Com os seus 17 milhões de quilómetros quadrados a Rússia é o maior país do mundo e possui quase o dobro da área dos países que se lhe seguem no ranking – Canadá, China e EUA. A Federação Russa compreende 85 Unidades Administrativas, com 22 repúblicas, 46 «oblast» (províncias), 9 «krai» (territórios), 4 «avtonomy okrug» (distritos autónomos), 3 cidades federais e 1 «avtonomy oblast» (província autónoma). Além disso, possui uma população de cerca de 147 milhões de habitantes que falam cerca de uma centena de línguas e se repartem por dois continentes – a Europa e a Ásia.

Por mais paradoxal que possa parecer, este verdadeiro colosso territorial que se estende de Kaliningrado (Mar Báltico) a Vladivostok (Oceano Pacífico) e que faz fronteira com a Noruega, a Finlândia, a Estónia, a Lituânia, a Polónia, a Bielorrússia, a Ucrânia, a Geórgia, o Azerbaijão, o Cazaquistão, a Mongólia, a China e a Coreia do Norte é um país que se diz «ameaçado» e mesmo «cercado», mas que, paradoxalmente, se mostra cada vez mais obcecado com a ideia de expandir o seu território para além das suas atuais fronteiras.
Para entender melhor este estranho paradoxo, convém recuar aos tempos da URSS, também designada por União Soviética. A formação da URSS foi uma das consequências da revolução de Fevereiro de 1917 que pôs termo ao reinado dos Czares e instaurou a república, cujo governo provisório viria a ser derrubado oito meses mais tarde pela revolução dos bolcheviques de Outubro de 1917. Um dos motivos da formação da URSS foi a vontade de Vladimir Lenine de aplicar no país um sistema federalista, transformando a Rússia unitária numa «Federação de Repúblicas Soviéticas». Assim, a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), proclamada em Dezembro de 1922, passou a ser um estado federal transcontinental governado por um regime marxista-leninista de partido único ( o partido comunista). Esta Federação existiu desde a sua proclamação em 1922 até à sua dissolução em 1991, facto a que voltarei mais adiante.
Sendo o maior Estado do mundo, a URSS ocupava, na era soviética, um vastíssimo território que se estendia do Mar Báltico e do Mar Negro ao Oceano Pacífico, ou seja, ocupava toda a parte nordeste da chamada Eurásia, correspondendo à maior parte do antigo Império dos Czares mas que foi aumentada, de 1939 a 1945, pelos ganhos territoriais do periodo de Joseph Estaline operados na Europa de Leste e no continente asiático.

Sucedeu que, sobretudo a partir de meados dos anos 1980, começou a gerar-se no aparelho de Estado soviético um sentimento de impasse político, social e económico que acabou por incitar o governo da URSS presidido, a partir de 1985, por Mikhaïl Gorbatchev a reformar o sistema político mediante a introdução de dois novos princípios: a «glasnost» (transparência) e a «perestroika» (reestruturação).
Contudo, a verdade é que o afrouxamento do domínio do partido comunista e da polícia política (KGB), durante esse período de abertura do regime, não só não teve como resultado a renovação do sistema político soviético, como, pelo contrário, acabou por conduzir à sua implosão em Dezembro de 1991, data em que o Soviete Supremo da URSS decidiu decretar a dissolução da União Soviética criando no seu lugar a «Comunidade dos Estados Independentes (CEI)» e reconhecendo oficialmente a «separação das repúblicas que faziam parte da URSS». Assim, com o fim da União Soviética, enquanto Estado e sujeito de direito internacional, também a «República Soviética da Rússia» que nela estava integrada foi por sua vez automaticamente extinta e substituída pela Federação Russa (ou simplesmente Rússia) a qual passou a ser reconhecidada, nas relações e nos fóruns internacionais, como o Estado continuador da ex-União Soviética tendo, nomeadamente, herdado o lugar que a URSS anteriormente ocupava na ONU enquanto membro permanente do Conselho de Segurança.
