Hoje, dedico a crónica à diversidade dos falares do Povo da minha aldeia em épocas mais recuadas.É uma coisa de que nunca me farto. Claro que essas fórmulas, pelas quais nutro o maior carinho, permanecem nas conversas de geração para geração.
Mas não assim já com a geração mais jovem, que, se quiser, tem acesso a outros conhecimentos – seja cá em Portugal seja no estrangeiro onde estão tantos jovens com a sua família.
Mas tão encantadoras que são estas expressões… De de vez em quando assaltam-me e divirto-me sempre.
Aqui coloco à sua leitura e ao seu divertimento… Divirta-se, como eu me encho de orgulho. À mesa nada melhor do que umas boas conversas
À mesa nada melhor do que umas boas conversas
Ou seja: é dia de conversar consigo sobre as conversas das pessoas da minha terra ao longo de décadas, talvez mesmo ao longo de séculos… Trata-se, ao fim e aio cabo, de repor e explicar o sentido de muitas das maneiras habituais de falar da tradição da aldeia. As fotos que ilustram a peça são de arquivos vários – e a todos os autores e divulgadores agradeço.
Siga então, com espírito positivo e nada crítico a meia dúzia de exemplos que seleccionei para si hoje.
Dar a salvação – saudar, dizer «Olá, atão?» Dizer sobretudo, mais ainda naquele tempo e sempre no plural: «Bons dias» ou «Boas tardes» ou «Boas noites nos dê Deus». Não dizer nada, passar por uma pessoa se dar a salvação era considerado sinal ou de má educação ou de afronta: «Passou por mim e nem a salvação me deu»…
Salvo seja – esta expressão é como que uma desculpa ou, melhor, uma previsão de que posso estar enganado. Dou um exemplo: está-se a discutir algo complicado e eu quero dar uma opinião, mas da qual não tenho grandes certezas. Então dou a opinião, mas ressalvo logo que não tenho a certeza: «É isto assim e assim, ele esteve cá na quinta, salvo seja» – se não estou em erro – aliás, outra expressão também muito usada.
Adivinhar é proibido – o Povo diz isto muitas vezes que não se adivinha o que vai acontecer. Mas esta expressão tem ainda outro significado, acho. Por exemplo: para desculpar uma pessoa ou o próprio por ter agido de determinada forma desadequada ao desenvolvimento de determinada questão. Em forma de desculpa, diz-se então: «Foi assim e assim, ele podia ter feito isto ou isto, mas então o que é que quer? Adivinhar é proibido!»
À mesa em trabalho e conversa
Má-língua popular com piada, sempre. Muitas das expressões populares são parte de um universo que especialmente aprecio: o da má-língua do nosso Povo, no mais puro de si mesmo. E agora, esta a que acho sempre muita piada:
– Não é fruta de ter.
Sabem o que significa quando se fala de alguém? Quer dizer que não é muito fiável, que não se pode contar muito com a pessoa. E seguem outras…
É um exemplo que ali anda – esta expressão é demonstrativa de um certo desprezo, de uma certa crítica destrutiva. Um tipo que não sabe fazer nada ou que se porta mal «como o diabo» (c’mò dianho, c’mò diacho), esse «é um exemplo que ali anda». E, quando falam para ele, dizem-lho na cara: «És cá um exemplo…». Ou então fala-se com terceiros e diz-se: «É um bom exemplo!»
Isto, tenham a certeza, é uma crítica feroz, apesar da aparente lisura das palavras usadas…
Outra: Aquilo é uma maria-vai-com-as-outras – diz-se de uma pessoa (sobretudo, claro, uma mulher) quando não dá provas de personalidade: faz o que vê fazer, vai atrás: «É uma maria-vai-com-as-outras!»
Cabeça de alho choucho – pessoa que não tem capacidade para dirigir a sua vida, incapaz de raciocinar sobre a vida.
Tirar de hoje é sempre assim (leia: «tirar d’oj’ è sempr’assim») – isso significa que é sempre tudo igual. Que a pessoa em causa faz sempre as mesmas asneiras.
Meteu-se a mordomo sem devoção – quer dizer que se pôs a fazer coisas de que nada sabia e se deu mal com o desfecho…
Burro podre – pessoa que mal se tem em pé, ou seja, e sem exageros: que anda sempre a tropeçar e até a cair.
Era enquanto faziam renda que muitas conversas aconteciam…
E nessas conversas apareciam sempre palavras bonitas com enquadramento antigo. Alguns exemplos:
Ir ao rebusco – é apanhar o resto das uvas nas vinhas ou das castanhas nos soitos (bons tempos em que havia soitos…).
Andar ou ir ao restelo – é apanhar o resto da azeitona, depois da apanha.
Barredela – é uma varridela: varrer depressa e mal.
Barrela – calda para branquear a roupa que se lavava na ribeira ou na presa de algum prédio.
Outro tema: como se chamam as pessoas. No Casteleiro, quase toda a gente é tia. Geração mais velha: tia. Então e se… as jovens tàtás que chamam tias às amigas da mãe… se isso afinal fosse uma deriva sofisticada ou presunçosa do velho hábito da aldeia? Sei lá: a linguagem dá cada volta por esse país fora…
E sabem o que é na minha terra a «aldraba»? É nada mais, nada menos, do que a aldrave da porta: uma peça que servia de «pega» e de campainha: ao bater com ela fazia-se barulho para os donos da casa atenderem o visitante.
Fique a saber que pôr o pão de costas para baixo era pecado…
E que quando um carro fica «am’lancado», isso quer dizer que levou uma batida na chapa e ficou… amolgado.
Até para a semana, à mesma hora, no mesmo local!
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«A Minha Aldeia», crónica de José Carlos Mendes
(Cronista/Opinador no Capeia Arraiana desde Janeiro de 2011)
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