:: :: FERNANDO CAPELO :: :: No primeiro episódio das «Histórias da Memória Raiana» o António Emídio «apresentou-nos» a família do Luís do Sabugal quando este se preparava para ingressar no Outeiro de São Miguel. Na «quinta temporada» o Fernando Capelo recorda o dia 25 de Abril de 1974… sem aulas e o reencontro com o Luís na Guarda. (Capítulo 5, Episódio 2.)

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HISTÓRIAS DA MEMÓRIA RAIANA
Capítulo 5 – Episódio 2
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JÁ TUDO NOS SABIA A LIBERDADE…
O tempo passa num aí. Parece-me, a mim, que foi ontem mas já lá vão quarenta e oito anos.
Na cidade da Guarda corria, em Abril, uma primavera de neblinas frescas. Era o dia vinte e cinco e a minha ida para o Liceu deveria ser às nove da manhã. A primeira aula seria de Português, seguida de duas horas de Educação Física. As restantes actividades lectivas seguiriam de tarde.
Coloquei às costas a sacola com o fato de treino e acoitei, debaixo do braço, a Seleta de Português numa capa de cabedal com a cara do Camilo.
O percurso era curto. Pouco mais de cinco minutos. Saí do Largo dos Correios pela rua estreita que se alonga a todo o comprimento da antiga Escola do Magistério, hoje Escola Augusto Gil. Passei em frente ao Aragonês, espreitei o interior da Madrilena , atravessei o jardim, subi à direita, passei a esquina do Caçador e segui em frente até ao Liceu. Para espanto meu, os alunos não entravam, amontoavam-se ao portão.
– Mas que raio! – pensei eu.
Perdi a pressa da aula e, de mãos nos bolsos, fui-me chegando…
– Não há aulas pá! Houve uma revolução! – informou o Zé Zé.
– Mas que revolução? – insisti.
– A sério pá. Há uma revolta em Lisboa. Estamos a organizar-nos. Vamos ter com os colegas do «Rocha».
E fomos. Chegámos ao colégio de São José e a entrada no pátio foi coletiva. Mas, pouco depois , em vez de alunos, surgiu perante nós, o Diretor, o Cónego Quintalo que, de bata branca, curvado em frente e de apontador na mão se impunha com voz de comando:
– Mas vocês não têm aulas?
Respondeu-lhe o Mata:
– Houve uma revolução em Lisboa. O fascismo vai acabar. Viemos juntar-nos para comemorar.
– Mas que cambada de tolos! Olhem lá meninos, deste colégio não sai ninguém. Tenham juízo. Ponham-se a andar que estou a ficar sem paciência e daqui a pouco ponho o apontador a funcionar.
Ninguém duvidou da habilidade do Cónego quanto ao uso da varinha pedagógica. E, antes que mais fosse, passámos ao exterior sem, no entanto, parar de gritar:
– Liberdade! Liberdade! Liberdade!
A alegria já vencia o medo e, seguindo a Rua do Carvalho acima, atordoávamos a cidade com gritos e incitações.
O resto do dia decorreu por entre manifestações de alegria e a escuta de comunicados radiofónicos. Por fim, pelas duas da manhã, quando os mais resistentes ainda temperavam forças no Café da Orquídea, a televisão selou o fecho da jornada com a apresentação da Junta de Salvação Nacional. Após o discurso do General Spínola, um sujeito de meia idade, levantou-se e, meio zonzo com o peso do álcool, tomou a palavra para, séria e perentoriamente, asseverar:
– Olhem meus amigos. Tenho de vos confessar uma coisa. A partir de agora,
vou ficar rico.
Perante o nosso momentâneo espanto o homem continuou:
– Eu sou alfaiate de profissão e, daqui em diante, não vou ter mãos a medir. É só virar casacas!
As gargalhadas misturavam-se com aplausos mas o senhor Figueira, proprietário do estabelecimento, esperou que a algazarra amainasse para, solenemente, declarar:
– Ó malta, vamos lá que já são horas de cama.
Nos dias seguintes não houve aulas e foram verdadeiramente agitados. No 1.º de Maio já as manifestações eram organizadas e enriquecidas com discursos. A meio da manhã uma multidão adensada frente ao quartel, parecia recosa de que algo voltasse atrás e pedia aos soldados:
– Fascismo nunca mais!
Foi então que me pareceu ver o Luís e avisei o Mata:
– Olha pá, não te parece o Luís do Sabugal aquele que ali está?
– Olha, pois é!
Aproximámo-nos na tentativa de o surpreender:
– Então tu não estavas em França, pá?
– Vocês são dos lindos! De certeza que queriam fazer a festa sem mim.
Os abraços foram tão fortes que até faltava o ar e o Borges ia balbuciando:
– Será que é desta? Ou ainda teremos de ir à guerra do ultramar?
Contida a primeira emoção do encontro, todos rebentávamos de alegria quando o Luís convidou:
– Ó pá, já destroquei uns franquitos e tenho aqui uns trocos de lado. Vamos ali, ao Caçador, malhar um copo?
Entrámos e perante a travessa de bolos de bacalhau que alourava o balcão, o Luís pôs a questão:
– Não seria melhor comermos um bolinho? É que eu trouxe do Sabugal um ratinho na barriga.
Proposta aceite por unanimidade solicitámos ao empregado que nos colocasse a travessa sobre a mesa, acompanhada de uma jarrinha de traçado branco.
Enfim, já tudo nos sabia a liberdade!
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Fernando Capelo
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Os episódios das «Histórias da Memória Raiana» são escritos semanalmente por um autor diferente. Participaram na «primeira temporada»: António Emídio, Fernando Capelo, José Carlos Mendes, Ramiro Matos, António José Alçada, Franklim Costa Braga, António Martins, António Alves Fernandes, Joaquim Tenreira Martins, Georgina Ferro e José Carlos Lages.
Nesta «quinta temporada» o Fernando Capelo recorda o dia 25 de Abril de 1974… sem aulas e o reencontro com o Luís na Guarda.
Total de episódios publicados: 37.
Apesar de fazer referência a nomes e lugares verdadeiros da região raiana dos territórios do Sabugal esta é uma obra de ficção e qualquer semelhança com nomes de pessoas, factos ou situações terá sido mera coincidência (ou talvez não!)
José Carlos Lages
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