Lembro-me que me despedi da senhora na fila para as eleições legislativas de 28 de outubro de 1973, na Praça Velha, junto à Câmara Municipal da Guarda. Era das poucas mulheres na fila. Tinha direito a voto, herdado do marido, funcionário público. Entre esta senhora que votava por herança do marido e os dias de hoje vai uma enorme diferença que se ganhou, passo a passo, nunca por decreto.

Escrevo na manhã de 25 de abril de dois mil e vinte e dois, ouvindo os discursos na Assembleia da República que me levam a 1974. Por isso, hoje não vou falar de bombeiros. Vou falar desse meu abril de 74, quando era aluno do 6.º ano (atual 10.º) no então Liceu Nacional da Guarda, agora Escola Afonso de Albuquerque, 16 aninhos, acabados de fazer.

Com 16 anos treinava nas «Milícias» que era a forma mais rápida de preparar «carne para canhão». A recruta era feita enquanto estudante e na hora de ir para a tropa passavam directamente para a especialidade. O 25 de Abril acabou com as «milícias» estava eu no primeiro ano.
À época, os estudantes deslocados, ou se alojavam nos lares existentes (era assim que se chamavam, não eram residências de estudantes como agora, embora sejam a mesma coisa) ou em casas particulares, havendo algumas em que o alojamento de estudantes ou trabalhadores deslocados era a forma de vida.
Quanto a «lares» recordo o «Côdeas» – não recordo o nome efetivo – na Rua Soeiro Viegas em frente às «Lurdinhas» – que já fora «lar de raparigas» –, nesse ano Escola do Magistério, e hoje Serviços Sociais do IPG. Na inauguração da Escola do Magistério neste edifício em Outubro de 1973 pelo então Ministro da Educação, Dr. Veiga Simão, houve prisão de alguns estudantes por se recusarem a estender a capa à passagem de Sua Excelência. O Liceu da Guarda era o único Liceu no país onde existia «Capa e Batina», a chamada «Praxis».
Além do referido «Côdeas» havia o «Lar da Gulbenkian», junto ao Liceu, inaugurado no início do ano letivo (outubro de 1973). Para raparigas havia a «Santa Luzia» na rua 31 de janeiro e a «Santa Zita» na rampa entre o largo de São João (cineteatro) e a Rua Pedro Álvares Cabral.
Não sendo um «lar» ambição para quem fora interno quatro anos, lá fui eu parar a uma dessas casas cujo negócio era a hospedagem, com meia dúzia de companheiros quase todos trabalhadores na área da mecânica automóvel, muito admirados com a minha entrada porque estavam a tentar sair devido à avançada idade da senhora – e da casa – que já não conseguia responder cabalmente à situação; Assim que pude lá «acertei» com a família de um colega de turma a minha ida para a casa deles.
Lembro-me que me despedi da senhora na fila para as eleições legislativas de 28 de outubro de 1973, na Praça Velha, junto à Câmara Municipal. Era das poucas mulheres na fila, que tinha direito a voto, herdado do marido, funcionário público.
E lá fui conviver com o Sr. José dos Santos, sportinguista de gema, empregado da Garagem D. José e a Dona Maria Baía, doméstica e incansável na sua máquina de malhas, e os filhos Carlos Baía e Vítor Baía. Digo «doméstica», mas pouco, porque, imaginem o trabalho da senhora a aturar três sportinguistas (veio outro mais tarde) e os dois filhos benfiquistas (tão aguerridos como o pai, em clube rival) em ano que o Sporting esteve perto de chegar pela segunda vez à Taça das Taças (mais tarde Taça UEFA), e que o futebol se ouvia no rádio em casa.
O Vítor, mais novo, guarda-redes nas camadas jovens da Guarda, foi mais tarde guarda-redes do Sporting Club de Sabugal, montanhista, fundador do Clube de Montanhismo da Guarda e atualmente meteorologista com créditos firmados sobretudo entre os grandes alpinistas, entre os quais João Garcia, o mais conceituado alpinista português.
O Carlos, mais velho, já nessa altura tinha ideias políticas e já sabia «coisas»! Coisas que nós não sabíamos! E já conhecia a Rádio Moscovo e a Rádio Portugal Livre! «Coisas» que eu não conhecia, embora, antes seminarista com padres holandeses, críticos do sistema português (para nós não ousavam chamar-lhe ditadura), tivesse visto um deles ser preso e levado, e um aluno desaparecer porque numa das representações que ali se faziam, apresentou uma canção que dizia:
«Às sete horas da manhã/ À porta se ouviu bater/ Era a PIDE que sem mais disse/ Temos ordem de o prender.»
