Até aos anos cinquenta do século passado, pelas ruas de Quadrazais não circulavam apenas pessoas. Cães, gatos, porcos, pitas e até um ou outro burro reivindicavam o direito de ocupar as ruas e nela andarem à vontade.
Essa liberdade não a tinha o cavalo, animal mais nobre e mais valioso, guardado na loije. Por que não também as doninhas, ratos e outra bicheza, vigiada lá do alto pelos milhanos, que seguiam o exemplo da liberdade dos pardais, cegonhas e andorinhas de fazerem parte da aldeia? Os corvos de dia e as grujas (corujas) à noite avizinhavam-se da aldeia alcandorados nos castanheiros ou pinhais que a cercavam, como a pretenderem também eles fazer parte da mesma, a cujos habitantes lançavam uns crocitos ou uns grugrus que, em vez de os saudarem, os amedrontavam com prenúncios de maus agoiros.
Até os lobos, inimigos figadais dos pastores e seus cães de guarda, cheiravam as primeiras casas da aldeia e, se encontrassem alguma ovelha desprotegida, teriam ceia pela certa. Que o diga o Cometa a quem os lobos mataram 42 ovelhas de uma só vez às Regueiras, ali bem perto da sua casa.
Os cães dormiam na rua às portas dos donos, no curral ou nalgum telheiro, se estes o tivessem ou algum vizinho. Mal o dia surgia, aí iam eles passear as ruas e procurar companheira com a qual encangassem, não obstante serem depois perseguidos pela canalha que maltratavam o par até se desencangarem. O dono da cadela teria de saber o que fazer com a ninhada passados uns meses. Dava um ou outro cachorro e os que ninguém quisera tinham o destino de deixarem este mundo. Estas cenas eram um perigo para rapazotes e meninas pois poderiam ser tentados a fazer marranadas como as que viam nos animais.
Os gatos, mais afeitos à casa, sempre arranjariam algum recanto nela para dormir. Ou, se a casa tivesse loije, havia sempre a gateira para eles poderem entrar e saír quando lhes desse na gana. Também procuravam parceira com cio e a fêmea, passados uns tempos, trazia uma ninhada para casa. Mais uma dor de cabeça para os donos. O destino seria o mesmo dos cães. Uns eram dados, outros perdiam a vida no toro de algum castanheiro.
O porco fossava nas ruas então não calcetadas, nos charcos que a chuva deixara, fazendo lapacheiros, ou nos terrenos circundantes como se sua propriedade fossem. Não lhe escapava a estrumeira que algum vizinho se lembrara de fazer na rua, encostada a sua casa, sem cuidar da higiene pública ou da propriedade comum da rua. À noite lá tinha direito a entrar na loije, não tanto porque a ela tivesse direito de facto mas para sua protecção de algum amante do alheio. Tão amante era da rua que nela seria morto em alta gritaria e chamuscado com palha.
As pitas saíam do poleiro por seu pé, sem licença dos donos, e iam debicar pelas ruas vizinhas onde encontrariam galo que as cobrisse, ou esgaravatar na estrumeira do vizinho ao lado dos porcos. Nem mesmo se sabia onde punham os ovos, se a dona não as espreitasse. Apareciam por vezes com uma ninhada lá por casa, que a dona, embebecida, saudava. Agora a dona tinha outro trabalho- espreitá-la, não aparecesse uma doninha a matar-lhe os pitos ou algum milhano que lhe rapinasse a ninhada.
E o burro, não tinha a liberdade de andar na rua? Claro que sim. Também ele se libertava do cabresto e vinha saborear alguma ervinha que crescia nas ruas e campos adjacentes.
A rua era um autêntico jardim zoológico à solta.
Os humanos também não deixavam de ocupar as ruas com cobejões onde secavam milho e feijões. Apenas tinham de vigiar o seu estendal, não fossem as pitas, porcos ou burros comer o produto do seu trabalho.
Algumas vezes tive de impedir a minha burra de provar esses petiscos quando a levava ao pio a matar a sede. Mas essa contrariedade podia provocar aguamento na burra e, por isso, era necessário convidá-la, isto é, dar-lhe um pouco desses produtos. O aguamento dava lugar a sangrias e, se estivesse prenha, podia perder a cria.
Esse regabofe nas ruas acabou quando a Guarda Republicana começou a cumprir as posturas camarárias e a multar quem colocasse estrumeiras nas ruas. Acabaram os passeios dos animais pelas ruas, banhando-se nos lapacheiros ou machos montarem fêmeas à vista de todos, com cenas impróprias para meninos e meninas.
Salvaram-se os cães, esses vadios que ninguém conseguia segurar. Bem perguntava a Guarda pelos documentos e vacinas dos cães. De quem eram? Eles não se acusavam e os donos tampouco. Ou então ouviam uma resposta como a que o Môco do Zé Lá Vai lhes deu sobre o cão que acompanhava o seu carro de vacas: Levai-o! Levai-o!
As ruas ficaram mais limpas, sem tantos maus cheiros e até foram calcetadas nos anos cinquenta, acabando com os lapacheiros e grande parte da porcaria deixada por animais e humanos.
Essas lembranças, nem sempre boas, aqui ficam registadas nuns simples versos…
LIBERDADE
Liberdade, liberdade,
Cada qual quer ter a sua.
P’ra uns é poder falar,
P’ra outros pedir a lua,
P’ra muitos na rua andar.
Anda cá, lindo cãozinho,
Que passeias livremente.
Deixa em paz essa cadela
Que ela está bem consciente
De não querer um filhinho.
Tu, gata, por que saíste
De ao pé da tua dona amada?
Queres já noivo outra vez
P’ra teres outra ninhada,
Se ainda há pouco pariste?
Porco que fossas no charco,
Tu não procuras parceira.
O capador te privou
De fazer alguma asneira,
Quando o alimento é parco.
Não vás para a lapacheira
Todo o dia chapuçando.
Se já és porco de nome,
Porquê inda mais fossando
A sujar-te na estrumeira?
E vós, ó lindas pitinhas,
Que alimento i encontrastes
No estrume do vizinho?
Com as patas afastastes
A palha p’ra ver bichinhas.
Vossa dona vos procura
Para vos tirar os ovos.
Vós fugis por essas ruas,
Escondendo os mais novos
Como quem pitos atura.
Só faltavas tu, burrinho,
A escoicear pelas ruas.
És grande p’ra trabalhar
Ou para erva ir buscar
Para ti e pr’ó coelhinho.
Tem cuidado c’os feijões,
Milho espalhados na rua
Por sobre esses cobejões.
Não tentes deles comer,
Que aguamento podes ter.
Olhem, milhano no ar
Perscrutando em baixo os pitos
Com a mãe a passear.
Com certo voo picado
Um a um vos vai levar.
Atentem bem na doninha
Não vos chupe vosso sangue,
Fazendo-se ela amiguinha
E vos deixa bem exangues
Sem um sinal de vidinha.
Só faltas tu, ó coelho,
Sair também para a rua.
Em toca te meterias
E ninguém mais te veria.
Fica quieto no cortelho.
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