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Página Principal  /  Gentes e lugares do meu antanho • Tradições  /  Anos cinquenta
25 Janeiro 2022

Anos cinquenta

Por Georgina Ferro
Gentes e lugares do meu antanho, Tradições caldas de manteigas, georgina ferro Deixar Comentário

Era uma espécie de cantina aquela taverna/mercearia, sita à entrada para as Caldas de Manteigas, sobranceira à fabrica que ardeu quando eu era bem pequenina, numa noite de triste memória. Ainda hoje sinto os gritos das pessoas em desespero por perderem o seu ganha-pão e vejo as chamas altaneiras a iluminarem a noite escura!

Caldas de Manteigas
Caldas de Manteigas

Mas não vou falar da fábrica, vou falar da taverna da menina Isabel.

Silvava o meio-dia e não tardavam a chegar, quase em procissão, homens vestidos de cotim azul carregando a bolsa da merenda com um naco de pão centeio, talvez uma rodela de chouriça ou morcela e, na melhor das hipóteses, uma fatia de queijo, bem enrolados num guardanapo atado pelas quatro pontas. E nunca faltava, também, a merendeira de alumínio onde traziam, ou fingiam trazer, algo mais reconfortante.

Sentavam-se todos, lado a lado, nos bancos corridos à volta das paredes, com a sacola no colo. A menina Isabel já tinha a mesa posta lá no meio, para o marido e filhos. Ao centro, a braseira bem acesa no estrado para criar um ambiente mais acolhedor. Os clientes iam pedindo o seu copito de três ou de meio quartilho que eram servidos ao balcão, do vinho tirado à torneira da pipa. Quase sempre ficava assente no rol para ser pago quando recebessem o ordenado.

A menina Isabel trazia uma enorme panela de caldo verde ou «sopa de entulho» e depois de servir a família insistia em que todos, para ficarem mais aconchegados, comessem uma conchinha que lhes deitava nas lancheiras. Faziam-se um pouco rogados mas acabavam por aceitar.

Também eles, volta e meia, traziam um poucochinho de feijão, ou grão; uma saquinha de batatas quando as arrancavam da terra; um molhinho de carne cheia quando faziam a matança; uma canastra de fruta… nunca ficavam a dever, dizia ela sorrindo para o marido que concordava plenamente.

Como era difícil a vida de toda a gente após a guerra. Ganhava-se tão poucochinho!

Saíam da fábrica às cinco e meia e tinham as hortas para tratar, os filhos para cuidarem. Por sua vez, as mulheres tinham de fazer o jantar, lavar roupa, passar a ferro, preparar as lancheiras para o dia seguinte… pior era, quando não tinham trabalho, ou antes, quando não recebiam dinheiro por todo o cansaço em que viviam.

Lembrei-me agora da senhora Prazeres. Ia para o rio com a grande canastra de roupa à cabeça, com os quatro filhos pequeninos agarrados às suas saias tiritando de frio. Sentava-os, bem juntinhos uns aos outros numa velha manta, que colocava no chão entre dois pedregulhos, enquanto ela molhava, ensaboava, corava e punha a enxugar a roupa que lhe davam a lavar em troca duma ou duas moedas de cinco ou de dez escudos. Às vezes, ficavam a dever semanas e semanas. A senhora Prazeres quase pedia desculpa por suplicar a sua paga. Segredava ela que as senhoras que mais tinham eram sempre as que levavam mais tempo a pagar.

Certo dia, ao chegar a casa, apercebeu-se que esquecera uma camisa de popeline estendida nos arbustos. Estava um frio de rachar, ela sem ter o fogareiro aceso para aquecer uma poucochinha de água. Até a caixa de fósforos estava vazia. E não tinha sequer três tostões para ir comprar outra.

Olhou para os filhos sem saber o que fazer primeiro.

Passava a Lucinda por ali, quando a viu tão angustiada.

– Então, senhora Prazeres, o que é que tem? Posso ajudar nalguma coisa?
– Ai filha, deixei uma camisa no estendal, vê lá tu! E os pequenitos já estão arreganhados e cheiinhos de fome.
– Eu vou buscá-la. Diga-me lá onde está.

A senhora Prazeres explicou bem o lugar e perguntou:

– Óh! minha filha, tu és capaz de me fazer esse favor?
– Claro que sou. Vou num pé e volto noutro. Trate lá dos cachopinhos.

Que grata lhe ficou, a senhora Prazeres!

Depois, voltou-se para o fogareiro a carvão, tentando encontrar no meio da cinza uma brasinha que pudesse atear com uma sopradela. Mas não, nadinha de nada! Os garotos choravam com frio e fome. Deixou-os em casa um momentinho e correu à taverna da Menina Isabelinha implorar que lhe fiasse uma caixa de fósforos. A Menina Isabelinha já estava a pôr a sopa a fumegar na mesa. Olhou para a senhora Prazeres e pediu-lhe que levasse uma panelinha para ela e para os filhos, pois estava mesmo acabadinha de fazer e havia que chegasse.

No dia seguinte, assomava a senhora Prazeres a caminho do rio, a perguntar se a menina Isabel não precisava dumas roupinhas lavadas com urgência.

Era assim cruel a vida de muita gente da minha terra. Trabalhavam arduamente para sobreviverem mas, dificilmente ganhavam o suficiente para matarem a fome, comprarem uns sapatos ou uns tecidos para fazerem uma roupa nova!

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«Gentes e lugares do meu antanho», crónica de Georgina Ferro
(Cronista no Capeia Arraiana desde Novembro de 2020.)

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Georgina Ferro

Origens: Aldeia do Bispo (Sabugal) :: :: Crónica: Gentes e lugares do meu antanho :: ::

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