Deste modo, com o colapso da União Soviética, a «nova» Rússia ficou sem uma parte apreciável do território que fora da «velha» União Soviética: além da Bielorrússia e da Ucrânia e dos três estados bálticos (Estónia, Letónia e Lituânia) que foram os primeiros a separar-se, nove outras Repúblicas proclamaram no início dos anos 1990 a independência: a Arménia, o Azerbaijão, o Cazaquistão, a Geórgia, a Moldávia, o Quirguistão, o Tadjiquistão, o Turquemenistão e o Uzbequistão.
Primeiro paradoxo
Ora, o que é particularmente intrigante e paradoxal é que, na referida decisão que pôs termo à URSS, a Rússia tenha aceitado, por um lado, a independência de repúblicas de dimensão grande a média – o Cazaquistão (2.724.900 Km2), o Turquemenistão (491.000 Km2), o Uzbequistão (449.000 Km2), o Quirguistão (200.000 Km2), o Tadjiquistão (143.000 Km2) – mas que, em contrapartida, se tenha oposto ferozmente às pulsões independentistas das micro-repúblicas do Cáucaso (a Tchetchénia, a Inguchétia, o Daguestão) e que, de há 30 anos a esta parte, tenha tentado apoderar-se de dois pequenos territórios – a Ossétia do Sul e a Abecásia – pertencentes à República da Geórgia e de outro pequeno terrritório, a Transnístria- pertencente à República da Moldávia.
A verdade é que, tal como recentemente aconteceu com as autoproclamadas «repúblicas de Donetsk e de Lugansk» situadas em território ucraniano, cuja independência Moscovo se apressou a reconhecer em 21 de Fevereiro passado (i.e. 3 dias antes da invasão da Ucrânia), a estratégia utilizada pela Rússia para se apoderar, a prazo, dos referidos territórios da Ossétia do Sul, da Abecásia, bem como da Transnístria (ou, no mínimo, a sua transformação em Estados-fantoches) já tinha passado por um processo análogo, i.e. pelo reconhecimento russo destas «autoproclamadas independências» e pelo apoio político e militar aos separatistas de cultura russófila existentes nestes territórios.

Com efeito, a declaração russa de reconhecimento das «independências» dos territórios georgianos da Abecásia e da Ossétia do Sul ocorreu em 26 de Agosto de 2008, altura em que o presidente da Rússia era Dmitri Medvedev (sendo à data Vladimir Putin, primeiro-ministro). O mesmo já sucedera, aliás, com a região moldava da Transnístria, quando nos dias finais da União Soviética, os separatistas deste território moldavo decidiram, com a ajuda de contingentes russos e cossacos, autoproclamar a sua independência em Setembro de 1990. Como se disse, o mesmo acontece agora com os territórios ucranianos de Donetsk e Lugansk. Aliás, já em plena invasão da Ucrânia, a Rússia tem aventado a hipótese de repetir a mesma manobra tática noutras regiões do sul da Ucrânia, como foi designadamente o caso da região de Kherson, no quadro de uma estratégia mais ampla de conquista de toda a faixa costeira ucraniana do Mar Negro.
O certo é que, apesar desta habilidosa estratégia russa, tanto a Abecásia quanto a Ossétia do Sul continuam a ser reconhecidas pela Comunidade Internacional como partes integrantes da República da Geórgia, que não reconheceu nem aceita o movimento separatista dos abecásios e dos sul-ossetas. Por seu turno, a Transnístria continua também a ser internacionalmente reconhecida como uma região pertencente à República da Moldávia. E o mesmo sucede com os territórios de Donetsk e Lugansk que a Comunidade Internacional continua a reconhecer como fazendo parte integrante da República da Ucrânia.
Segundo paradoxo
Mas, existe na Rússia outro paradoxo bem mais antigo, e sobretudo bem mais preocupante, que tem norteado a sua «política externa» desde os tempos remotos de Czar Ivan IV, o Terrível: o imperialismo russo vê inimigos potenciais em todos os seus países vizinhos e acha que a única forma de «salvaguardar a sua segurança» é conquistar estes países ou, pelo menos, convertê-los em estados-vassalos.
