Seu nome é Aníbal Andrade e, por incrível, aconteceu que me bateu à porta aqui na Centralidade do Mussungue. Falava «portinhol» e identificou-se como uruguaio. E perdido. Por engano foi para o avião errado e aterrou no Dundo, julgando que estaria em Cabinda.

Alguém amigo entendeu que eu seria a pessoa indicada para o receber até ter um voo de regresso.
Sexagenário, como eu, Aníbal Andrade foi recebido de braços abertos e com a certeza de que o seu problema teria solução. Aliás esse meu amigo é representante de uma companhia aérea e tem sido fantástico comigo desde que cheguei cá.
Sentámo-nos na sala um pouco para «quebrar o gelo». O olhar dele escondia um misto de surpresa e de incerteza. Que dizer? O desconhecido é terrível e Aníbal tudo fazia para disfarçar.
Agradeceu imenso a hospitalidade de um velho lusitano, mesmo no fim da linha de um mundo que lhe era totalmente desconhecido. Um sorriso aberto, era o que mais precisava.
Tendo o apelido da minha mulher, e sabendo que muitos dos seus parentes terão imigrado, ainda me atrevi a questionar se tinha alguma raiz em Portugal. Mas não. De facto, era muito viajado, conhecia Portugal de passagem, mas sua origem até era boliviana.
O seu timbre de voz era calmo. E a conversa ia fluindo como as cerejas do Fundão. Recordámos locais que ambos conhecíamos, principalmente Espanha, a nossa família até que se chegou à cultura.
O Aníbal era também um amante da cultura. Conhecia um pouco da obra de Saramago, concretamente o «Ensaio sobre a Cegueira», que considerou um livro «muito à frente». Entretanto, perguntei-lhe se queria um café. E surpreendentemente, tal como eu, era um aficionado desse ouro negro que por sorte possuo tanto de Angola, como do Brasil, prenda de um colega desta missão onde estou.
Falou-me um pouco de como é o Uruguai. Pequeno país encravado entre o Brasil e a Argentina. No Norte, junto ao Brasil, fala-se «portinhol» tornando impensável que tal idioma existisse. Via-se nele como gostava da sua terra e também da sua cultura. O país teve muita influência inglesa no século XIX, que, tal como em Portugal, instalaram uma série de companhias publicas como o comboio, estradas correios e a água. Até ao momento nada foi privatizado.
Apresentou-me um poeta, Mário Beneditti. Alguns poemas na verdade são fascinantes: Ausência de Deus, Garrafa ao Mar, Noção de Pátria ou a Vida entre Parêntesis.
Mas o interessante deste «desencontro» foi a visão sexagenária da vida. O tempo passa a ser o bem mais precioso. Saber como gastá-lo, valorizá-lo, o bem-estar e o prazer de conviver com quem mais gostamos. Talvez sejam mesmo essas imagens que levaremos connosco no dia da partida para o eterno acampamento.
Achei que era impossível ver o Aníbal maldisposto, tal era a positividade que me transmitia. Mostrou-me um vídeo do antigo presidente do Uruguai, um homem da geração revolucionária, e infelizmente utópica, mas que com pensamentos de grande lealdade para os princípios humanitários da igualdade, honestidade e humildade.
Veio a propósito que estou a ler um livro oferecido por uma médica cubana que relata os últimos dias de vida de Che Guevara. Um médico argentino que faleceu na Bolívia a lutar pelos seus ideais, por muito que achemos que andem longe da realidade da vida.
Pepe Mujica, foi o dito presidente uruguaio, agricultor de profissão, tendo governado entre 2010 e 2015. Nascido em 1935, foi um guerrilheiro que combateu a Ditadura Militar (1973-1985), acabando por ser detido e libertado após a queda da ditadura. Um aspecto importante é que doava 70% do seu vencimento ainda como agricultor ao seu partido e a um fundo de reabilitação de casas. Hoje ainda vive humildemente na sua aldeia Rincon del Cierro, onde continua a cultivar flores e hortaliças e a doar parte do seu salário.
Reconheço que conheço muito pouco da história da América Latina, e têm sido estes contactos que me vão elucidando que este subcontinente tem uma riqueza de cultura e de história. Foi uma geração de homens e mulheres em vários países que tinham um pensamento autónomo que se aproximava do comunismo, ressalvando o meu direito que nunca concordei, mas que passados tantos anos não vejo porque não estudá-los e procurar entendê-los.
O café tinha acabado e o Aníbal perguntou se podíamos continuar esta tão rica tertúlia com mais um, agora com o aroma do Brasil.
Mas subitamente batem à porta. O meu amigo António, o gestor da companhia aérea aqui no Dundo, tinha o problema resolvido. Um voo particular ia para Luanda e cedeu um lugar.
«Vamos Anibal, não há tempo a perder!»
E assim tal como entrou, saiu. O abraço foi mais longo que a conversa. Mas muito, muito mesmo, deixou cá na minha casa!
Centralidade do Mussungue, 8 de Maio de 2022
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«No trilho das minhas memórias», crónica de António José Alçada
(Cronista/Opinador no Capeia Arraiana desde Março de 2018.)
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A riqueza da vida são estes momentos! E assim ” contados” enriquecem quem os “escuta”!