17 de Janeiro de 1953. Era um sábado esse dia da festa de Santo Antão em Aldeia do Bispo.

A aldeia acordou deitada num lençol branco de neve. Bem cedo se viam as chaminés a fumegar. Não só pelo frio intenso, mas porque a carne que tinham enchido nas últimas semanas precisava ainda do calor duns paus de carvalho. Sim, o fumo da lenha de carvalho não se entranha no sabor da carne. Como eram sábias as pessoas desse antanho que me iam explicando as razões do seu viver!
O céu estava num tom azul intenso onde o sol projectava raios doirados que ia pousando nos telhados, nas árvores e na ribeira.
Como era dia de festa com missa e procissão em redor da igreja, os garotos não se demoraram muito na batalha de bolas! Depois de saudarem a neve, voltaram a casa para se lavarem melhor num canto da cozinha, pertinho da lareira. O lume, embora sem chama alta, deitava um calorzinho apetecível.
A minha amiga Béi tinha uma camisola de lã para estrear. Tinha sido sua avó Teresa que lha fizera aos serões e já depois do Natal.
Ela iria na procissão com a sua ovelha «Motchinha» a pedir a benção a Santo Antão. Com uma das mãos levava a corda com a ovelha de arreata e na outra levava uma cestinha de ovos enfeitada com fitas brancas para leiloar.
Ainda era cedo para a missa, quando saiu de casa na companhia do pai. O pai também vestia o melhor fato que tinha e lhe fizera o Zé, filho da minha tia Rita, a irmã mais velha da minha avó Neves. (O Zé, apesar de surdo-mudo, era um alfaiate de categoria e tinha sempre obras em mão!)
Achei esquisito só virem os dois. Geralmente, vinham, também, a mãe, as avós e avôs.
É que, a mãe ficara a emalar alguns pertences do seu homem: quatro pares de ceroulas, cinco pares de meias, duas camisas, três camisolas de lã, dois pares de calças de pana… e, já nem conseguia fechar a mala! Deixou de fora o camisolão grosso que lhe acabara de fazer durante a madrugada para ele a levar vestida e não se arreganhar pelo caminho. As lágrimas eram tantas que lhe corriam pela cara abaixo e nem valia a pena levantar a aba do avental para as apanhar.
Chegou o ti António ao adro da igreja. Trazia a burra com alforges novos, pareciam estar cheios de oferendas, tapados com uma manta de papa. A burrinha vinha toda ela bem engalanada para poder participar no desfile da bênção do gado.
Quando acabou a cerimónia o tio António foi a casa da Béi, tirou o vulto duma das bolsas dos alforges e, nesse lugar, enfiou a mala que já estava fechada e atada com cordéis para não se abrir. Partiu de imediato e pôs-se a caminho da Lageosa.
Foi-se desviando por caminhos e carreiros para ir dar ao ponto de encontro com o passador. Aí, mais ao entardecer, iria ter o pai da Bei, Saiu ele, de talego a tiracolo onde a sua mulher lhe metera uma «tchouriça», um queijo, meio pão, uma lata de sardinhas com «tchave» para a abrir, uma ou duas peras de Inverno, de que ele tanto gostava. Ah!, e a navalha.
Cosido aos muros, para que ninguém se apercebesse da sua abalada, cabisbaixo, boina enterrada na cabeça até às orelhas lá vai ele ao ponto de encontro e, depois, Espanha fora, Pirinéus, França… em busca de mais pão para matar a fome e tapar o frio aos seus.
Embora fosse dia de festa, na casa da minha amiga todos choravam, até os avós e os tios da Béi. Só viriam a secar as lágrimas quando chegasse a primeira carta. Até lá, os minutos eram horas e os dias eram meses quase anos….
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«Gentes e lugares do meu antanho», crónica de Georgina Ferro
(Cronista no Capeia Arraiana desde Novembro de 2020.)
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Uma cena que se passou em todas as casas da Raia! Em Portugal restamos só dois membros da Família.