De facto, acontece que, mesmo quando o império russo foi ao longo dos tempos alargando o seu território, nem por isso o seu «sentimento de insegurança» desapareceu. E assim, vemos este colosso territorial, que se estende do Báltico ao Pacífico, do Oceano Ártico ao Mar Negro e ao Mar Cáspio, a lamuriar-se de que está «ameaçado» ou «cercado» por supostos inimigos, parecendo não perceber que esse sentimento decorre, em boa parte, do facto de se ter tornado o maior país do mundo. Na verdade, lá diz o ditado: «grande nau, grande tormenta»…
Ainda assim, é caso para perguntar: porque insiste a Rússia em alargar o seu império? Será que os 17 milhões de quilómetros quadrados não lhe chegam? Até onde irá o seu «espaço vital»?
Certo, há que reconhecer que, durante a maior parte da História Universal foi a agressão e a força que regeram as relações entre os Estados, pelo que o sentimento de desconfiança era de alguma forma compreensível. Foi, aliás, o receio mútuo e a desconfiança entre as principais potências europeias que conduziram, em última análise, ao absurdo e às tragédias da I e II Guerras Mundiais.
Entretanto, muita gente acreditou que, depois das convulsões, do sofrimento, da destruição massiva de cidades inteiras e dos milhões de mortos causados por estas duas Grandes Guerras, bem como dos subsequentes rearranjos geopolíticos e do fim da Guerra Fria, a Humanidade e a Europa em particular teriam posto um ponto final às pulsões expansionistas e imperialistas do passado.
Manifestamente, verifica-se agora que essa mudança histórica no sentido da «paz mundial» não aconteceu na Rússia. Ou, pelo menos, não aconteceu na cabeça do atual Senhor do Kremlin. De facto, há por aí quem entenda que a mente de Vladimir Putin terá sido formatada pela doutrinação e pela experiência do KGB, onde exerceu funções no tempo da Guerra Fria. É uma tese que faz algum sentido. Mas, porque não considerar que a «paranóia securitária» é um mal inevitável em qualquer autocrata que passe 22 anos no poder, como é o caso de Putin? Afinal, bem vistas as coisas, o único governante da Rússia dos séculos XX/XXI que ultrapassou Putin no poder foi Joseph Estaline (1922 – 1953) que foi um dos governantes mais paranóicos e mais assassinos da História.
A falácia
O que é uma falácia? O termo falácia deriva do verbo latino fallere, que significa enganar. De modo geral, considera-se a falácia como um tipo de argumento que à primeira vista pode parecer correto, mas que, para convencer o interlocutor ou o público-alvo, quem dele se serve omite intencionalmente algumas informações que, ao não serem reveladas, acabam por desvirtuar a realidade dos factos.
Um dos principais argumentos utilizados por Vladimir Putin e pelo seu ministro do negócios estrangeiros Serguei Lavrov para invadir a Ucrânia consistiu em acusar a NATO de ter quebrado um alegado «compromisso» assumido perante a Rússia no início da década de 1990, segundo o qual a referida organização militar do Ocidente não se expandiria para a Europa de Leste. Este argumento também tem sido repetido por quem considera a invasão da Ucrânia como a natural, compreensível e inevitável resposta da Federação Russa face a alegadas provocações da NATO e do chamado imperialismo americano, de que a mesma Rússia terá sido alvo ao longo dos últimos 30 anos.
Acontece que quem invoca esse suposto «compromisso» não apresentou até hoje provas substanciais da sua existência nem os detalhes do seu verdadeiro conteúdo.
Há quem alegue que, nos dias que antecederam a invasão da Ucrânia, teriam sido, muito oportunamente, resgatados dos arquivos alguns elementos de informação susceptíveis de justificar a citada acusação dos dirigentes do Kremlin.

