoria mas uma prática em curso.
Vimo-la acontecer, recentemente, pela mão de um adolescente no massacre perpetrado na cidade americana de Buffalo e noutras demonstrações mais ou menos violentas de racismo ocorridas nos últimos anos em várias regiões dos EUA que desencadearam grandes manifestações de rua lideradas pelo movimento Black Lives Matter que combate o racismo sistémico contra os negros.
Contudo, a ideia da «Grande Substituição» já tinha vindo a ganhar força e visibilidade nos Estados Unidos, principalmente a partir da eleição de Donald Trump em 2016, quando também o «valor dos factos» começou a ser posto em causa e a cultura da pós-verdade, dos factos alternativos e das fake knews começou a alastrar gradualmente nos Estados Unidos mas não só, designadamente nos países da Europa.

As teses conspirativas das sociedades de Karl Popper
Karl Popper, professor e filósofo britânico do século XX (1912-1994), foi um pensador anti-conformista que, nas suas obras, convidou à reflexão, ao diálogo e à confrontação das ideias e que teve sobre a política e as ciências sociais um olhar novo. Ora, analisando as chamadas teses conspirativas das sociedades do seu tempo, Popper considerava que se tratava de um fenómeno social específico que tinha a sua origem num «grupo de poderosos a quem esse fenómeno interessa ou beneficia». As teorias conspirativas, dizia este filósofo, são «um resultado típico da secularização de uma superstição religiosa: o lugar vazio dos deuses é ocupado pelos grupos de poderosos e pelas suas intenções ocultas que é preciso revelar».
Descodificando, importa dizer que, de modo geral, as teorias filosóficas são sinais de alerta percursores que, partindo da interpretação das circunstâncias do passado e do presente, permitem de alguma maneira perspetivar a provável evolução futura das sociedades humanas. Não significa isto que as ditas teorias encerrem em si «toda a verdade», mas, diz a experiência histórica, que quase sempre revelam «uma parte da verdade».
Ora, partindo desta premissa, não será ousado admitir que, para além dos grandes poderes económicos e geo-estratégicos que hoje dominam o mundo, as sociedades ocidentais se encontram igualmente confrontadas com a esfera de influência de outros «grupos de poderosos», i.e. de «poderes fácticos de natureza e proveniência diversas (políticos, económicos, culturais, intelectuais, mediáticos) que, de uma forma ou de outra, agem motivados por razões ideológicas, políticas, socio-económicas, religiosas, culturais, e mesmo civilizacionais».
Na verdade, a ideia da substituição do modelo civilizacional das sociedades democráticas ocidentais tal como hoje o conhecemos, tem vindo a ganhar terreno, tanto em França e nos Estados Unidos, como noutros países e continentes, em torno de valores que são caros aos movimentos iliberais da extrema-direita que preconizam a construção de muros e de barreiras, i.e., o isolamento territorial das pessoas, das identidades e das culturas para garantir a sua preservação face à «ameaça dos outros», em suma, que visam a destruição da alteridade.
Todavia, em paralelo, assiste-se à implantação crescente de «valores alternativos» ao referido modelo civilizacional do Ocidente, os quais constituem, por assim dizer, a «bíblia» dos movimentos iliberais da extrema-esquerda, a saber: a promoção sistémica das «causas fraturantes», da cultura woke, do combate ao sistema capitalista, do anti-imperialismo, do anti-globalismo e do anti-europeismo.
Trata-se, em conclusão, de valores segregacionistas, isolacionistas, marcadamente nacionalistas, anti-liberais e anti-democráticos. E é em nome destes «valores alternativos» que os referidos movimentos iliberais da extrema-direita e da extrema- esquerda se batem para ocupar o lugar do mainstream político, cultural e civilizacional que ainda prevalece nas sociedades democráticas do Ocidente.
As eleições francesas de 19 do corrente mês de Junho, em resultado das quais as forças iliberais de extrema-esquerda e da extrema-direita quase atingiram o limiar da vitória nas urnas, são a prova mais recente da clara expansão na Europa de um paradigma político alternativo que visa substituir o modelo da sociedade europeia tal como hoje o conhecemos.
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«Portugal e o Futuro», opinião de Aurélio Crespo
(Cronista/Opinador no Capeia Arraiana desde Julho de 2020.)
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