Cheguei e já a tarde esmorecia. Achei só e encurtado o largo que, em tempos, vi grande e povoado. Enfim, dispõe agora de algum movimento, sobretudo no Verão, com a vinda dos emigrantes. Porém, hoje, nada. Ninguém se atrevia ao calor. Nem um pássaro piava.

Da desembocadura de uma estreita quelha, num perfeito imprevisto, surgiu uma silhueta curvada, de passada curta e lenta. Parecia carregar em si toda a solidão do mundo. Era a Emília Trigueira que se abeirava para cumprimentar:
– Boas tardes nos dê Deus. Então hoje por cá? Já há muito que não vinhas!
Na verdade, o muito, seria cerca de oito dias. Mas a quietude também faz perder a noção do tempo. E a anciã acrescentou:
– Desviei por aqui. Senti o rosnar de um carro e vim espreitar. Ontem, à tarde, passou uma carrinha velha. Hoje, de manhã, o portão de ferro da Antónia já tinha voado. Há por aí uma malandragem! As aldeias estão entregues ao demo e ninguém nos vale!
Afastou-se, de seguida, lenta e persistentemente e eu tratei de estabilizar a chegada enquanto a tarde se apagava.
Sem demoras, o lusco fusco fez-se negro. Iniciei, então, a subida da aldeia pelos mornos da noite procurando recordações em todos os recantos, até nos menos iluminados.
Caminhei, pois, na rua vazia. A noite cheirava a rescaldos quentes e eu desmaiava saudades em passos imprecisos. De repente, parei frente à casa da Trigueira.
O céu estrelava-se em astros dispersos e a lua escondia-se numa nuvem mais espessa. Foi quando senti um chiar estranho. Paralisei, por momentos. Passei a mão pela cabeça. Fitei o chão por instantes e quando levantei o olhar vi que a obsoleta janela da Trigueira, empenada de velhice, se ia abrindo e rangendo. A decrépita madeira de carvalho opunha-se aos puxões da idosa, que empunhava, na mão direita, um arrocho. Entre o temor e a afoiteza a vetusta personagem investigou o exterior pela abertura e disparou num guincho feminino:
– Quem anda aí?
A pergunta quase me assustou. A boca abriu-se-me mas não falei de imediato. Primeiro respirei fundo e só depois, ainda mal reposto, deixei tremer a voz que seguiu na noite escura:
– Então não me conhece?
– Ah, sim. Agora já. É que depois do roubo do portão da Antónia todos os vultos e todos os barulhos me parecem estranhos. Metem-me medo e, por isso, guardo, por perto, esta tranca. Com ela na mão, perco receios mas ganho coragem.
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«Terras do Jarmelo», crónica de Fernando Capelo
(Cronista/Opinador no Capeia Arraiana desde Maio de 2011.)
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Fernando, importante relato de vilas e idosos abandonados. Seria bom se governos federais e municipais estimulassem os jovens que queiram morar em aldeias, já que trabalhos remotos por internet provaram ser eficientes. Esse caminhar solo é muito forte, me lembro uma noite andando por Rio de Mel e meu calçado fazia um barulho que ecoava pelas ruas desertas.
Belíssimo texto que nos reporta a tempos idos que não voltarão mais mas que urge recordar
Bom dia. Parabéns ao autor. Que bonito texto, Obrigada