Porém, quando se pretende avançar para lá dos títulos bombásticos com que estas «descobertas» foram publicamente apresentadas, facilmente se percebe que os referidos elementos não passam, afinal, de meros registos de pontos de vista e de declarações de intenções atribuidos a representantes da NATO e a governantes e diplomatas ocidentais, que teriam sido expressos de forma meramente verbal, no tempo em que decorreram as conversações que tiveram lugar em 1990-1991 entre a Rússia e as os países do Ocidente sobre a reunificação da Alemanha e a consequente recomposição e segurança da Europa de Leste: o secretário de Estado dos EUA, James Baker, teria dito que «a actual jurisdição militar da NATO não deveria avançar para leste» (9 de Fevereiro de 1990), o chanceler alemão Helmut Kohl teria opinado que «a NATO não deveria alargar o seu âmbito» (10 de Fevereiro de 1990), o diplomata alemão Jürgen Chrobog teria comentado que «a NATO não se expandiria para lá do Elba» (Março de 1991), o diplomata americano Raymond Seitz teria afirmado que a NATO «não tiraria partido da retirada das tropas soviéticas da Europa de Leste» (Março de 1991), e o secretário-geral da NATO, Manfred Woerner, teria declarado que «ele e o conselho da NATO eram contra a expansão da NATO» (1 de Julho de 1991).
Ora, a questão que objetivamente se deve, desde logo, colocar a este respeito é a seguinte : se nessas conversações de 1990-1991, a Rússia tivesse considerado crucial a regra de não-expansão da NATO para leste, como se explica então que os seus dirigentes não tivessem exigido que essa regra de não-expansão da NATO tivesse ficado claramente formalizada num Tratado Internacional assinado por todos os negociadores? Que distracção, que desleixo ou que ingenuidade terão levado a Rússia a deixar tão importante posição negocial reduzida a meras declarações verbais durante as conversas atrás citadas?
O mais extraordinário é que o lapso, a omissão ou a ambiguidade dos dirigentes russos relativamente a tão ponderoso assunto teve lugar num tempo em que todo e qualquer Acordo de Comércio entre Estados já envolvia centenas de páginas detalhando as especificações técnicas, os procedimentos, as verificações, as taxas que devem ser cumpridas, aplicadas e cobradas nas transacções transfronteiriças, por exemplo, de produtos alimentares como o queijo da Serra ou o comércio das laranjas, das trotinetas ou dos electrodomésticos… Ou, o que é mais, ocorreu num tempo em que qualquer Tratado Internacional concluído entre Estados (por exemplo, o Tratado da União Europeia que foi negociado em 1991 e assinado em 1992 pelos Estados-membros da então Comunidade Europeia) já contemplava de forma exaustiva, e por escrito, as regras negociadas e aprovadas pelos Estados signatários.
Nestes termos, independentemente do que se terá passado nos bastidores das conversações entre a NATO/Ocidente e a Rússia em 1990-1991, torna-se por demais evidente que a tese russa do «compromisso» atrás citada não poderá encontrar um suporte jurídico credível numa interpretação baseada unicamente em meras declarações verbais alegadamente proferidas durante as citadas conversações. Na verdade, alguém de boa-fé acreditará na autenticidade de um tal «compromisso»? Manifestamente, não é asssim que funcionam os Estados no domínio das relações internacionais. As regras internacionais que obrigam os Estados são unicamente aquelas que decorrem dos Tratados Internacionais que os mesmos subscrevem.
Daí, a falácia russa…
Bem vistas as coisas, o único facto histórico indesmentível sobre o assunto atrás exposto é que, depois de longo diálogo entre o então chanceler da Alemanha Ocidental, Helmut Kohl, e o então presidente russo, Boris Ieltsin, este acabou por concordar em retirar as tropas russas da Alemanha em 31 de Agosto de 1994, após 49 anos de ocupação. Tudo o mais são desculpas usadas por uma potência imperialista que se arroga o poder absoluto de decidir quais os países que têm, ou não, o direito de existir.
É por isso que, ao violar a integridade territorial da Ucrânia, país soberano, livre e independente reconhecido por toda a Comunidade Internacional, a Rússia incorre não apenas numa violação absolutamente inaceitável do Direito Internacional e da Carta das Nações Unidas, como continua a ser condenada pela esmagadora maioria da opinião pública mundial.
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«Portugal e o Futuro», opinião de Aurélio Crespo
(Cronista/Opinador no Capeia Arraiana desde Julho de 2020.)
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