Todos quantos, em 1974, viveram o momento histórico do 25 de Abril ainda se lembrarão dos três «DDD» proclamados pelos capitães de Abril como os grandes desígnios do regime democrático que acabavam de instaurar em Portugal: Descolonização, Democratização, Desenvolvimento.

Decorridos quarenta e oito anos sobre esta data (tantos quantos durou o regime do Estado Novo) importa verificar até que ponto estes três desígnios – «Descolonização», «Democratização» e «Desenvolvimento» – foram até hoje efetivamente alcançados.
Rápida concretização da «Descolonização»
O primeiro destes objetivos, a «Descolonização» não tardou a concretizar-se com o termo imediato das três frentes da guerra colonial e a rápida independência das colónias, em Setembro de 1974 (Guiné-Bissau) e em Junho, Julho e Novembro de 1975 ( Moçambique, Cabo Verde e São Tomé e Príncipe, e, por último, Angola).
Mas será razoável afirmar que os objetivos da «Democratização» e do «Desenvolvimento» do país se mostram, em 2022, plenamente alcançados?
O desafio da «Democratização»
No que respeita ao desafio da «Democratização», afigura-se que o mesmo está longe de ter atingido o nível sonhado pelos autores da revolução de Abril.
Na verdade, uma vez que o nosso sistema democrático assenta as suas bases no sistema politico-partidário, o seu bom ou mau funcionamento depende em ultima instância do funcionamento dos partidos políticos que se encontram representados no Parlamento e dos que, em resultado das eleições legislativas, acedem, de quatro em quatro anos, à governação do País.
Ora, como se sabe, os representantes do povo na Assembleia da República, continuam a ser designados exclusivamente pelas direções partidárias, frequentemente de acordo com critérios que pouco ou nada têm a ver com o mérito cívico, moral e técnico-profissional dos candidatos escolhidos.
Em boa verdade, não será exagerado afirmar que, no dia das eleições, os eleitores mais não fazem do que ratificar nas urnas a escolha dos candidatos previamente elaborada pelas máquinas partidárias. Aliás, este facto ajuda a entender, por exemplo, a razão pela qual a eleição de deputados através de «círculos uninominais» não viu até hoje a luz do dia, e ajuda também a explicar as dificuldades e os obstáculos com que se têm confrontado as candidaturas sem partido ou os «movimentos de independentes», sempre que ousam participar autónomamente nas pugnas eleitorais.
Por outro lado, a experiência tem-se encarregado de mostrar que os partidos políticos que têm exercido o poder nos diferentes órgãos de soberania não têm correspondido de forma satisfatória à missão de serviço público que deles se exige, respondendo de forma competente aos anseios e às necessidades reais da sociedade portuguesa. E este déficit de exigência, de competência e de assumpção de responsabilidades que se tem verificado no desempenho corrente dos titulares do poder político tem-se refletido, inevitavelmente, no deficiente funcionamento dos órgãos e das instituições do próprio Estado.
Com efeito, o Estado continua a falhar não apenas em áreas fundamentais do Estado Social, como a saúde, a educação ou a solidariedade social, mas, o que é mais grave, no exercício crucial das chamadas funções de soberania.
Em particular na área da Justiça. Nas últimas décadas, o Estado de Direito tem sido posto em causa pelo deficiente funcionamento dos Tribunais que não se têm revelado capazes de resolver, de forma eficaz e em tempo razoável, os processos que lhes estão confiados, designadamente os que têm envolvido figuras cimeiras da nomenclatura política e da oligarquia económica em casos escandalosos de corrupção e de promiscuidade entre a política e os negócios («Operação Marquês», «Face Oculta», «Operação Lex», entre outros). De facto, a Justiça que temos não deixa a democracia ficar bem na fotografia.
Acresce que a classe política não tem estado, tão pouco, à altura do referido desafio da «Democratização» que pode e deve estar associado a uma adequada política de descentralização do Estado. Esta descentralização, para ser eficaz, pressupõe, necessariamente, uma descentralização fiscal. Contudo, até ao presente, os decisores políticos não têm demonstrado vontade política em atribuir aos municípios uma responsabilidade acrescida em matéria de impostos municipais, nem tão pouco vontade em adotar medidas efetivas tendentes a reforçar benefícios fiscais ou regimes especiais aplicáveis às regiões mais desfavorecidas do interior do País, cada vez mais abandonadas à sua sorte.