Ora, a Dona Maria tinha a máquina de malhas no corredor junto ao nosso quarto e, junto, uma telefonia (grande) daquelas cor de creme que parecia que eram feitas de rede na frente – coisa fina – que religiosamente era ligada por volta das sete e meia na Emissora Nacional e às oito menos dez dava a ginástica matinal que nos dizia que era a hora limite para nos levantarmos.
Era costume, depois de toda a gente se deitar, o Carlos ir sorrateiramente ao corredor e trazer para o quarto essa telefonia, que sintonizava para ouvir as notícias das rádios referidas acima, e eu, que dormia noutra cama, lá ia aninhar-me junto aos dois irmãos para no meio de tanto «zzzzzzzz» (da telefonia) tentar ouvir noticias lidas com rapidez estonteante – como se fosse aquele aviso dito no fim dos anúncios de agora – que falavam de África e da guerra, de forma diferente do que a televisão tinha dito, embora fôssemos mais espetadores da «espanhola» que da «portuguesa» como eram conhecidos a TVE e a RTP (Canal 1 e único que a 2 só em Lisboa até quase ao fim dos anos 80). Terminado o noticiário, o Carlos recolocava a agulha na frequência da EN e devolvia a telefonia ao corredor para que de manhã a ginástica matinal nos desse a hora de levantar.
O dia 24 de abril de 1974 (quarta-feira) foi um desses dias. Na manhã de 25 a Dona Maria ligou o rádio, mas só saiu música, sinfónica. Que por acaso costumava dar antes das sete, o que nos levou a pensar que era cedo (os relógios também não frequentavam em qualquer pulso).
Por associação de outro qualquer som familiar que não recordo, fui eu que disse: «São oito horas, deixámos o rádio mal sintonizado.» Foi então que ouvi o Carlos gritar: «Houve revolução!»… já a saltar da cama, vestir-se e sair a correr. Ainda eu não tinha saído da casa de banho e já ele estava de volta com as notícias.
Foi assim o acordar do meu 25 de abril de 1974. A tarde, em casa, pregado à televisão espanhola que noticiava muito mais o que se passava que a portuguesa.
Tivemos uns dias sem aulas e não voltámos a ter aula de OPAN (Organização Política e Administrativa da Nação) que era o estudo da Constituição de 1933, disciplina obrigatória no sexto ano (agora 10.º).
Nos meses seguintes, uns distribuímos o «Luta Popular» (MRPP), outros o «Avante» (PCP) e outros, diferentes pasquins como os da LUAR e similares.
No ano seguinte, finalistas, democratizámos o baile desobrigando a fato e gravata para entrar, e unificando o preço dos bilhetes em cinquenta escudos. No ano anterior fora oitenta para estudantes do liceu, 100 para outros estudantes e 120 para os restantes.
No início de 1975, já fundados PSD e CDS e alguns (poucos) convertidos, também ao PS que embora já existente não foi muito popular entre os estudantes nos primeiros meses, o Liceu da Guarda encetou e liderou uma greve com ocupação do edifício, que durou 18 dias até que a tropa do RI 12 (Regimento de Infantaria 12 – Guarda) nos foi lá tirar.
Como muitos outros, sobretudo do sétimo ano, dormi 18 dias no liceu, sem raparigas, banidas logo na primeira noite para responder a alguns «boatos» ouvidos na cidade. Lembro-me que tinha à frente, para além do Carlos Baía, o José Pontes, o Carlos Andrade e o João Codina, mas foram muitos mais os estudantes que passaram quase um mês na prisão da Guarda, e já era «democracia». Para que conste que o 25 de abril demorou muito a cimentar, se é que o está definitivamente.
Tenho que confessar que no início da crónica tinha ideia de dissertar sobre o exagero de feminismo dos discursos na Assembleia, de gente que parece acreditar que estas questões de igualdade entre sexos se resolvem por decreto. Entre a senhora que, em 1973, votava por herança do marido e os dias de hoje vai uma enorme diferença, que se ganhou passo a passo, nunca por decreto. Fugiu a pena para outras histórias, e como já são longas, fica para uma próxima.

No âmbito do «Rosto detrás da máscara» apresento-vos o Pedro…

Nome: Pedro André Clara Augusto
Posto: Bombeiro de 3.ª
Idade: 23 anos.
Situação familiar: Solteiro.
Ingresso como estagiário: 17 de Janeiro de 2017.
Carreira de Bombeiro: 18 de Agosto de 2018.
Passou a funcionário em 14 de Dezembro de 2021.
Integra atualmente uma EIP (Equipa de Intervenção Permanente).
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