Uma outra vertente da desejável descentralização do Estado tem a ver com as políticas públicas de ocupação do território. Na verdade, continuando a generalidade dos serviços da Administração do Estado a funcionar em Lisboa, bom seria que alguns desses serviços e instituições, cuja transferência para o Interior não cause problemas ao seu normal funcionamento, fossem em devido tempo deslocalizados para as áreas mais desfavorecidas e de menor densidade demográfica do País e que o mesmo critério fosse também seguido relativamente aos novos serviços e instituições do Estado que venham a ser criados no futuro. Manifestamente, já é tempo de os governantes se decidirem a operar no país uma verdadeira descentralização do Estado e a dar cumprimento ao princípio fundamental consagrado no artigo 81.° da Constituição Portuguesa que estabelece como tarefa e incumbência fundamental do Estado «a coesão económica e social de todo o território nacional».
Importa, além disso, chamar a atenção para outro ponto de enorme importância que, a meu ver, se encontra associado à realização do objetivo da «Democratização»: a transparência.
Democracia significa, literalmente, «poder do povo». Mas, isso não quer dizer «governo pelo povo». O nosso sistema democrático é um «sistema representativo», ou seja, o poder do povo é exercido através dos seus representantes eleitos que tomam assento na Assembleia da República e, consequentemente, nos Governos que resultam das maiorias parlamentares.
Assim sendo, é importante compreender que existe uma nítida separação entre quem detém o poder, o povo, e quem o exerce, os representantes eleitos e, por derivação, todos os agentes públicos que utilizam parte desse poder no exercício quotidiano das suas funções.
Acontece que esta separação dá frequentemente lugar a divergências entre as ações de políticos, autoridades, dirigentes e servidores públicos, e a vontade ou os interesses do povo. Efetivamente, a experiência mostra que, frequentemente, os políticos, as autoridades e os agentes públicos atuam motivados sobretudo pelos seus próprios interesses, tomando decisões que maximizam os seus benefícios pessoais. Em situações mais graves, há políticos e agentes públicos que só encontram verdadeira motivação na busca de vantagens pessoais ou na vontade de serem reeleitos ou reconduzidos a determinado cargo público, em vez de se preocuparem, acima de tudo, com o interesse coletivo do país.
Neste contexto, a prática do princípio da transparência é um instrumento fundamental que permite que os cidadãos acompanhem a gestão pública e analisem os procedimentos dos seus representantes e é também um instrumento que favorece o crescimento da cidadania.
Com efeito, um dos principais direitos da cidadania é exatamente o de controlar a atuação dos decisores políticos e da administração do Estado, mediante o acesso às informações disponíveis para avaliação do desempenho dos governantes e demais agentes públicos. Por outro lado, a prática da transparência é uma ferramenta que permite aos cidadãos conhecer, questionar e atuar como «fiscais» da boa aplicação dos recursos públicos. De facto, caso exista um razoável nível de acesso à informação e uma prática consolidada das regras de transparência na gestão pública, haverá espaço para um exercício de controlo social de quem governa e uma consequente exigência de que os decisores e os agentes públicos prestem contas da utilização dos referidos recursos, bem como da sua aplicação inteligente e produtiva, em prol da satisfação do interesse coletivo.
Esta ideia de que os decisores políticos e os agentes públicos, eleitos ou não, devem prestar contas à cidadania, bem como o princípio de que esses mesmos decisores e agentes devem ser vistos e efetivamente aceitar-se como responsáveis pelos resultados da ação governamental e da gestão pública (podendo, inclusive, ser penalizados, se for caso disso), são elementos fundamentais daquilo que na terminologia política anglo-saxónica se costuma designar por «accountability», ou seja, a assumpção de responsabilidades.
Infelizmente, contudo, neste domínio da responsabilização dos decisores políticos e dos agentes públicos, o caminho a percorrer neste país ainda se adivinha longo e semeado de armadilhas, de minas e de obstáculos. Na verdade, a prática da transparência, enquanto instrumento crucial da «Democratização» vai continuar a ser uma tarefa árdua que vai sobrar para as próximas gerações.
Uma palavra final sobre o objetivo do «Desenvolvimento»
É certo que em Portugal se vive melhor hoje que em 1974. Como também se vivia melhor em 1974 que em 1926. E em 1926 vivia-se melhor que em 1820… Também na China hoje se vive melhor do que em 1974. Ou no Brasil, nos EUA e em muitos países da Europa. Possivelmente, os países do mundo onde atualmente se vive pior que em 1974 são a Venezuela, a Coreia do Norte, a Síria e outros países martirizados do Médio Oriente, ou alguns países do continente africano. Nos restantes vive-se melhor, porque o mundo evoluiu para melhor.
Porém, a maior evidência de que falhámos no desenvolvimento económico e social está na falta de perspetivas que a maioria dos portugueses continuam a ter em relação ao seu futuro.
Talvez valha a pena perguntar a razão pela qual Portugal foi, em matéria de crescimento económico, ultrapassado quer por pequenos países como o Luxemburgo, Malta e Chipre, quer por países que atravessaram processos de ajustamento como a Irlanda e a Grécia, quer ainda por países do leste europeu, como a Eslovénia, a Eslováquia, a Estónia, a Letónia e a Lituânia, saídos há apenas 30 anos do sistema comunista e que apenas aderiram à União Europeia a partir de 2004.
Como é bem de ver, esta situação não pode deixar de nos interpelar enquanto povo e exige dos nossos decisores políticos e dos agentes económicos uma reflexão profunda.
Todos sabemos que os principais problemas estruturais do país continuam à espera de solução. Diz-nos a experiência histórica das últimas décadas que, para os resolver, vai ser preciso muito mais que os belos discursos ou as meras operações de cosmética. Ou as guerras de alecrim e manjerona com que se entretêm normalmente os partidos. Ou a sorte. Ou mesmo o «milagre» dos ciclos favoráveis da economia europeia que, como todos os ciclos económicos, têm vida curta.
O principal problema estrutural do país que continua por resolver tem a ver com a criação e a consolidação de uma situação económica e financeira sustentável. É um trabalho árduo, pleno de obstáculos e de longo fôlego. Mas não há, a meu ver, melhor forma de garantir o sucesso do nosso futuro coletivo e a sobrevivência do próprio Estado Social.
Para tanto, bom será que, ultrapassada definitivamente a crise pandémica com a preciosa ajuda da União Europeia, o terceiro governo de Antonio Costa, agora detentor do poder absoluto, se decida de uma vez por todas, em estabelecer e aplicar as grandes linhas estratégicas que, de forma sustentada, permitam, por um lado, gerar e redistribuir riqueza mediante a necessária otimização dos recursos nacionais e comunitários disponíveis e, por outro lado, que Portugal não tenha de voltar a recorrer, uma vez mais, aos programas de austeridade, à inelutável dependência financeira do estrangeiro e ao tratamento de choque dos resgates que, em cerca de 30 anos, já nos salvaram in extremis de três bancarrotas. Em termos médios, um resgate em cada década. Objetivamente, estes resgates ficarão indelevelmente gravados na nossa história como verdadeiros atestados do falhanço dos decisores políticos que, ao longo de décadas, têm gerido os destinos do país.
Manifestamente, em tempos de vacas magras como aqueles que vivemos, os desafios com que vai confrontar-se o III governo de António Costa vão ser extremamente difíceis e penosos, porque surgem no começo de uma conjuntura internacional que envolve uma guerra, com as consequências que já se sentem nos indicadores económicos, como a inflação galopante e o generalizado aumento do custo de vida, cujas graves consequências já se fazem sentir de forma dramática no seio das famílias e das empresas, muitas das quais se encontram cada vez mais sufocadas pelo contínuo aumento dos impostos e do aumento generalizado dos preços, da água, do gás, da eletricidade, dos combustíveis, dos transportes e do aumento do custo de bens essenciais nas lojas e supermercados. De facto, a missão do governo agora empossado não se adivinha fácil no curto e no médio prazo, e não deixará de ser marcada pelos efeitos extremamente negativos da estagflação instalada no país e na Europa, fortemente agravados pelas sequelas da guerra em curso na Ucrânia.
Assim sendo, a questão que fica é a mesma de sempre. Saberão as lideranças políticas que nos governam mostrar-se finalmente capazes de atingir um grau superior de competência, de responsabilidade e de exigência cívica e política, no futuro? Saberão essas lideranças mostar-se capazes de compreender, finalmente, que a resolução dos grandes desafios do desenvolvimento económico e social do país se não compadece com a repetição dos erros do passado, por outras palavras, de uma mera «navegação à vista»?
Desígnios de Abril ainda estão longe de ser alcançados
Em conclusão, e voltando à questão inicial, os desígnios proclamados pelos capitães de Abril estão, com a referida excepção da «Descolonização», muito longe de estar alcançados. Efetivamente, a história mostra que, em Portugal, como aliás no caso de outros povos, é bem mais fácil destruir um «império» do que reconstruir e erguer, da base ao topo, o edifício de um País.
Por isso, de uma vez por todas, vai ser necessário encarar o futuro como uma oportunidade para mudar o que é preciso. Não com remendos ou com regressos às medidas do costume. Mas com a coragem e a determinação de quem percebe que as soluções do passado não podem ser as de hoje e as de amanhã.
Resta-nos a esperança em melhores dias. Não uma esperança vã na sorte ou no milagre. Mas uma esperança fundada numa vontade coletiva de transformação, de renovação, de exigência e de mudança.
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«Portugal e o Futuro», opinião de Aurélio Crespo
(Cronista/Opinador no Capeia Arraiana desde Julho de 2020.)
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